quarta-feira, dezembro 25, 2024

A ESPOSA SOLITÁRIA (Charulata)



A cada ano que passa fico com a impressão de que minhas lacunas com grandes diretores ou obras fundamentais da história do cinema só aumentam. E como ultrapassei a metade de meu tempo neste mundo sei que é preciso desencanar e fazer o que posso para entrar em contato com esses trabalhos incríveis, como é o caso de A ESPOSA SOLITÁRIA (1964), meu primeiro contato com o cinema de Satyajit Ray, que via sendo citado principalmente como o diretor da trilogia de Apu, a saber: A CANÇÃO DA ESTRADA (1955), O INVENCÍVEL (1956) e O MUNDO DE APU (1959). São filmes que ainda não conheço, mas que ficarão por enquanto na minha lista de “a ver”, para o futuro próximo. 

Comecei meu contato com Ray com A ESPOSA SOLITÁRIA, uma de suas obras mais festejadas pela crítica e pela cinefilia. E confesso que se não fosse o início do ensaio apaixonado de Sergio Alpendre sobre o filme para o livro da Versátil O Cinema de... – Outros Filmes Essenciais da Coleção, onde ele fala sobre seu encantamento e estupefação na primeira vez que teve contato com a obra no cinema, se não fosse esse texto, é bem provável que não tivesse escolhido para vê-lo nesses dias. Inclusive, outro livro da Versátil, Olhares do Mundo – Obras-Primas de Diferentes Cinematografias, também destaca outro filme de Satyajit Ray, O SALÃO DE MÚSICA (1958).

Aliás, mais uma vez deixo aqui meus agradecimentos à Versátil e principalmente a Fernando Brito, o curador da distribuidora, por essa iniciativa de criar uma pequena biblioteca Versátil, que até agora conta com 40 títulos, trazendo tanto cinema de autor quanto cinema de gênero (não que cinema de gênero também não possa ser cinema de autor, com frequência) ou cinema de épocas específicas ou “escolas” específicas do cinema. Desses 40 livros, só li completamente dois, pois gosto de ler os textos apenas dos filmes que já vi há pelo menos uma distância temporal suficiente para lembrar um pouco do título constante no ensaio. Os livros funcionam como mais um incentivo para conhecermos muitas obras.

Falando em livros, fui checar no 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer qual filme de Ray estaria presente e vi que há quatro filmes do realizador: os três da trilogia Apu e O SALÃO DE MÚSICA (que aparece com o título “A Sala de Música”). Já Mark Cousins, em seu História do Cinema (um de meus livros de cinema favoritos) destaca o cinema indiano a partir dos anos 1940, também nascido na região de Bengala, no noroeste da Índia, a mesma de Ray. Bengala é uma área que ficou sendo parte da Índia depois do fim do domínio britânico, em 1947, quando houve uma divisão do território que fez nascer o Paquistão. Os cineastas indianos que mais se destacaram no Ocidente foram justamente aqueles que saíram do chamado cinema “All India”, os filmes de duração enorme e com vários números musicais. Embora os filmes de Ray não tenham sido grandes sucessos comerciais na própria Índia na época de seus lançamentos ele acabou se tornando o diretor indiano mais celebrado.

Infelizmente vi A ESPOSA SOLITÁRIA nas piores circunstâncias: “em fascículos”, pela falta de tempo e pelo cansaço, e o tempo inteiro olhando para as imagens deslumbrantes e pensando no quanto seria incrível assistir uma obra como essa na telona. A atriz que faz a personagem do título original, Madhavi Mukherjee, é incrível e também um encanto. Tanto que o filme cresce muito mais quando ela está em cena, enquanto perde um pouco da força ao retratar o marido jornalista e idealista.

Na Calcutá de 1879, acompanhamos Charulata, uma mulher que vive uma vida tediosa, de não fazer nada, a não ser de criar pequenas peças artesanais para o esposo. Ela é de uma casta rica e tem empregados em casa, mas é uma mulher solitária e um pouco desprezada pelo próprio esposo. Por isso talvez tenha se sentido tão atraída pelo primo do marido, estudante de literatura, que aparece na casa para passar uma temporada e é convidado pelo marido dela a encorajá-la a escrever. Afinal, ela costuma ler bons livros de literatura.

A ESPOSA SOLITÁRIA é também um belo filme sobre o processo criativo, e como ele vem tanto do esforço, quanto do talento e do sentimento. As primeiras imagens da casa, em tom neoclássico, enchem os olhos e já provocam um impacto inicial que persiste e só aumenta à medida que a personagem vai se despindo aos poucos de sua tentativa de esconder seus sentimentos. O fato de a história se passar quase que totalmente dentro da casa torna esse sentimento represado ainda mais à flor da pele. É uma obra muito sutil e muito delicada, e que certamente deve se tornar ainda mais bela nas revisões. Um sonho seria uma exibição dele no cinema em cópia restaurada.

