
Talvez escrever com um pouco de aflição na alma seja ideal para se entrar um pouco no espírito de um filme que nos apresenta a um personagem que carrega consigo uma espécie de maldição. Pelo menos ele assim se sente. Daniel Craig é um homem gay americano viciado em drogas (heroína) e álcool que perambula pela Cidade do México dos anos 1950. Ele é William Lee, alter-ego do escritor William Burroughs, autor do romance inacabado em que o filme é baseado e só publicado em 1985. Aliás, estava lendo há pouco sobre Burroughs e soube (ou me lembrei?) do estranho caso envolvendo a morte de sua segunda esposa. Ele a matou supostamente errando, enquanto bêbado, na brincadeira da maçã na cabeça de Guilherme Tell. Em vez de atirar na maçã, atirou na cabeça da mulher. Tal referência aparece em tom de pesadelo em QUEER (2024), o novo filme de Luca Guadagnino.
Daniel Craig encarna aqui não só o personagem mais corajoso de sua carreira, mas sua melhor interpretação, despindo-se de vez da persona James Bond para se arriscar em cenas homoeróticas bem ousadas e só vistas mesmo (com atores de Hollywood) se dirigidos por algum cineasta europeu. O fascinante personagem William Lee é uma espécie de ser angustiado e com muita sede e fome daquilo que lhe dá prazer, mas que é proibido no mundo normativo. O que não quer dizer que não seja possível dentro daqueles espaços de nicho que são os bares gay da cidade do México, aqui apresentados com cores primárias que por vezes lembram o cinema de Almodóvar.
O fato de ter sido filmado nos estúdios Cinecittà, em Roma, contribui muito para um maior controle do diretor no que se refere aos cenários, à direção e à fotografia, a cargo de Sayombhu Mukdeeprom, o tailandês que trabalhou com Guadagnino em ME CHAME PELO SEU NOME (2017), SUSPÍRIA – A DANÇA DO MEDO (2018) e RIVAIS (2024). Inclusive, como ele também é o diretor de fotografia de MEMORIA, de Apichatpong Weerasethakul, quando chegamos ao terceiro capítulo da narrativa, essa informação passa a fazer mais sentido.
Luca Guadagnino vem mostrando uma vontade de fazer cinema invejável. Só neste ano, foram dois lançamentos seus. Se QUEER não vai ter a mesma repercussão de RIVAIS, é até compreensível, pois o filme dos tenistas talvez fale a um público maior – lembro que quando fui vê-lo no cinema algumas pessoas na fila se referiam a ele como “o filme de Zendaya”. Diria que QUEER guarda mais semelhanças com o meu favorito do diretor, ATÉ OS OSSOS (2022), que também apresenta personagens famintos, malditos e que perambulam pelo mundo. A diferença é que em ATÉ OS OSSOS esses personagens são literalmente canibais.
QUEER é dividido em três capítulos e um epílogo e são capítulos que têm uma cara muito própria. Gosto de como o diretor traz canções fora da época retratada (Nirvana, New Order, Prince, além de canções originais de Trent Reznor e Atticus Ross) de modo a dar um ar pós-punk e de decadência à história. O tom um tanto trágico da narrativa se dá pelo apaixonar-se do personagem, que perde um pouco sua expressão de superioridade e masculinidade para se mostrar muitas vezes ridículo frente ao jovem por quem se apaixona, Eugene, vivido por Drew Starkey.
A princípio, não gostei tanto do terceiro capítulo e fiquei com a impressão de que o filme sofreria de certa gordura, mas agora que relembro das cenas mais lisérgicas vejo que se trata de um momento bastante especial do filme, e que tem muito mais a ver com o Burroughs a que costumamos associar, o homem viciado em drogas que no cinema é mais lembrado por MISTÉRIOS E PAIXÕES, de David Cronenberg. Assim, tanto o terceiro capítulo, centrado na busca por uma planta na América do Sul (inclusive com uma participação incrível de Leslie Manville), quanto o primeiro (centrado no sexo) e o segundo (nas drogas), trazem cenas que ficarão grudadas em nossa memória por muito tempo. É o tipo de filme que se assemelha a uma droga que bate de forma retardatária.
