Há dias em que estamos particularmente mais sensíveis. E há filmes que, por uma razão ou outra, têm o poder de encontrar essa brecha mais frágil e nos levar por caminhos emocionais que jamais imaginávamos ir. Foi o caso, para mim, de UM LINDO DIA NA VIZINHANÇA (2019), filme que tem como destaque Fred Rogers, lendário apresentador de um programa infantil americano que já foi objeto de estudo do ótimo documentário WON'T YOU BE MY NEIGHBOR?, de Morgan Neville, e que neste filme é interpretado por Tom Hanks, especialista em tipos humanos mais próximos da bondade e da honestidade. Não há nenhum problema nisso, nessa escolha, e a interpretação de Hanks não é o que podemos chamar de uma imitação de Rogers. Mas a voz suave está lá. Tão suave e tão acolhedora que fala fundo a quem se permitir.
Embora o filme tenha me ganhado desde o começo com a proposta de emular o programa de Mr. Rogers, com a apresentação do próprio em tela quadrada, com um visual VHS e com cenários antiquados (usados desde o fim dos anos 1960 até o início do novo milênio) e pequenas miniaturas em forma de brinquedos de casas, prédios, carros e ruas; e a história do personagem principal, o jornalista Lloyd Vogel (Mathew Rhys), seja interessante e tocante, foi um momento, em particular, que me fez chorar quase convulsivamente. (Quem ainda não viu o filme, eu acho que deveria parar de ler por aqui, e só depois voltar.)
Trata-se do momento em que Mr. Rogers e Lloyd estão em um café. O jornalista já havia tirado sua carapaça mais cínica em relação a Mr. Rogers e já se considerava, diante de seu entrevistado, um ser pertencente ao grupo das "broken people", depois do que acabara de acontecer com seu pai e do longo período de mágoa. Mr. Rogers pede para que ele faça um pequeno exercício: dedique um minuto de silêncio para pensar em todas as pessoas que o amaram, que foram responsáveis por moldar seu caráter e sua personalidade.
Como que por um passe de mágica, todos no café também ficam calados e reflexivos. As lágrimas vêm. E aquele exercício pedido por Mr. Rogers é também um exercício que pode ser feito pelo espectador. E que eu fiz. Eu, que também tive meus problemas com meu pai. Pensei em minha família - minha mãe, minhas irmãs, em especial - e pensei também no meu grande amigo que estava ali do meu lado, vendo o filme. Não se tratava, portanto, de apenas se solidarizar com o personagem, mas de se fundir a ele, de certa forma. E é como se tudo o mais se tornasse pequeno, como se o amor recebido e o amor dado fossem o que há de mais importante em nossas vidas e um imenso sentimento de gratidão, de compreensão da vida e de amor nos abraçasse.
Claro que para chegar neste momento intenso, que acontece após uma hora de filme, é preciso acompanhar a trajetória de vida do personagem e também um pouco de seu encontro com esse homem tão especial, que é vegetariano, que faz orações diárias para pessoas com quem se importa, e que pede a pessoas que estão "mais próximas de Deus" que orem por ele. Isso, aliás, pode ser visto em uma determinada cena do filme, mas também podemos ler no artigo publicado na Esquire pelo jornalista.
UM LINDO DIA NA VIZINHANÇA pode ser visto como uma obra sobre perdão - curiosamente o filme anterior da cineasta se chama PODERIA ME PERDOAR? (2018), que ainda não vi -, mas pode ser mais do que isso, pode até mesmo ser uma obra que resgata a nossa esperança na humanidade, resgata a nossa fé em coisas que são possíveis de se fazer sem que machuquemos o outro ou a nós mesmos. A cena final que mostra Mr. Rogers ao piano demonstra o quanto ele se esforça para fazer isso, o quanto é também um ser imperfeito e necessitado de uma força imensa que ele parece possuir naturalmente.
Claro que tudo isso pode ser deixado de lado, pensar que o filme é uma bobagem sentimental, uma sucessão de clichês batidos de melodramas, ver tudo de maneira mais crítica, no sentido ruim da palavra. Também sabemos que há um limite para o que aceitamos ou não dentro de um filme que se utiliza de recursos emocionais mais intensos, e isso varia de pessoa para pessoa. Felizmente o filme também traz algo de estranheza, de algo quase surreal (para uma obra que se propõe ser uma versão de fatos) - o que dizer da cena do metrô? - e isso pode ser um elemento atraente para muitos.
O papel de Mr. Rogers (e deste filme que procura se moldar aos seus ensinamentos, à sua sabedoria e até ao seu estilo à moda antiga) é nos tirar da carapaça dura de autoproteção que nos torna mais cínicos e distantes de quem fomos um dia na infância, como se estivéssemos em um consultório de psicanálise e precisássemos lidar com nosso lado mais fragilizado para nos tornarmos mais fortes.
+ TRÊS FILMES
JUDY - MUITO ALÉM DO ARCO-ÍRIS (Judy)
Uma obra um tanto acadêmica, meio quadrada, mas vale demais, tanto para embarcar um pouco nos sentimentos de Judy Garland naquele momento decadente de sua carreira, quanto pela performance de Renée Zellweger, especialmente quando está no palco. Marcada pela maldade humana desde a infância para se tornar uma estrela de Hollywood, Judy Garland cresceu viciada em drogas para inibir o apetite (e tirar o sono) e álcool. Muito bonita a cena final. E muito bela a atriz que faz a assistente de Judy em Londres (Jessie Buckley). Direção: Rupert Goold. Ano: 2019.
O ESCÂNDALO (Bombshell)
Interessante ver o passado recente dos Estados Unidos e nesse clima de fim dos silenciamentos das mulheres que foram abusadas. Como vivemos algo muito parecido com o que aconteceu com a eleição de Trump, há coisas que são assustadoramente parecidas, como os fanáticos de direita gritando o nome de seu candidato e agindo de maneira violenta, até a questão dos grupos separados, o fato de ter uma emissora essencialmente republicana como a Fox News, que queimava o filme de suas repórteres com tendências democratas (ótimo o exemplo da personagem de Kate McKinnon). A ascensão na importância da personagem de Margot Robbie é bem evidente e rendeu pelo menos uma cena emocionante. Já Charlize Theron representa o lado mais brutal do trio. O uso de próteses às vezes parece estranho, especialmente nas mulheres. Já no John Lithgow ficou perfeito. Ajudou a construir uma espécie de monstro por fora também. Jabba the Hut, como bem diz ele. Aguardando agora o filme sobre os escândalos de Harvey Weinstein. Será que alguém já está fazendo? Direção: Jay Roach. Ano: 2019.
DOIS PAPAS (The Two Popes)
O filme só perde a força quando conta eventos do passado do Papa Francisco, através de flashbacks. No mais, chega a ser hipnotizante acompanhar as conversas entre Francisco e Bento XVI, principalmente quando o argentino vai visitá-lo pela primeira vez. Anthony Hopkins e Jonathan Pryce estão assustadoramente parecidos com os retratados. E é sempre bom poder acompanhar os bastidores de algo que parece tão cheio distante de nossas realidades. Talvez seja o melhor trabalho de Fernando Meirelles, depois de CIDADE DE DEUS (2002). Ano: 2019.
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