terça-feira, abril 07, 2020

ERASERHEAD

Como estou lendo a biografia Espaço para Sonhar, escrita pelo próprio David Lynch e por Kristine McKenna, senti necessidade de rever ERASERHEAD (1977), que eu devo a mim uma revisão desde quando vi TWIN PEAKS - O RETORNO (2017), que contém muitos elementos do primeiro longa-metragem do cineasta. Aliás, basta ver ERASERHEAD para perceber que já estava tudo ali, tanto a genialidade de Lynch e suas obsessões, quanto os conceitos que seriam aproveitados e aprofundados em suas obras posteriores.

Algo que me fez sorrir sozinho lendo a biografia foi ver o quanto Lynch queria que o preto da fotografia ficasse o mais preto possível. "Nunca estava suficientemente escuro para ele", dizia o diretor de fotografia Herb Cardwell. E é de fato uma fotografia admirável que passou por dois nomes, já que o filme demorou muito a ficar pronto. A pré-produção foi em 1971 e as filmagens começaram em 1972. Apesar de ter sido inicialmente bancado pela AFI, pararam por falta de dinheiro - o orçamento ultrapassou o planejado. Depois, com financiamento adicional, puderam finalmente exibir a primeira versão com 1h50 em 1976 e a versão definitiva, com um corte de 20 minutos, no ano seguinte.

Outra coisa que me fez rir com o coração foi a descrição de Lynch como um sujeito que todo mundo gosta, que pede para fazer coisas meio loucas, como cordões umbilicais de verdade tirados de ninhadas de cachorros. Além do mais, alguns coisas nos remetem diretamente ao Agente Dale Cooper, de TWIN PEAKS (1990-1991), como na descrição de Peggy Reavey, sua primeira esposa: "As pessoas adoram trabalhar para David. Se você fizer algo insignificante, como levar-lhe uma xícara de café, ele fará você pensar que fez a coisa mais importante do mundo."

ERASERHEAD conta a história de Henry Spencer (Jack Nance, que depois faria Pete Martell, o homem que encontrou o corpo de Laura Palmer, em TWIN PEAKS). Henry engravida uma jovem mulher e é meio que forçado pelos pais da jovem a casar com ela. Surge um filho disforme, a mulher não aguenta a angústia de viver naquela casa e vai embora, e ele fica sozinho com o bebê. Enquanto isso, há um mundo sobrenatural que é misteriosamente explorado, com personagens enigmáticos como o Homem do Planeta e a Dama do Radiador, uma moça com bochechas exageradamente grandes.

A primeira vez que vi ERASERHEAD achei se tratar de um filme sobre a dificuldade ou a incapacidade de encarar a paternidade ou a vida adulta. Mas provavelmente eu esteja errado, ou parcialmente errado. Lynch costuma dizer que este seu primeiro longa-metragem é seu trabalho mais espiritual e que a maioria das pessoas não consegue perceber isso.

A atração de Lynch pelo bizarro e por coisas fora do ordinário já se apresentavam desde seu trabalho com a pintura. Como aqui temos um longa-metragem, há uma infinidade de aspectos que se destacam, ou mesmo curiosidades de bastidores, como o depoimento de Charlotte Stewart, a jovem que interpretou a esposa de Henry. Ela disse: "Antes de rodar, David sempre fazia uma ferida supurante na entrada do meu ouvido direito. Ela não aparecia, mas sabíamos que estava lá." Havia também o caso de uma atriz que Lynch achava bonita demais para o papel e, por isso, colocava um sinal cabeludo em seu rosto para trazer um pouco de feiura para ela.

O ambiente é o de cidades industriais poluídas. Há poucas cenas externas e poucas ainda diurnas. O filme foi quase todo filmado à noite. E há todo um cuidado com o desenho de som e com a trilha sonora que hoje são marcas reconhecidas do cinema de Lynch. Podemos ver o quanto isso já estava presente desde esse seu primeiro trabalho de grande impacto. O ladrido do cão, o apito do trem, o chiado da máquina, o som vazio do quarto e outros tantos pequenos ruídos, tudo isso foi feito com muita precisão, com muito cuidado.

O aspecto onírico, marca registrada da grande maioria dos filmes de Lynch, está tão presente em ERASERHEAD que o que temos é algo parecido com um sonho dentro de um sonho. E há muito o que relacionar com obras posteriores do diretor, já que o filme se passa em um universo que parece o mesmo do black lodge de TWIN PEAKS e outras obras. Inclusive, a cabeça gigante de bebê deu origem, muito provavelmente, à cabeça flutuante do Major Briggs, em TWIN PEAKS - O RETORNO. É desses filmes que merecem uma revisão inúmeras vezes, a fim de perceber e apreciar seus vários detalhes, e até entender mais seus simbolismos.

+ TRÊS FILMES

TECHNOBOSS

Não deixa de ser admirável o grau de independência e de ousadia que o cinema português trilha. Certamente a presença de um sujeito como Miguel Lobo Antunes, em sua primeira atuação no cinema, seja mais atraente para os espectadores portugueses, já que ele é um homem que esteve envolvido durante muitos anos na cena político-cultural do país. Aqui temos um filme um tanto estranho sobre um técnico em câmeras de segurança, cancelas etc, que se vê envolvido com sentimentos de solidão e uma atração pela recepcionista de um hotel. Mas não há muita ação ligada ao romance. O que há mais é a rotina tediosa do protagonista, uma fotografia com pouco grau de nitidez, canções desconcertantes cantadas por Miguel Lobo e uma imagem pouco atraente para os estrangeiros de Portugal. Direção: João Nicolau. Ano: 2019.

TORRE. UM DIA BRILHANTE (Wieża. Jasny Dzień)

Eis um filme que nos coloca em nossa própria insignificância, a ponto de não sabermos o que estamos vendo. É uma história de horror? Um drama sobre uma mãe biológica que chega para mudar a vida de uma família? Sim, as duas coisas. Acho que o problema é a dificuldade de "entrar" no filme, em sua atmosfera. Nesse sentido, entender ou não entender é só um detalhe. Direção: Jagoda Szelc. Ano: 2017.

O ÚLTIMO CAPÍTULO (I Am the Pretty Thing That Lives in the House)

Gosto muito do começo do filme. Parecia promissor. A narração da Ruth Wilson é literária, no bom sentido do termo. Mas justamente quando o filme entra mais no campo da literatura, ele vai começando a ficar maçante e sonolento. Há uns pequenos sustos bem bons e um grande susto também, mas no geral é um filme de muitos silêncios. Faltou mais terror no terror. Direção: Osgood Perkins. Ano: 2016.

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