+ TRÊS FILMES
RETRATO DE UM CERTO ORIENTE
Um desses filmes que parece ter faltado pouco para ser uma obra grandiosa, inclusive por ser um dos trabalhos mais ambiciosos de Marcelo Gomes, ao lado de JOAQUIM (2017). Em RETRATO DE UM CERTO ORIENTE (2024) acompanhamos a história de dois irmãos libaneses (um rapaz e uma moça) que fogem de seu país natal para tentar a sorte no Brasil. E o mais legal é ver o Brasil sendo apresentado primeiramente pelo norte: antes, por Belém, depois num navio rumo a Manaus e com uma escala numa aldeia indígena. Gomes sabe tanto tecer o drama de seus personagens e trazer uma heroína feminina encantadora (Wafa'a Celine Halawi) quanto nos deixar encantados com a pluralidade de culturas, línguas, comportamentos, crenças, e numa embalagem particularmente caprichada, especialmente quanto a natureza se destaca na fotografia em preto e branco. Gosto especialmente das cenas em que os personagens se mostram como detalhes em meio à vastidão de parte da Floresta Amazônica. As cenas de amor e sexo são também cheias de poesia: os amantes na floresta depois de terem chupado uma manga olhando para o outro, aquilo é cheio de uma lascividade encantadora. Achei curiosa a questão do ciúme do irmão pela irmã. Seria algo recorrente na obra de Milton Hatoum?
CIDADE; CAMPO
Juliana Rojas assina dois dos filmes de terror mais importantes e empolgantes da década passada: o longa AS BOAS MANEIRAS (2017), junto com Marco Dutra, e o curta O DUPLO (2012). Só por isso, cada novo trabalho seu merece a devida atenção e respeito. CIDADE; CAMPO (2024) é um trabalho mais próximo talvez de TRABALHAR CANSA (2011), em que o sobrenatural aparece de maneira um pouco mais discreta, principalmente no primeiro segmento. Dividido em duas histórias, a primeira se passando na cidade, e a segunda no campo, o filme começa nos apresentando a uma mulher que perdeu tudo, vivida por Fernanda Vianna, que vai parar na casa da irmã em São Paulo, para recomeçar a vida. Muito bonito o modo como o filme apresenta o desenvolvimento da amizade da personagem com o sobrinho-neto e depois com suas colegas de emprego, num aplicativo que segue a lógico de um Uber ou um iFood, só que para faxineiras. Inclusive faz isso com certo sarcasmo e convidando à percepção de uma crueldade com o trabalhador. A segunda história, eu quase gosto tanto quanto da primeira, mas é verdade que ela se perde em determinado momento, especialmente com uma saída de cena de Bruna Linzmeyer. Ela e Mirella Façanha são duas mulheres da cidade que vão para o campo após a morte do pai de uma delas, para recomeçar a vida juntas num ambiente mais idílico. Eis que as coisas não saem como planejado. Gosto da cena de amor mais físico entre as duas, gosto da entrada em cena de uma terceira personagem feminina, mas o sobrenatural surge de forma menos sutil e pouco envolvente. Ainda assim, na pior das hipóteses podemos ver esse segundo segmento como uma espécie de bônus, como um presente para o espectador fã da diretora.
