sexta-feira, dezembro 03, 2021

A PRAIA DO FIM DO MUNDO



Aquilo que nos mantém de certa forma vivos na Terra após a nossa partida são as memórias. Por isso muitas dessas memórias são mantidas vivas através de textos, vídeos, filmes, relatos ou qualquer forma de arte. Até mesmo a própria narração oral pode ser um caminho, embora um caminho mais frágil. Há uma cena em A PRAIA DO FIM DO MUNDO (2021), de Petrus Cariry, que é de partir o coração daqueles que valorizam as memórias: Helena, a personagem de Marcélia Cartaxo, depois de tanto olhar para seu álbum de fotografias, resolve rasgá-las e empurrá-las para debaixo da cama. Para a filha Alice (Fátima Muniz, do ótimo PAJEÚ, de Pedro Diógenes), ela não conta muito sobre o passado, sobre o pai que desapareceu engolido pelo mar.

É possível dizer que tanto mãe quanto filha têm um interesse em algum tipo de preservação. A filha é ambientalista, enquanto a mãe tem um apego doentio pela casa que está prestes a ser destruída pelo mar. Ir embora significaria abandonar aquilo que representa a materialização de toda sua história de vida. Por causa da grande ressaca, no vilarejo fictício de Ciarema, todos os habitantes estão indo embora, restando apenas Helena, Alice e, até certo ponto, a amiga de Alice, a jovem Elisa (Larissa Góes).

Há muito o que se impressionar com A PRAIA DO FIM DO MUNDO, já que é o filme que mais dialoga com as diferentes obras de seu diretor. Vê-lo, além de ser fascinante pela força das imagens e dos sons, é uma forma de ficar um pouco mais próximo da compreensão de suas obsessões. Até mesmo em um documentário sobre Orson Welles, A JANGADA DE WELLES (2019), codirigido por Firmino Holanda, há a história dos pescadores que foram engolidos pelo mar. Sim, o mar que também é protagonista de O BARCO (2018), nunca pareceu tão assustador quanto agora. 

E se há o mar, a relação entre mãe e filha, a memória, há também a tristeza dos vilarejos abandonados, como o filmado no curta DOS RESTOS E DAS SOLIDÕES (2006) e depois novamente visto no primeiro filme de Petrus que flerta com o horror, MÃE E FILHA (2011). E há a luz, o modo como o cineasta faz ela parecer mágica nos espaços internos, e também nos exteriores.

A opção por filmar em preto e branco, e em janela 1,37:1, traz ainda mais força para o que é apresentado aos nossos olhos. Especialmente quando o objetivo de transformar o filme em um drama misterioso de horror encontra ecos em obras como O FAROL, de Robert Eggars, e TWIN PEAKS – THE RETURN, de David Lynch (penso em especial no episódio 8, talvez por causa da visão do escafandro). Pode parecer apenas coincidência esse tipo de relação, mas influências nem sempre nascem de maneira consciente. Além do mais, não dá para negar que muito da força do cinema de Petrus Cariry está em seu pleno domínio da direção de fotografia e também de seu interesse em destacar o som.

Uma das leituras possíveis a se fazer de A PRAIA DO FIM DO MUNDO é imaginá-lo como uma alegoria do Brasil. O lugar que parece estar prestes a ser destruído e que parece nos enxotar é o mesmo lugar que nos é caro, que nos faz querer acreditar que a estrutura de nossa casa será forte o suficiente para que possamos sobreviver e acreditar que o futuro, representado pelo bebê no ventre de Alice, pode existir além dos fantasmas que ali habitam.

Eis um filme que certamente se beneficiará de diversas revisões quando estrear em circuito comercial. Gosto do mistério e de ficar sem entender certas coisas. Sair da sessão de A PRAIA DO FIM DO MUNDO foi como sair de um sonho, um sonho saído da cabeça de seu realizador e de seu parceiro, o corroteirista Firmino Holanda, mas compartilhado com o espectador que se sente de alguma maneira tocado pelo que experienciou.

+ DOIS CURTAS

FOI UM TEMPO DE POESIA

Em FOI UM TEMPO DE POESIA (2021), Petrus Cariry conta uma história muito pessoal de sua relação com o grande poeta do sertão cearense Patativa do Assaré. Petrus, hoje cineasta consagrado, encontrou imagens em Super-8 de Patativa com ele, criança. Imagina só ser afilhado do poeta e ter a oportunidade de usar essas imagens, intercalando sua própria relação com o biografado e o áudio do próprio Patativa recitando alguns de seus antológicos versos, falando, entre outras coisas, sobre sua difícil relação com a cidade grande, a preferência pelo sertão, e também mostrando sua visão política em relação às injustiças provocadas pela elite econômica brasileira com a população pobre. Interessante essa breve fase do diretor de voltar ao documentário, logo após A JANGADA DE WELLES (2019), um projeto mais ambicioso.

O DURIÃO PROIBIDO

Acho muito legal esse trabalho de aproveitar filmagens de viagem e conseguir montar e contar uma história muito própria e muito pessoal em formato narrativo próximo à ficção. Em O DURIÃO PROIBIDO (2021), o diretor/narrador Txai Ferraz conhece em uma viagem para a Tailândia um rapaz japonês por quem se apaixona. O título do filme se refere a uma fruta de aroma muito forte da Ásia e que, por isso, é proibido de ser comido em vários ambientes. Muito provavelmente há uma espécie de alegoria com a relação do protagonista com o japonês.

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