quinta-feira, agosto 15, 2024
MAIS PESADO É O CÉU
A figura de um bebê (ou de um feto) é recorrente nos trabalhos de Petrus Cariry. Em MÃE E FILHA (2011) a criança nasceu morta, mas a avó, em negação, prefere niná-la, “botá-la para dormir” na rede. A criança, geralmente associada ao futuro, deixa de existir. Como se o futuro também não existisse, o que existe são apenas paisagens desérticas, casas abandonadas, fantasmas. Em A PRAIA DO FIM DO MUNDO (2021), a criança está prestes a nascer. Uma das personagens está grávida e quer sair daquela cidade prestes a ser invadida pelo mar. Sua mãe, no entanto, não quer ir embora. Prefere ficar e até mesmo rasgar suas fotos, rasgar todos os seus registros de memória, como se tivesse a intenção de matar também o seu passado.
Em MAIS PESADO É O CÉU (2023), a criança está viva e chora constantemente para ser alimentada, como se fizesse questão de viver, não importando o mundo frio e tenebroso que receberá de herança. Ela fora abandonada dentro de um barco à beira do Açude Castanhão e é encontrada por Teresa (Ana Luiza Rios, O CLUBE DOS CANIBAIS), uma mulher que já morou na extinta cidade de Jaguaribara, agora coberta pelas águas. No caso da criança de MAIS PESADO É O CÉU, ela é agente propulsora da sobrevivência, já que ela, mais à frente batizada de Miguel, passa a ser o ponto de união para o casal vivido por Teresa e Antônio (Matheus Nachtergaele). Em comparação com as demais crianças, essa é a que mais parece ter um futuro, seja lá qual for esse futuro.
O universo de Petrus Cariry é para os fortes. Mas mesmo os fortes às vezes se veem numa situação tão difícil que acreditam que não vão mais suportar. MAIS PESADO É O CÉU, mesmo sendo um filme duro, eu diria que é o mais clássico do diretor, mas, como dá para perceber, ele faz isso sem deixar de lado suas marcas, suas obsessões. Talvez por isso seu sétimo longa tenha chegado ao circuito antes do excelente sexto, A PRAIA DO FIM DO MUNDO, mais hermético, por assim dizer.
O novo filme é mais convidativo ao grande público. Trata-se de uma espécie de "road movie a pé" com dois personagens vivendo vidas miseráveis numa cidade próxima a um açude que cobriu uma cidade inteira – há diversos diálogos sobre essa falta que a cidade faz, como se fosse uma falta na alma. E os diálogos muitas vezes são ditos em tom antinaturalista, o que causa um estranhamento bem-vindo. Na trama, Antônio e Teresa são duas pessoas que não têm para onde ir e que se encontram junto ao bebê que logo é "adotado" por ela e depois pelos dois. Teresa nunca chega a dizer que a criança não é sua, como se aquela criança fosse uma espécie de presente de Deus.
Em busca de um trabalho ou de qualquer coisa que traga um pouco de comida e sustento, andam feito fantasmas, feito mortos-vivos numa cidade que não os acolhe, a não ser por uma mulher (Sílvia Buarque), que parece destruir seus sonhos de sairem daquele lugar. Em alguns momentos parece uma espécie de O ANJO EXTERMINADOR, o filme de Luis Buñuel em que pessoas ficam presas misteriosamente numa casa. Aqui o espaço é maior, uma cidade com pessoas bem pouco afáveis (o que faz lembrar um pouco o incrível PELOS CAMINHOS DO INFERNO, de Ted Kotcheff), e isso vai se tornando ainda mais visível na busca de Teresa pelo dinheiro de cada dia, nas estradas. Essa busca pelo dinheiro é extremamente dura para a mulher: prostituir-se por uma miséria com caminhoneiros agressivos.
Petrus, como excelente diretor de fotografia que também é, enche a tela com aquele céu azul e bonito, mas que se torna ameaçador nos momentos finais, com as nuvens carregadas e com a trilha sonora de João Victor Barroso, que vai impregnando aos poucos a vida daquelas duas pessoas (e do bebê) de um ar crescente de perigo, mas um perigo diferente do que geralmente vemos em filmes de horror. No entanto, sabemos, sim, do carinho que Petrus tem pelo cinema de horror e como ele mesmo tratou de contribuir para o gênero mais explicitamente em CLARISSE OU ALGUMA COISA SOBRE NÓS DOIS (2015) e mais sutilmente em quase todos os demais trabalhos.
