segunda-feira, abril 27, 2020

ESTADO ITINERANTE

A primeira imagem de um filme diz muito do que ele é e do que ele nos mostrará. No curta-metragem ESTADO ITINERANTE (2016), a primeira imagem que vemos é a de Viviana (Lira Ribas), jovem cobradora de ônibus, movimentando-se para fazer uma ligação em um orelhão. Na breve cena, há um senso de urgência que permeará a trama: o motorista pergunta a ela quantos minutos faltam para eles saírem. No pouco tempo que ela tem para conversar com a pessoa do outro lado da linha, sabemos que ela precisa de um lugar para passar a noite.

A própria imagem da noite, sempre mostrada com pouca iluminação artificial, é bastante explorada no filme, aparecendo tanto durante o trabalho da personagem, quanto em seu momento de descanso. Ou que seria de descanso, já que, com medo de voltar para casa e encarar um marido abusivo e violento, ela, assustada, tenta passar o tempo longe de sua residência. A opção por não mostrar a figura do opressor, inclusive, o torna ainda mais aterrador.

A diretora sabe que está lidando com o suspense, mas, principalmente, que está lidando com a dor e com os sentimentos de uma mulher abalada pela opressão e pela violência doméstica. E por isso há também uma ênfase na união feminina imediatamente após a cena mais antológica do filme, que é a cena em que ouvimos "Don't Cry", do Guns N' Roses. Após a catarse da referida cena, estamos já tão fragilizados com tudo, que ver uma colega de trabalho de Vivi oferecendo mais tempo para ela ficar em sua casa aumenta ainda mais o misto de sentimentos, entrando em cena a gratidão.

Ana Carolina Soares também tem consciência da necessidade de explorar o extracampo, nas cenas em que a protagonista aparece mais de perto, mas há cenas em que os planos gerais se mostram necessários para trazer suspense. Três exemplos: a cena no bar, com as quatro mulheres tomando cerveja e a chegada de alguns motoqueiros fazendo acrobacias; a cena da entrada na casa, perto do final, quando segundos parecem durar minutos, daí o sentido perfeito da palavra "suspense"; e o momento final, com a aproximação ameaçadora de um carro.

Quanto à referida cena de "Don't cry", sua explosão de emoções se deve tanto ao poder da canção em si, quanto à situação da protagonista e às escolhas da cineasta para a construção do plano. Além do mais, há algo de muito simbólico com a escolha da parceira de cena de Vivi, a atriz, mulher, trans e negra Cristal Lopez, que já carrega em si, mesmo que não a conheçamos, a condição de pessoa marginalizada pela sociedade machista e violenta. A tristeza da situação explode ao final da canção. Até então o que se mostrava nas atitudes de Vivi eram sorrisos tristes, tentativas de esquecer os problemas. E o que vem a seguir, junto com o final tenso da canção, é também o pranto de Vivi.

Com tudo isso, não deve demorar muito para que ESTADO ITINERANTE seja abraçado como um dos clássicos da nossa cinematografia.

Texto originalmente publicado no site da Aceccine, por ocasião de uma mostra dedicada a filmes premiados pela associação desde sua fundação.

+ TRÊS FILMES

FORO ÍNTIMO

Queria ter me envolvido mais com o drama do juiz que é obrigado a ficar preso no próprio ambiente de trabalho para não ser assassinado. O filme utiliza de um fechamento da janela de aspecto para passar uma sensação de sufocamento e perturbação do personagem. Nem sempre funciona de maneira eficiente, mas gosto do visual, da fotografia preto e branco, dos poucos personagens que aparecem. E o ator principal tem pelo menos um momento de surto que deveria destacá-lo como um ator conhecido e importante. Direção: Ricardo Mehedff. Ano: 2017.

HEBE - A ESTRELA DO BRASIL

Que bela surpresa esta cinebiografia de Hebe Camargo, aqui brilhantemente interpretada por Andrea Beltrão, uma atriz que é adorada por gerações e gerações de crianças, jovens e adultos. O filme faz parte dessa leva de filmes de personalidades importantes do Brasil que ajudam a compor mais e mais a nossa história. Excelente a escolha da roteirista Carolina Kotcho de ambientar a trama apenas em determinado período da vida de Hebe, no caso, o ano de 1985. Há cenas verdadeiramente emocionantes. Nem é preciso ser fã da Hebe ou conhecedor de sua história. O filme de Farias é hábil também em dar alfinetadas com muita classe nesse governo atual. Assim, cada filme brasileiro é mesmo um gesto político. Vamos ao cinema ver filmes brasileiros, minha gente! Direção: Maurício Farias. Ano: 2019.

DIAS VAZIOS

Sinto-me atraído por histórias de solidão e sentimento de vazio de jovens, tanto em cidades grandes quanto em cidadezinhas. As histórias acompanham dois casais que se cruzam tanto pelo caminho real quanto pelo caminho da ficção, já que um dos rapazes está escrevendo um livro sobre o outro casal. A saída de cena de um dos personagens diminui um pouco o impacto do filme e eu saí do cinema pensando em não ter gostado do resultado. Mas aos poucos, em minha memória afetiva, o filme tem crescido, principalmente no modo corajoso como termina. Aliás, isso é meio que mérito do premiado romance do qual ele é adaptado. Bela estreia na direção de Robney Bruno Almeida. Ano: 2018.

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