Estamos vivendo em um momento tão bizarro, que ficamos carentes de encontrar elos em comum nos filmes com a nossa situação atual, já que virou uma espécie de utopia pensar em um mundo com as gostosas aglomerações de outrora. Não sou folião de carnaval, mas o que dizer do cinema (principalmente o cinema, claro), do teatro, dos shows, dos encontros em bares, praias, dos encontros íntimos etc.? Então, de vez em quando recebemos uma espécie de mensagem vinda de um outro tempo, como um manuscrito encontrado em uma garrafa. Foi o caso de quando vi DILLINGER ESTÁ MORTO (1969), por ocasião da morte de Michel Piccoli, mas também por uma indicação do querido amigo Chico Fireman. Já até havia deixado reservado outro filme estrelado pelo grande ator, mas este aqui furou a fila.
Fiquei muito curioso para ver este filme dirigido por Marco Ferreri, que até então eu conhecia mais por trabalhos que lidavam com as paixões, sejam elas mais carnais (A CARNE, 1991), existenciais (A COMILANÇA, 1973) ou extremamente passionais, como em A ÚLTIMA MULHER (1976) e CRÔNICA DE UM AMOR LOUCO (1981). Então, foi com muita surpresa que percebi que Ferreri é um cineasta muito mais ousado, versátil e amplo em seus interesses e obsessões do que eu imaginava.
DILLINGER ESTÁ MORTO, já com meia-hora de duração, nos deixa pensando sobre o que estamos vendo. Afinal, seria um filme sobre o prazer encontrado com a solidão e as diversas formas de aproveitar o ócio? Sobre o aproveitamento da arte (música - inclusive brasileira -, cinema, artes plásticas, culinária, jogos sexuais) para construção de novas formas de arte, mais efêmeras, mas não menos importantes? Qual seria a relação estabelecida entre o passado (o gângster americano John Dillinger) e o presente?
E quanto ao futuro, que já comentei que traz ligações com o nosso momento (a máscara de gás que logo nos remete aos tempos do Covid-19), mas cuja importância está explicitamente estampada em um pôster na sala da casa onde mora o protagonista? Imagino o quanto este filme deve ter deixado boa parte da audiência da época muito irritada, já que talvez se venda como uma espécie de thriller policial, e acaba sendo mais um jogo experimental que pede um pouco mais de educação no olhar e uma alegria com o novo que aparece a cada cena. Então, o que vemos é um filme que nos deixa ao mesmo tempo fascinados e cheios de perguntas. E é também uma obra que necessita de um certo tipo de relaxamento mental e espiritual. Combina com as madrugadas.
Na trama (se é que dá para chamar assim), Michel Piccoli é um designer industrial especializado em máscaras de gás que fica em sua casa cozinhando algo a partir de uma receita de um livro de culinária. O prazer que ele passa cozinhando, vendo televisão, brincando com imagens da TV e, depois, de cinema, é muito interessante. Ele vive com duas mulheres na casa, a esposa que está com dor de cabeça (Anita Pallenberg) e uma mulher que supostamente faz a limpeza da casa (Annie Girardot), mas que também é flagrada exercitando o lúdico em sua solidão no quarto, usando roupas íntimas e paquerando com a figura de um cantor pop italiano estampada na parede. Mais à frente, a personagem terá um destaque em uma cena sensual envolvendo mel. E há uma arma que pode ter pertencido ao próprio "inimigo público nº 1" que exerce importância fundamental no filme.
Mas podemos dizer que DILLINGER ESTÁ MORTO não está na lista dos filmes sensuais de Ferreri. Na verdade, as comparações que são feitas são com o cinema de Jean-Luc Godard e de Michelangelo Antonioni. E há quem diga que é um filme que ficou datado ou que é muito mais o retrato daquela época, uma época em que a contracultura e a invenção eram quase de lei, principalmente no cinema europeu. No entanto, o filme dialogou com este 2020. Então, quem tiver mente aberta e disposta a experiências diferentes, recomendo.
+ TRÊS FILMES
O PARQUE MACABRO (Carnival of Souls)
Este filme parece um sonho, em muitos aspectos. Mas o que mais me encantou foi a beleza plástica. Que imagens lindas que esse diretor captou. Lembra um pouco A MALDIÇÃO DO DEMÔNIO, do Bava, embora a influência do film noir americano seja bem evidente. Interessante como não é um filme que assusta, mas que pode perturbar quando a protagonista parece cada vez mais estar perdendo a sanidade, embora no fim seja mais um conto sobre a morte, provavelmente. Direção: Herk Harvey. Ano: 1962.
TESNOTA
Acho que se não fosse a dor no corpo eu teria gostado mais. É um filme com uma cara bem própria. Acho que foi a primeira vez que eu vi os russos fazendo demonstração de afeto tão forte, ainda que no geral ainda pareçam rudes. Mas isso é só impressão de quem vê pouco da cinematografia deles mesmo. Embora a protagonista pareça às vezes insuportável em seu comportamento, ela é interessante e mostra vontade de ser livre das amarras. No fim das contas, o filme pode ser sobre isso. Ou sobre a necessidade de poder escolher. Direção: Kantemir Balagov. Ano: 2017.
A REPARTIÇÃO DO TEMPO
Engraçado ver este filme depois de ter visto o conceito de cookies tão usado em uma das temporadas de BLACK MIRROR. Neste filme, eles usam bastante a mesma ideia, só que usando uma máquina do tempo como catalisador da situação. Achei um tanto confuso, mas eu estava com sono e por isso não vi o filme nas melhores condições. Direção: Santiago Dellape. Ano: 2016.
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