O AUGE DO HUMANO 3 (El Auge del Humano 3)
Este filme já começa estranho pelo título. O AUGE DO HUMANO 3 (2023). O diretor Eduardo Williams não fez o 2, pulou para o 3 (não deve curtir o número 2). Eu e meu amigo Walker ficamos fazendo piadas sobre ele não gostar dos filmes “2” das trilogias, de preferir O PODEROSO CHEFÃO – PARTE III, DE VOLTA PARA O FUTURO 3, JURASSIC PARK III etc. Mas a estranheza não para por aí e quem viu o primeiro filme já sabe que o que Williams oferece não é facilidade para o espectador, é desafio. Por isso, é bom já estar preparado para uma experiência bem diferente. Logo no começo, a câmera perambula por um lugar que parece ser o Sri Lanka (na verdade, achei que fosse a Índia), e a câmera mal mostra os rostos dessas pessoas, amigos que conversam um papo um tanto fragmentado, num plano-sequência que se demora por vários minutos. Adoro quando surge um amigo que lembra o outro de colocar o computador na geladeira (!). Há vários momentos viajantes. Gosto do começo, quando a câmera nos leva para o escuro da vegetação de uma praia. E depois quando o mesmo grupo está num outro país (Hong Kong, Peru etc.), o que torna a necessidade de compreender uma história dentro do tempo e do espaço em algo pouco importante. O que mais importa é viajar pelo que o filme oferece de sensorial, do que pequenas frases trazem, ou não trazem, sendo que o visual importa mais. Lá pelo final fiquei com um pouco de náuseas, pelos efeitos visuais pouco usuais. Só reclamaria um pouco da duração: duas horas é muito para uma obra tão experimental e tão desapegada de uma trama. Mas uma coisa é certa: senti-me muito grato pela oportunidade de ver um filme tão fora do comum no cinema, ainda que na sala só tenha estado presentes três espectadores. Mas talvez esse seja o número máximo permitido para ver O AUGE DO HUMANO 3. 😊
Luca Guadagnino vem mostrando uma vontade de fazer cinema invejável. Só neste ano, foram dois lançamentos seus. Se QUEER não vai ter a mesma repercussão de RIVAIS, é até compreensível, pois o filme dos tenistas talvez fale a um público maior – lembro que quando fui vê-lo no cinema algumas pessoas na fila se referiam a ele como “o filme de Zendaya”. Diria que QUEER guarda mais semelhanças com o meu favorito do diretor, ATÉ OS OSSOS (2022), que também apresenta personagens famintos, malditos e que perambulam pelo mundo. A diferença é que em ATÉ OS OSSOS esses personagens são literalmente canibais.
QUEER é dividido em três capítulos e um epílogo e são capítulos que têm uma cara muito própria. Gosto de como o diretor traz canções fora da época retratada (Nirvana, New Order, Prince, além de canções originais de Trent Reznor e Atticus Ross) de modo a dar um ar pós-punk e de decadência à história. O tom um tanto trágico da narrativa se dá pelo apaixonar-se do personagem, que perde um pouco sua expressão de superioridade e masculinidade para se mostrar muitas vezes ridículo frente ao jovem por quem se apaixona, Eugene, vivido por Drew Starkey.
A princípio, não gostei tanto do terceiro capítulo e fiquei com a impressão de que o filme sofreria de certa gordura, mas agora que relembro das cenas mais lisérgicas vejo que se trata de um momento bastante especial do filme, e que tem muito mais a ver com o Burroughs a que costumamos associar, o homem viciado em drogas que no cinema é mais lembrado por MISTÉRIOS E PAIXÕES, de David Cronenberg. Assim, tanto o terceiro capítulo, centrado na busca por uma planta na América do Sul (inclusive com uma participação incrível de Leslie Manville), quanto o primeiro (centrado no sexo) e o segundo (nas drogas), trazem cenas que ficarão grudadas em nossa memória por muito tempo. É o tipo de filme que se assemelha a uma droga que bate de forma retardatária.
+ TRÊS FILMES
RETRATO DE UM CERTO ORIENTE
Um desses filmes que parece ter faltado pouco para ser uma obra grandiosa, inclusive por ser um dos trabalhos mais ambiciosos de Marcelo Gomes, ao lado de JOAQUIM (2017). Em RETRATO DE UM CERTO ORIENTE (2024) acompanhamos a história de dois irmãos libaneses (um rapaz e uma moça) que fogem de seu país natal para tentar a sorte no Brasil. E o mais legal é ver o Brasil sendo apresentado primeiramente pelo norte: antes, por Belém, depois num navio rumo a Manaus e com uma escala numa aldeia indígena. Gomes sabe tanto tecer o drama de seus personagens e trazer uma heroína feminina encantadora (Wafa'a Celine Halawi) quanto nos deixar encantados com a pluralidade de culturas, línguas, comportamentos, crenças, e numa embalagem particularmente caprichada, especialmente quanto a natureza se destaca na fotografia em preto e branco. Gosto especialmente das cenas em que os personagens se mostram como detalhes em meio à vastidão de parte da Floresta Amazônica. As cenas de amor e sexo são também cheias de poesia: os amantes na floresta depois de terem chupado uma manga olhando para o outro, aquilo é cheio de uma lascividade encantadora. Achei curiosa a questão do ciúme do irmão pela irmã. Seria algo recorrente na obra de Milton Hatoum?
