terça-feira, fevereiro 13, 2024

O DIA QUE TE CONHECI



O cinema brasileiro está vivendo um momento excepcional. Já faz algum tempo que deixou de ser quase exclusividade de São Paulo e do Rio de Janeiro para surgir vivo e forte nos demais estados do país. Nos anos 2000, o cinema produzido em Pernambuco e Rio Grande do Sul se destacou, assim como o cinema produzido no Ceará. Eis que, principalmente a partir dos anos 2010, o cinema de Minas Gerais começou a se tornar um dos mais bonitos e criativos do Brasil. Parece que foi que saí do cinema encantado com filmes como ARÁBIA, de Affonso Uchôa e João Dumans, e NO CORAÇÃO DO MUNDO, de Gabriel Martins e Maurílio Martins. E há o principal cineasta desta nova onda do cinema mineiro, André Novais Oliveira.

O DIA QUE TE CONHECI (2023) é apenas o terceiro longa-metragem de Oliveira e ele parece ter chegado a um domínio de direção que beira o sublime. Lembrando que o primeiro curta do cineasta, FANTASMAS (2010), já me deixou muito empolgado. Empolgado e um tanto irritado, já que fiquei pensando: como não tive uma ideia dessas para fazer um filme com tão poucos recursos? Mas eu falei isso sem nunca ter pegado numa câmera profissional na vida. E FANTASMAS não foi uma sorte de principiante: foi talento, foi verve poética, como pudemos ver em seguida nos trabalhos posteriores, como o curta afetivo POUCO MAIS DE UM MÊS (2013), a declaração de amor aos pais com ELA VOLTA NA QUINTA (2014), a comédia QUINTAL (2015) e o aparentemente despojado TEMPORADA (2018).

Mesmo com uma carreira brilhante, ainda de poucos curtas e longas, arrisco dizer que O DIA QUE TE CONHECI é sua maior obra-prima até o momento. No novo filme, cada momento de seus 71 minutos é uma delícia, e os aplausos finais do público partiram do coração, de uma imensa gratidão, já que o cineasta não estava presente na sessão. Emocionado e feliz, eu via o sorriso de contentamento daquelas pessoas presentes na sessão especial do filme, na Mostra Retrospectativa do Cinema do Dragão.

Na trama de O DIA QUE TE CONHECI, Renato Novais (irmão do diretor) é um sujeito que trabalha na biblioteca de uma escola. Acontece que ele tem um problema em acordar cedo e isso vai acabar lhe trazendo uma notícia não muito feliz, como veremos a partir de sua primeira conversa com a personagem de Grace Passô, que faz uma secretária escolar. O diretor encanta com a graça dos diálogos logo no começo do filme (difícil não rir do diálogo entre o protagonista e o seu colega de habitação), mas também com as escolhas de câmera, com o uso econômico (e lindo) da música, com o amor que parece brotar de seu par de personagens que se reconhecem entre os poucos pretos de uma escola majoritariamente branca.

O DIA QUE TE CONHECI tem uma graça tão (aparentemente) simples que fica até difícil tecer palavras de exaltação, pois buscar tais palavras acaba se tornando complicado, levando em consideração que a resposta para a grandeza do filme está nas imagens e no som: as conversas dentro do carro (com a câmera localizada no banco traseiro), do lado de fora do bar (com um papo que envolve remédios de tarja preta), as situações no ônibus e num botequim (com a pausa para o pastel) ou a aproximação do casal na casa. Além do mais, a cena dos dois caminhando pela rua meio deserta de BH é de um encanto que remete aos grandes clássicos musicais da Velha Hollywood. Pelo menos, o espírito leve é semelhante. Talvez por isso a gente saia da sessão assim, como se sentisse tão leve e feliz quanto o Fred Astaire num filme como A RODA DA FORTUNA.

Em algumas críticas que li sobre o filme de Oliveira, percebi citações a Yasujiro Ozu e Abbas Kiarostami como possíveis influências ou conexões. E creio que têm fundamento. Há um cuidado com os silêncios (dentro e fora dos diálogos) que só grandes diretores que lidam com aspectos mais interiores de seus personagens sabem transformar em encanto. Mal posso esperar para rever o filme, quando entrar em cartaz em circuito.

+ DOIS FILMES

FOLHAS DE OUTONO (Kuolleet Lehdet)

Uma história de amor tão simples quanto deliciosa, contada com uma dramaturgia que tem um quê de Bresson, mas com humor embutido. Um homem e uma mulher solitários e da classe trabalhadora mais desfavorecida da Finlândia se encontram em momentos difíceis de suas vidas, mas nem tudo são flores para que fiquem juntos. A estrutura da trama de FOLHAS DE OUTONO (2023) lembra os velhos melodramas hollywoodianos, mas a forma é bem diferente. Gosto muito de como Aki Kaurismäki nos coloca num tempo situado entre o presente (a Guerra da Ucrânia), o passado (os velhos rádios) e o futuro (o calendário de 2024). Mas a preferência é pelo passado. Até porque é no passado que está a glória do cinema homenageado em cenas, cartazes e na própria sala de cinema da cidade. Um filme que traz ternura e amor num mundo em que imperam a dureza, a crueldade e a solidão.

AFIRE (Roter Himmel)

Uma alegria ter um filme novo do Christian Petzold nos cinemas. Trata-se de um realizador muito querido, ainda que dentro de um público ainda bem nichado. AFIRE (2023) segue sua uma tetralogia de filmes sobre os elementos da natureza, iniciada com EM TRÂNSITO (2018) e UNDINE (2020) e que incorpora algo de fantástico dentro de uma narrativa realista. Na trama, um jovem escritor (Thomas Schubert) vai para uma casa de veraneio com seu amigo (Langston Uibel), filho da dona da casa, e lá descobrem que já há uma pessoa instalada (Paula Beer). O personagem do escritor é um sujeito bem difícil de se gostar: é antipático, enjoado e se sente superior aos demais. Concentrado no próprio trabalho e no que as pessoas vão achar do seu texto, acaba não percebendo as coisas que acontecem a seu redor, como o fogo que começa a dominar a floresta. AFIRE é um filme que vai crescendo à medida que pensamos nele.

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