Aqui o perigo de um assassino à solta precisa disputar com a angústia e a falta de perspectiva dos heróis, esse sim o grande horror, o horror do dia a dia, o horror de morrer de fome, de perder cada vez mais o que lhes resta de dignidade. Tanto que em determinado momento, ao olhar para fotografias antigas de pessoas velhas e mortas, Antônio chega a pensar se não seria melhor estar morto. Até mesmo a cena de sexo entre os dois é uma cena totalmente despida de sensualidade, de vida mesmo. Teresa faz sexo com seu companheiro talvez por pena, ou talvez porque suas experiências sexuais de sobrevivência tenham sido apenas com pessoas destituídas de amor e ela quisesse um pouco de ternura.
A fotografia em scope, deslumbrante, valoriza os espaços da tela e nos traz aquela certeza de que é o cinema, a telona, e não a telinha da tevê, o lugar ideal para ver um filme dessa magnitude, de um de nossos maiores autores.
+ TRÊS FILMES
A METADE DE NÓS
Para um filme que se propõe a tratar do luto de um casal de idosos diante da perda do filho que cometeu suicídio, não sei se me senti tão comovido ou tocado. De todo modo, A METADE DE NÓS (2023), de Flavio Botelho, não tem uma estrutura de um melodrama. Sua abordagem é mais seca e mais dura, inclusive com a ausência de música. O filme fica um pouco mais problemático no momento em que passa a mostrar as diferentes maneiras com que os personagens de Denise Weinberg e Cacá Amaral lidam com a ausência do filho e o desconhecimento de seus problemas. Ainda assim, é um filme que se mantém sempre intrigante e interessante. O uso de uma fotografia em tons frios ajuda a compor o universo retratado.
UMA FAMÍLIA FELIZ
José Eduardo Belmonte faz sua segunda parceria com Grazi Massafera, mais de dez anos depois do muito interessante BILLI PIG (2012). Desta vez, sai a comédia e suas cores vibrantes, entra o suspense com toques de terror associado a muitas cenas escuras (infelizmente a sala 11 do Iguatemi também não estava em suas melhores condições e a fotografia de penumbras acaba ganhando esse elemento que mais prejudica). UMA FAMÍLIA FELIZ (2023) é um jogo de aparências, que vai deixando pistas e dúvidas sobre as ações dos personagens, seja a protagonista (Eva, Grazi), seja o marido (Vicente, Reynaldo Gianecchini). Eva é uma mulher que tem uma empresa de confecção de bonecas hiperrealistas que tem uma criança com o marido, Vicente, um homem carinhoso, mas que de vez em quando se apresenta pouco compreensivo com ela. O filme vai ganhando contornos de suspense gradualmente, mas o tom já é dado a partir do prólogo, retirado de uma cena de sua parte final. O jogo que Belmonte faz com o cinema de horror mais clássico é muito interessante, tanto quando apresenta as bonecas, quanto quando mostra as gêmeas, que às vezes lembram as meninas fantasmas de O ILUMINADO. As duas meninas são filhas do casamento anterior de Vicente, mas tratam Eva como mãe e certas informações são passadas muito suavemente ao longo da trama. O ideal é ver o filme sabendo o mínimo possível, de modo que as viradas de roteiro sejam melhor apreciadas. Vale destacar também a excelente performance de Grazi. Em alguns momentos, sua atuação faz lembrar a de protagonistas de filmes de Roman Polanski, como REPULSA AO SEXO e O BEBÊ DE ROSEMARY, esse último por conta do sentimento de paranoia por que ela passa, e que contamina a audiência. O filme é baseado no romance homônimo de Raphael Montes, escritor que se tornou mais famoso recentemente, graças ao sucesso da série BOM DIA, VERÔNICA. Aqui ele assume também o papel de roteirista.
REPRESA
Foi interessante ver REPRESA (2023) um dia após ter experienciado A CIDADE DOS ABISMOS. Sair de uma obra tão experimental e mais vanguardista, por assim dizer, para assistir a uma narrativa mais naturalista e aparentemente simples foi quase um choque. Felizmente um choque muito bom, já que o diretor Diego Hoefel tem um domínio de direção de atores excelente, o que faz com que personagens do sertão cearense pareçam estar sendo eles mesmos, e não interpretando um papel, principalmente Gil Magalhães, que interpreta Robson, o homem que trabalha como guia turístico do local. Além do mais, os momentos engraçados aliviam bastante o drama dos personagens. Na trama, Renato Linhares (ANA. SEM TÍTULO) é um homem gaúcho que chega a um espaço árido no sertão cearense cujas pessoas vivem o luto de ter perdido uma cidade inteira para a construção de uma represa. REPRESA foi exibido no Festival de Roderdã e é uma produção da Tardo de Ticiana Augusto Lima, que esteve presente junto com o diretor Diego Hoefel e equipe à sessão especial no Cinema do Dragão.
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