A ESPOSA SOLITÁRIA é tido pelo próprio Ray como sua obra mais querida e melhor acabada. É uma adaptação de uma novela de Rabindranath Tagore, um dos mais importantes escritores de Bengala. Algumas cenas certamente ficarão grudadas em nossa memória: Charu se balançando (com a câmera acoplada nela, cantando) enquanto Amal lê deitado na grama; Charu chorando e pedindo para Amal nunca ir embora; Charu correndo para fechar a janela enquanto uma tempestade repentina surge; Charu no processo de criação literária; Charu convidando o marido para entrar na casa, na cena final, em imagem congelada.

+ TRÊS FILMES

CRÔNICAS DO IRÃ (Ayeh Have Zamini)

Uma obra feita de maneira tão desafiadora e ousada, frente à estrutura autoritária e teocrática do Irã, que é muito difícil imaginar os diretores voltando a fazer cinema no próprio país. A opção narrativa é de várias pequenas histórias contadas com o recurso da câmera estática, com uma pessoa conversando com outra, sendo que a outra é a câmera. E essa câmera representa a figura que abusa da autoridade. Ou seja, CRÔNICAS DO IRÃ (2023), de Ali Asgari e Alireza Khatami, é um filme que aponta pequenas (ou não tão pequenas) violências cotidianas que pessoas de diferentes idades enfrentam em locais públicos e privados. Mas é também um filme que aponta o dedo para essas figuras de "autoridade", em maior ou menor grau. Seja um policial, uma diretora de escola, um censor de cinema estatal, um funcionário público, ou até mesmo uma vendedora de roupas. Ou seja, trata-se de algo tão presente na sociedade (pelo menos desde a chamada revolução de 1979), que só os mais jovens parecem dispostos a enfrentar atualmente o sistema, como temos visto com alguma frequência nos noticiários. Além do mais, ainda acho incrível o quanto os cineastas iranianos têm conseguido fazer no sistema vigente um cinema com pouco ou quase nada de recursos, e ainda aparecem com obras transbordando talento e atrevimento.

CAMINHOS CRUZADOS (Crossing)

O diretor sueco de ascendência georgiana Levan Akin, de E ENTÃO NÓS DANÇAMOS (2019), traz seu interesse novamente para a comunidade LGBTQI, mas através de olhos ligeiramente mais distantes, já que os dois personagens principais são pessoas vindas da Geórgia que saem numa missão em Istambul. Em CAMINHOS CRUZADOS (2024), a professora aposentada Lia está em busca de sua sobrinha trans, de paradeiro desconhecido, e o rapaz Achi quer apenas sair de seu país e aproveitar a chance para, quem sabe, mudar de vida, indo de carona com aquela senhora para a Turquia. Trata-se de um road movie bem humano que vai construindo a relação dos dois ao longo dessa busca que vai parecendo cada vez mais difícil. Enquanto isso, a trama também nos apresenta à terceira personagem mais importante do filme, uma advogada trans que luta pela causa das prostitutas trans de um bairro decadente. O que me incomodou um pouco no filme foi talvez o que pode até ganhar muitas plateias: o monólogo final de Lia. Talvez tenha achado didático demais. Mas sei o quanto certas coisas precisam ser ditas da maneira mais clara possível.

COMO GANHAR MILHÕES ANTES QUE A AVÓ MORRA (Lahn Mah)

A família é um terreno inesgotável de histórias sobre amor, aproximações por interesse e outros tipos de relações mais complexas e até mesmo mais sombrias. Mas são poucos os filmes que escolhem a família, e com isso coisas delicadas como a herança, como eixo de suas narrativas. Este filme tailandês presente na shortlist do Oscar 2025 ainda é um convite à reflexão sobre o sentimento de abandono pelo que os idosos passam a sofrer depois que seus filhos se casam e têm agora sua própria família como prioridade. Na trama de COMO GANHAR MILHÕES ANTES QUE A AVÓ MORRA (2024), de Pat Boonnitpat, o jovem M é um rapaz bem egoísta e claramente interessado apenas em dinheiro, embora não tenha muita disposição para trabalhar ou estudar. Vê no exemplo da prima, que herdou uma casa de seu avô, tendo cuidado dele na velhice, uma forma de ganhar dinheiro e viver uma vida confortável. É natural, então, que a vovó Amah, recém-diagnosticada com câncer estágio 4, desconfie de seu interesse repentino em ajudá-la em casa e no seu pequeno negócio de vendas. Aos poucos, porém, o rapaz começa a, de fato, gostar muito da avó. E por isso a conclusão do filme é tão bonita e tão tocante.

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