quarta-feira, janeiro 17, 2024
TRENQUE LAUQUEN
Nem parece que estou de férias (e vejo essas férias passarem voando, é impressionante). Tenho visto poucos filmes, viajei apenas por três dias, mas a verdade é que não estou conseguindo administrar muito bem meu tempo – a função dos smartphones é deixar a gente ainda menos focado. No mais, coisas para resolver não faltam. Mas paremos um pouco para falar sobre um dos filmes mais extraordinários da safra recente, TRENQUE LAUQUEN (2023), de Laura Citarella, que é um filme que vai contra este momento em que vivemos, de falta de foco, de necessidade de relaxar e acompanhar uma longa narrativa, com prazer.
Ao que parece, existe uma força contrária a essa tendência atual de as pessoas terem se acostumado a vídeos curtíssimos no celular, de ficarem cada vez mais impacientes, sem foco e indispostas a narrativas longas e lentas. De vez em quando essas pessoas (ou algumas pessoas) querem se desligar do celular e se perder num filme como este, de 4h21 de duração – maior que as 3h30 do épico de Scorsese, e por isso mesmo com mais dificuldade de encontrar espaço no circuito, mesmo o alternativo.
TRENQUE LAUQUEN, de título não muito atraente – a não ser talvez para os argentinos, que conhecem a cidade com esse nome –, chegou à primeira posição do top 10 da Cahiers du Cinéma do ano passado e chamou a atenção de um número maior de cinéfilos. A maioria, como eu, sequer havia ouvido falar na diretora (eu, inclusive).
A sensação de ver o filme é tão deliciosa quanto a de ver LA FLOR (2018), o lendário filme de mais de 13 horas de Mariano Llinás, que é colaborador de roteiro e edição deste. Aliás, a atriz principal do filme de Laura Citarelli, Laura Paredes, assim como Elisa Carricajo, que desempenha papel fundamental na história, são estrelas do opus de Llinás. O que mais me encantou em TRENQUE LAUQUEN foi a junção do mistério com o amor. Ou o amor pelo mistério, que Laura (a atriz e a personagem) deixa transparecer no brilho de seus olhos e faz encantar seu parceiro de investigação Ezequiel (Ezequiel Pierri).
O interessante é que todo o jogo envolvendo as cartas de amor encontradas em livros de biblioteca acaba por se transformar em outra coisa ao longo da narrativa. E isso é muito bom para o filme, quando suas histórias vão se desenvolvendo à medida que as tramas de cada personagem, no passado ou no presente, juntam-se para formar um belo quebra-cabeças. Do ponto de vista do lirismo e do mistério, principalmente. O penúltimo capítulo, que destaco, é tão envolvente que não chega a incomodar o fato de ele ser o mais longo (suponho). Ao contrário, poderia até ser maior, já que é um deleite. A falta de pressa de Citarelli encanta, e adoro algumas cenas com diálogos entre personagens, como as cenas entre Rafael (Rafael Spregelburd) e Normita (Cecilia Rainero); ou Laura e Elisa Esperanza (Elisa Carricajo), enquanto esta acaricia sua barriga de gestante, com um sorriso sereno – e isso no meio de uma situação de mistério e muita curiosidade.
TRENQUE LAUQUEN é uma declaração de amor às narrativas que traz ainda um monte de ousadias que faz com que o cinema argentino se eleve em nosso conceito – recentemente eu já havia me encantado com a proposta formal de OS DELINQUENTES, de Rodrigo Moreno, mas o filme de Citarelli traz uma proposta ainda mais audaciosa. E não apenas pelo aspecto de maratona relativo à sua duração, mas por fugir, com frequência, ao que se espera da trama.
