domingo, janeiro 28, 2024

PRISCILLA



Vi PRISCILLA (2023) duas vezes no cinema – a segunda, com a Giselle, que ficou um bocado mexida com a obra. Segui achando o filme tão bom quanto na primeira vez. Tão elegante quanto incômodo, embora esse segundo aspecto diminua quando se vê uma segunda ou terceira vez, por razões óbvias. Na primeira vez, eu sentia vontade de jogar o meu sapato na tela do cinema, a cada tortura passiva imposta por Elvis a Priscilla. O que não diminuiu foi a alegria das pequenas vitórias da protagonista frente a sua relação nada saudável com o Rei do Rock.

Talvez o melhor filme de Sofia Coppola desde UM LUGAR QUALQUER (2010), PRISCILLA é mais um exemplar da especialidade da diretora em lidar com o universo de pessoas aristocratas (ou próximas disso), bem como com a solidão imensa de personagens femininas. Nesse ponto, é possível pensar em PRISCILLA como o filme mais próximo de seu longa-metragem de estreia, AS VIRGENS SUICIDAS (1999) – embora visualmente (e até na questão do desejo) esteja também muito próximo de O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS (2017). Seus tons pastéis e baby pinks estão de volta, inclusive.

Cada vez que vemos Cailee Spaeny (Priscilla) naquela mansão imensa que é Graceland, profundamente sozinha, pensamos na angústia e no mal estar também das meninas do filme de estreia de Coppola. A baixa estatura de Spaeny, aliás, foi uma escolha acertada para se destacar esse aspecto. Não apenas para trabalhar a adolescência da menina Priscilla naquele espaço habitado principalmente por homens, mas nas cenas em que ela está sozinha também.

No começo do filme, depois que a protagonista é apresentada, numa lanchonete alemã do início da década de 1960, fiquei aguardando, inclusive, uma outra atriz para interpretar a personagem quando adulta. Mas ter ganhado prêmio de melhor atriz em Veneza não foi um gesto qualquer para Cailee Spaeny. O fato de ela ter cerca de um metro e meio de altura contra os quase dois de Jacob Elordi ajuda a trazer um sentimento de opressão frente àquele homem que a tem como uma boneca de porcelana.

O que vemos é um outro tipo de abuso, que maltrata talvez mais que o da violência física. Adoro o final, uma dessas escolhas acertadas de quando acabar o filme. E não importa se o que é mostrado no filme é verdade; o que importa é a verdade do filme. No mais, sigo bastante intrigado com o modo explicitamente sombrio com que o cantor é pintado, a ponto de a diretora optar por fugir do ponto de vista da heroína por um instante para mostrá-lo abrindo suas asas como anjo caído em apresentação em Las Vegas. (E de fato, naquele momento da vida, ele estava, sim, caído e decadente.) 

Quando Priscilla deixa Graceland, aquilo é um momento de muita libertação, por mais que a letra da canção “I will always love you”, na voz de Dolly Parton, diga muito sobre um sentimento ainda de amor e de dor na partida. Linda demais!

+ DOIS FILMES

SAINT OMER

Eis um filme que pede uma reeducação do ouvir. Enquanto vemos SAINT OMER (2022), precisamos estar atentos e também muito sensíveis aos relatos da ré, uma mulher que reconhece – embora se julgue inocente, o que pode parecer contraditório – o afogamento de sua própria filha de pouco mais de um ano de idade. A primeira imagem de Guslagie Malanda surgindo no tribunal algemada é uma visão que remete aos tempos da escravidão. E certamente essa impressão é deliberada por parte de Alice Diop (são tantas pessoas brancas naquele espaço). O que me chamou a atenção foi o caráter humano do julgamento, que começa por querer entender aquela mulher, suas origens e o que a motivou a fazer o que fez. Há as palavras duras do promotor de justiça, mas há também depoimentos de testemunhas que são também bastante duros e por vezes reveladores, como o do pai biológico da criança, o tipo clássico de homem que quer tirar o corpo fora. E há, a todo o momento, a constatação do racismo estrutural. Gosto também de como o filme é elegante em sua forma. A cena da escolha do júri remete a Robert Bresson e há um cuidado com as cores (pele, roupa, parede) que ajuda a engrandecer a obra.

LEVANTE

O ponto de partida de LEVANTE (2023), de Lillah Halla, pode até fazer lembrar o francês O ACONTECIMENTO, de Audrey Diwan. Ambos são filmes sobre jovens mulheres que não querem que uma gravidez indesejada atrapalhe seus planos para o futuro. O filme brasileiro, no entanto, tem mais espaço para o humor, já que a trama lida com um grupo de jogadoras de vôlei, boa parte delas LGBTIQIA+ e o clima da turma é bem alto astral. A situação da protagonista traz tensão, pois está-se diante de algo que ainda é legalmente proibido no Brasil, sem falar que há toda uma questão de julgamento da população. O filme tem uma bandeira pró-aborto bem clara e aberta. Não se trata apenas de defender casos especiais, mas de defender o direito da mulher de fazer o que deseja com seu próprio corpo. Não sei se gosto das personagens que funcionam como vilãs da história, mas talvez tenha sido importante para a diretora pintá-las como ridículas. LEVANTE tem também aspectos visuais que chamam a atenção, positivamente. Um belo longa de estreia.

Nenhum comentário: