Não tenho por hábito rever filmes com um intervalo de tempo relativamente curto. A primeira e última vez que vi BEM-VINDO A NOVA YORK (2014) foi no ano do lançamento mundial do filme, e, pelo que acabei de reler no que escrevi sobre a obra na época, gostei bastante. Na época, fiquei procurando compreender melhor aquilo que hoje pareceria um pouco mais fácil, já que tive a oportunidade, durante a quarentena, de ver e rever as obras de Abel Ferrara e ter um pouco mais de intimidade com suas obsessões. Então, acho até que não farei um texto melhor do que o que escrevi em 2014 (até por não estar me sentindo muito bem hoje), mas tentarei estabelecer elos de ligação entre o alto executivo viciado em sexo sr. Devereaux (Gérard Depardieu) e outros personagens saídos do universo do diretor.
A primeira semelhança que vemos, principalmente durante a primeira meia hora de filme, que corresponderia ao primeiro ato, é com o mau policial de VÍCIO FRENÉTICO (1992), só que muito menos consciente da culpa. O que há de comum entre os dois personagens é essa aproximação com os excessos. No caso de Devereaux, os excessos vêm de sua libido exacerbada. Como tem dinheiro, promove longas orgias com amigos e prostitutas em hotéis de luxo. Memorável a cena do milk shake feito com Cialis, sorvete e bebida alcoólica. Até lembra alguns filmes de Khouri, essa cena. Destaque também para a primeira cena de sexo no hotel com uma das prostitutas, acentuando o corpo gigante e rotundo de um Depardieu sessentão, que já teve seus momentos de galã no passado.
O ator não se importa de mostrar o corpo nu, gigante e frágil na cena em que precisa tirar a roupa para ser examinado por uma dupla de policiais, quando está preso. Mas isso já é o momento do segundo ato, que é o momento da prisão, acontecida após ter atacado uma camareira do hotel, forçando-a a fazer sexo oral. Com a ajuda da esposa (Jacqueline Bisset), ele tem chances de escapar da prisão por estupro.
O curioso de BEM-VINDO A NOVA YORK é que é muito menos um filme anti-estupro, em sintonia com os novos tempos, muito mais atentos aos direitos das mulheres agredidas e assediadas por homens perigosos, e mais uma reflexão sobre a compreensão ou incompreensão de seu personagem de seus próprios atos. Ao contrário da vampira estudante de filosofia de O VÍCIO (1995), o caminho dos excessos de Devereaux não o levou a uma compreensão de que algo deveria ser feito e, com isso, ir em busca de redenção/autodestruição. Devereaux talvez seja um dos vampiros mais complexos da obra ferrariana, já que pode ser tanto inconsciente de sua culpa, pelo menos no que se refere ao estupro, quanto parece ser consciente de sua maldade, especialmente quando fala diretamente para a câmera, quebrando a quarta parede.
O ataque que ele faz em nova tentativa de estupro a uma jornalista (Shanyn Leigh) é mais uma prova de que o monstro continua à solta, ao mesmo tempo que também vemos um flashback interessante, em que o personagem leva para a cama, consensualmente, uma jovem estudante de Direito, em uma cena tranquila e bonita, que traz equilíbrio para as ações de Devereaux, tornando-o, no fim, mais um escravo do desejo do que um agente do mal.
+ TRÊS FILMES
O JOVEM AHMED (Le Jeune Ahmed)
Por mais que Jean-Pierre e Luc Dardenne tenham deixado de ser tão queridos pela crítica, diria que eles voltam aqui à boa forma com a história impressionante de um jovem muçulmano fanático que, uma vez tendo sofrido lavagem cerebral de um líder religioso local, um imã, que apresenta ao rapaz regras tão duras que ele é capaz de ver pecado em tudo. E, pior, é capaz de cometer atos terríveis em prol daquilo que ele acredita ser o certo. Os Dardennes contam sua história mais uma vez com a tradicional aproximação (ainda que nem tanto) da câmera no corpo do seu protagonista. Aqui somos chamados a acompanhar os seus atos, mas é impossível não julgá-lo (ou julgar aqueles que fizeram sua cabeça). Somos espectadores, não cúmplices. Isso faz um sentido e tanto para uma apreciação crítica da narrativa e do personagem. O filme foi vencedor do prêmio de melhor direção em Cannes-2019.
O SEGREDO DE DAVI
Os maiores méritos deste filme são a beleza plástica e a interpretação do jovem Nicolas Prattes, como o jovem psicopata do título. O filme tem enganado muita gente com um visual que parece filme americano, com uma fotografia bem bonita e um jogo de luz e sombras bem cuidado. Só achei problemático no roteiro, que poderia ser mais caprichado, já que as ideias são boas. Mas é esperar pelo próximo trabalho de Diego Freitas. Pode ser muito bom. Ano: 2018.
ESCOBAR - A TRAIÇÃO (Loving Pablo)
Depois de NARCOS fica difícil a gente aturar um filme falado em inglês com sotaque. Ainda mais com dois feras como o Javier Bardem e a Penélope Cruz. E uma produção espanhola, ainda por cima. Isso que é querer agradar os americanos, hein. Além disso, o filme é um resumão mal feito da história fascinante e terrível de Pablo Escobar, ainda que focando mais na relação dele com a jornalista. Direção: Fernando León de Aranoa. Ano: 2017.
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