Por exemplo, logo no início do filme somos apresentados a dois homens, Rafael e Ezequiel, que estão à procura de uma mulher, uma botânica de nome Laura, que foi embora sem deixar vestígio aparente. Rafael, namorado de Laura, é o cara que conduz com mais atividade a busca, enquanto Ezequiel segue calado. Acontece que é Ezequiel quem sabe mais de Laura, conforme saberemos no capítulo seguinte, que se concentrará na relação estabelecida entre Ezequiel e Laura, e a histórias de cartas de amor de décadas passadas encontradas em livros. Depois veremos um flashback de Rafael, e tudo sem pressa nenhuma, com longas tomadas, longos planos-sequência, conversas espaçadas, mas altamente saborosas. Acontece que as coisas mudam em “Trenque Lauquen – Parte II”, quando ficamos sabendo por onde anda Laura e o que ela anda fazendo. Trata-se de um convite a nos perdermos junto com a personagem por caminhos totalmente inusitados.
A própria diretora, em entrevista presente no site da BFI conta que o seu maior interesse é nunca encerrar o mistério, nunca fechar, nunca dar respostas prontas. E é isso que eu gosto também no filme, esse caráter meio Lynch, meio Borges. Por isso há essa vontade de começar um novo mistério na parte dois sem que o mistério da primeira parte seja solucionado.
Quatro curiosidades:
1) Laura Paredes já havia interpretado a personagem Laura em outro filme de Citarelli, OSTENDE (2011). E isso me deixou muito curioso para conferir essa obra.
2) TRENQUE LAUQUEN levou seis anos para ser finalizado.
3) O primeiro capítulo se chama “La Aventura” e sua trama guarda semelhanças com o clássico A AVENTURA, de Michelangelo Antonioni.
4) Ezequiel Pierri não é ator profissional: ele é marido da diretora e o papel foi criado para ele.
+ DOIS FILMES
A SOCIEDADE DE NEVE (La Sociedad de la Nieve)
Não resta dúvida que A SOCIEDADE DE NEVE (2023) é um filme muito envolvente, ainda mais que a história real em si é incrível. Lembro que quando criança eu vi no SBT a produção mexicana SOBREVIVENTES DOS ANDES (1976), a primeira a tratar do caso, e fiquei muito impressionado com essa história de pessoas tendo que comer carne humana para sobreviver na montanha. A escolha de J.A. Bayona para esta terceira versão da história (a outra foi dirigida por Frank Marshall: VIVOS, de 1993) foi acertada, levando em consideração o resultado de O IMPOSSÍVEL (2012), quando o diretor soube tratar de uma tragédia de grandes proporções com muito talento e carregando no melodrama, sem medo. Aqui, no entanto, senti falta de um trabalho melhor com o desenvolvimento dos personagens. Lidar com tantos, sem saber muito sobre eles (o início é bem apressado) dificultou para mim um maior envolvimento com a situação dramática. As cenas que comoveram a muitos, por exemplo, não conseguiram ter o mesmo efeito em mim. No entanto, não há como negar a ótima produção, a caprichada cena do desastre aéreo, a boa escolha de elenco e a opção por ser o menos "exploitation" e o mais respeitador possível com todos os envolvidos no acidente.
PUAN
Os olhos do mundo estão voltados para a Argentina atualmente. Infelizmente por perceber que o país, que já não está bem das pernas há muitos anos, está sob risco maior nas mãos de um louco de extrema direita. E esse clima é sentido em PUAN (2023), de María Alché e Benjamín Naishtat, por mais que haja também a intenção de tratar a insegurança do protagonista de maneira leve. Logo numa das primeiras cenas, o filme nos conquista com algo parecido com o que se via nas screwball comedies dos anos 30. São risos que duram bons minutos. Para depois ir nos colocando aos poucos nos dilemas desse professor de filosofia que se vê ameaçado quando chega um outro colega, da Alemanha, e com muito mais esperteza de conquistar as pessoas do que ele. Gosto muito de como o filme vai levando esse homem para seu destino final, que pode ser o de reconquista ou de fracasso. Ou talvez um pouco dos dois, dada a melancolia portenha no próprio filme reconhecida até com certo orgulho.
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