quinta-feira, julho 21, 2022

O ACONTECIMENTO (L'Événement)



Eu me lembro de quando, criança, estava com minha mãe na sala da minha casa. Na época, havia apenas um pequeno muro na fachada e um portão que se abria sem a necessidade de ter um cadeado ou algo parecido. Eram tempos mais seguros. Mas falo isso apenas para localizar o tempo e o momento, que me marcou bastante, a ponto de ficar em minha lembrança, mesmo tendo eu apenas sete ou oito anos de idade. Chegou uma pessoa da família para dar uma notícia. A notícia de que minha tia, uma das irmãs da minha mãe, havia morrido. Na época, eu não soube o motivo. Mas lembro de minha mãe correndo para a cozinha para chorar. 

Anos depois, já adulto, conversando com minha mãe, ela me contou que quando engravidou de minha irmã número dois, essa mesma tia também havia engravidado, mas que havia contado que tiraria o feto. Infelizmente, ela não sobreviveu ao procedimento. Na verdade, não sei qual foi o procedimento: se em um lugar onde se fazia o aborto de maneira clandestina ou se foi alguma outra técnica também desaconselhada. O fato é que o aborto é uma questão de saúde pública e minha tia não teria morrido se houvesse clínicas legalizadas, com médicos de verdade atendendo. Claro que alguém vai dizer que ela morreu pois optou pelo aborto, provavelmente sabendo dos riscos, mas há também a questão de poder ter o controle do próprio corpo.

Por incrível que pareça, mesmo estando em 2022, o tema do aborto voltou a ser ainda mais tabu do que há vinte anos. Nos Estados Unidos, com a Suprema Corte revogando o direito ao aborto conseguido em 1973, o caminho para que o mundo dito livre chegue novamente à criminalização volta a ser a tendência. Enquanto isso, grupos progressistas vêm lutando para que o direito das mulheres ao controle do próprio corpo seja conquistado. A Argentina, por exemplo, legalizou o aborto em até a semana 14 da gestação em 2020.

O ACONTECIMENTO (2021), vencedor do Leão de Ouro em Veneza, chega como uma obra que é muito bem-vinda para trazer à tona a discussão. Trata-se de mais um título a se juntar aos já ótimos exemplares sobre o assunto. Depois de sofrermos em filmes como 4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS, de Cristian Mungiu, e NUNCA, RARAMENTE, ÀS VEZES, SEMPRE, de Eliza Hittman, recebemos outra pedrada. E vemos que a premiação em Veneza não se deveu apenas à relevância do filme, mas principalmente às inúmeras qualidades dessa obra de impacto.

Optando por uma janela mais "apertada" para os padrões atuais (1,37:1), com uma trilha sonora bem discreta (o silêncio predomina) e frequente uso da câmera na mão, Audrey Diwan nos leva ao inferno da vida da jovem Anne (Anamaria Vartolomei, excelente), que descobre que está grávida e tem muita dificuldade em conseguir fazer o aborto, na França de 1963.

A história acontece dentro de um campus universitário. A princípio, não chegamos a conhecer o pai biológico da criança e isso é um detalhe importante. Ao descobrir que está grávida, Anne opta por não contar nada a ele. Afinal, o que eles tiveram foi uma noite de sexo sem compromisso. Por isso, ela primeiramente prefere procurar médicos que possam ajudá-la. Em vez disso, um dos médicos opta dificulta ainda mais a tentativa de um procedimento forçado.

Desesperada, e sem querer prejudicar sua carreira nos estudos e o seu futuro profissional – ela é estudante de letras –, Anne procura caminhos bem pouco recomendados para encerrar, dolorosamente, sua situação. Procurando em livros de medicina na biblioteca e tendo que se virar sozinha com um objeto pontiagudo perfurando seu útero, cada momento é um tormento também para o espectador. E quando achamos que a situação não pode piorar, o filme chega a querer nos fazer virar o rosto. Tensão, desespero, tristeza, indignação, muitos sentimentos surgem ao longo da metragem de O ACONTECIMENTO. 

Antes deste seu longa-metragem aclamado, a cineasta Audrey Diwan havia dirigido apenas um filme em sua curta carreira de diretora até o momento, o inédito no Brasil MAIS VOUS ÊTES FOUS (2019), que já fiquei bastante curioso para conferir. Quanto à França, mesmo com a fama de ser um país moderno e progressista, percebemos mais uma vez que quando o progresso é para ser em benefício da mulher, as coisas são bem mais difíceis de acontecer. 

+ DOIS FILMES

KOMPROMAT

Que beleza de surpresa este drama tenso e cheio de suspense sobre diretor da Aliança Francesa na Rússia que é preso, acusado de abusar da própria filha e de pornografia infantil na internet. KOMPROMAT (2022), de Jérôme Salle, tem uma bela estrutura de idas e vindas no tempo que funciona para não quebrar o ritmo da trama principal, já que os flashbacks são pontuais a fim de sabermos determinados motivos (mesmo que não sejam exatamente motivos) que possivelmente tenham levado a sua prisão. A história fica melhor ainda quando o protagonista (Gilles Lellouche) recebe liberdade condicional, o que só torna o filme ainda mais tenso. Há ótimas cenas de perseguição, diálogos certeiros e básicos para um thriller, produção caprichada e um herói construído a partir da luta pela sobrevivência. No mais, fiquei com aquela vontade de nunca pisar na Rússia, de tanto medo que o filme me fez ter daquele ambiente hostil (pessoas frias e pouco simpáticas, tempo gelado, alfabeto diferente). Até a moça que tem um papel de ajudar o protagonista, a gente demora a confiar. Aliás, ótima personagem, vivida por Joanna Kulig, lembrada pelo ótimo GUERRA FRIA, de Pawel Pawlikowski.

O MUNDO DE ONTEM (Le Monde d'Hier)

Não consegui me envolver com este drama político, apesar de trazer muitas conexões e preocupações com o momento atual, com vários países flertando com a extrema direita em um cenário global que cada vez lembra o dos anos 1930 na Europa. Em O MUNDO DE ONTEM (2022), de Diastème, temos a história de uma presidenta que, em seus últimos dias no cargo e prestes a passar o bastão para seu sucessor, se vê obrigada a tomar uma difícil decisão relativa ao destino da França. A opção de Diastème, homem de carreira mista, como jornalista, crítico de cinema, dramaturgo e músico, é de cenas que se passam sempre em espaços fechados. Mesmo quando ações mais intensas ocorrem, elas só nos são ditas através de mensagens, conversas etc. A atriz, Léa Drucker, é a mesma do ótimo e tenso CUSTÓDIA, de Xavier Legrand, presente em uma outra edição da Mostra Varilux de Cinema Francês. Aqui, de modo a manter o tom do cargo, ela faz uma personagem de emoções mais contidas.

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