CIDADE; CAMPO
Juliana Rojas assina dois dos filmes de terror mais importantes e empolgantes da década passada: o longa AS BOAS MANEIRAS (2017), junto com Marco Dutra, e o curta O DUPLO (2012). Só por isso, cada novo trabalho seu merece a devida atenção e respeito. CIDADE; CAMPO (2024) é um trabalho mais próximo talvez de TRABALHAR CANSA (2011), em que o sobrenatural aparece de maneira um pouco mais discreta, principalmente no primeiro segmento. Dividido em duas histórias, a primeira se passando na cidade, e a segunda no campo, o filme começa nos apresentando a uma mulher que perdeu tudo, vivida por Fernanda Vianna, que vai parar na casa da irmã em São Paulo, para recomeçar a vida. Muito bonito o modo como o filme apresenta o desenvolvimento da amizade da personagem com o sobrinho-neto e depois com suas colegas de emprego, num aplicativo que segue a lógico de um Uber ou um iFood, só que para faxineiras. Inclusive faz isso com certo sarcasmo e convidando à percepção de uma crueldade com o trabalhador. A segunda história, eu quase gosto tanto quanto da primeira, mas é verdade que ela se perde em determinado momento, especialmente com uma saída de cena de Bruna Linzmeyer. Ela e Mirella Façanha são duas mulheres da cidade que vão para o campo após a morte do pai de uma delas, para recomeçar a vida juntas num ambiente mais idílico. Eis que as coisas não saem como planejado. Gosto da cena de amor mais físico entre as duas, gosto da entrada em cena de uma terceira personagem feminina, mas o sobrenatural surge de forma menos sutil e pouco envolvente. Ainda assim, na pior das hipóteses podemos ver esse segundo segmento como uma espécie de bônus, como um presente para o espectador fã da diretora.
O AUGE DO HUMANO 3 (El Auge del Humano 3)
Este filme já começa estranho pelo título. O AUGE DO HUMANO 3 (2023). O diretor Eduardo Williams não fez o 2, pulou para o 3 (não deve curtir o número 2). Eu e meu amigo Walker ficamos fazendo piadas sobre ele não gostar dos filmes “2” das trilogias, de preferir O PODEROSO CHEFÃO – PARTE III, DE VOLTA PARA O FUTURO 3, JURASSIC PARK III etc. Mas a estranheza não para por aí e quem viu o primeiro filme já sabe que o que Williams oferece não é facilidade para o espectador, é desafio. Por isso, é bom já estar preparado para uma experiência bem diferente. Logo no começo, a câmera perambula por um lugar que parece ser o Sri Lanka (na verdade, achei que fosse a Índia), e a câmera mal mostra os rostos dessas pessoas, amigos que conversam um papo um tanto fragmentado, num plano-sequência que se demora por vários minutos. Adoro quando surge um amigo que lembra o outro de colocar o computador na geladeira (!). Há vários momentos viajantes. Gosto do começo, quando a câmera nos leva para o escuro da vegetação de uma praia. E depois quando o mesmo grupo está num outro país (Hong Kong, Peru etc.), o que torna a necessidade de compreender uma história dentro do tempo e do espaço em algo pouco importante. O que mais importa é viajar pelo que o filme oferece de sensorial, do que pequenas frases trazem, ou não trazem, sendo que o visual importa mais. Lá pelo final fiquei com um pouco de náuseas, pelos efeitos visuais pouco usuais. Só reclamaria um pouco da duração: duas horas é muito para uma obra tão experimental e tão desapegada de uma trama. Mas uma coisa é certa: senti-me muito grato pela oportunidade de ver um filme tão fora do comum no cinema, ainda que na sala só tenha estado presentes três espectadores. Mas talvez esse seja o número máximo permitido para ver O AUGE DO HUMANO 3. 😊
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