terça-feira, dezembro 29, 2020
DESEJO HUMANO (Human Desire)
O que nós nos lembramos em Renoir são dos rostos de Gabin, Simon e Ledoux. O que nós nos lembramos em Lang são dos padrões geométricos de trens, trilhos e fatídicos ângulos de câmera.
(Andrew Sarris)
2020 está terminando e eu não consegui encerrar minha peregrinação pela obra de Fritz Lang. Dos 40 filmes do realizador disponíveis, consegui ver 33. Falta bem pouco pra acabar e pra eu tentar já escolher o próximo realizador ou realizadora para meu objeto de estudo. São tantas as lacunas e tão pouco o tempo disponível. Além da minha dificuldade de ver muitos filmes no mesmo dia. De todo modo, as madrugadas têm sido o período mais tranquilo para meu espírito, no que se refere a filmes. E acho uma delícia poder ver filmes antigos. E não nego que tenho uma queda pela Velha Hollywood.
DESEJO HUMANO (1954) foi o primeiro filme de Lang realizado já na nova janela adotada com mais frequência por Hollywood (1,85:1). Ele experimentaria a janela scope no filme seguinte, inclusive. E foi a segunda refilmagem de uma obra de Jean Renoir. Por mais que possamos dizer que é uma nova adaptação do romance de Émile Zola e não uma refilmagem, sabemos que Lang era um apreciador do trabalho do cineasta francês e fez aqui os ajustes que julgava apropriados para um filme americano daquele período.
Para começar, Lang acreditava que seria um absurdo o público americano aceitar que o herói da história fosse um psicopata sexual, como em A BESTA HUMANA, de Renoir. Porém, isso é também trair bastante o texto original de Zola. Inclusive, Lang suspeitava que o filme seria apedrejado na França. Por sorte, DESEJO HUMANO foi bem recebido lá, mesmo com essas modificações. Na verdade, havia também o Código Hays, que podia proibir uma adaptação mais fiel do clássico naturalista.
O problema é que essas modificações tornaram o protagonista, aqui vivido por Glenn Ford, muito menos interessante e muito menos complexo do que no romance e no filme de Renoir. Acaba sendo um personagem de pouca força. Aliás, o triângulo amoroso me pareceu fraco. É possível que eu tivesse uma outra impressão se não tivesse visto A BESTA HUMANA em um espaço de tempo tão curto, algo que também ocorreu quando vi A CADELA e a refilmagem ALMAS PERVERSAS (1945). Mas desta vez senti um impacto maior nos resultados geralmente pungentes dos dramas languianos. Assim, DESEJO HUMANO acaba por destacar o Lang mais afeito à técnica, que é também uma de suas forças.
A dupla do maravilhoso OS CORRUPTOS (1953), Glenn Ford e Gloria Grahame, está de volta. Quase que Grahame não entra. Ela foi uma segunda opção, depois de problemas para conseguir o papel para Rita Hayworth, que não conseguiu por Rita estar em processo de divórcio e não poder sair dos Estados Unidos e correr o risco perder a guarda da filha (as filmagens aconteceram no Canadá). Além do mais, Grahame esteve excelente no filme anterior. No entanto, eis sempre o problema quando faço as comparações: a atriz americana me parece muito madura para o papel, além de não ter o mesmo grau de mistério que Simone Simon trazia para o filme de Renoir.
Na trama, Glenn Ford é um ex-combatente de guerra que recupera seu trabalho de piloto de trens. Já Grahame é uma mulher casada com um homem mais velho (Broderick Crawford) e que ajuda o marido a cometer um assassinato em um dos vagões. Ela foi forçada a ajudar o sujeito, mas depois ela resolve se distanciar dele, negar-lhe sexo, o que faz com que o marido se transforme em um bêbado triste zanzando pela cidade.
O filme de Lang também traz algo que é bastante típico do cineasta, que é uma generosidade com seus personagens. Ele sempre foi adepto do não mostrar cenas de violência e também de não punir seus personagens no final. Assim, a mudança de tom no final dos dois filmes, em comparação, é gritante. Lang prefere um caminho mais feliz e romântico, ao passo que Zola/Renoir trazem uma tragédia e uma carnificina de grandes proporções.
+ TRÊS FILMES
VERÃO DE 85 (Été 85)
Dos cineastas contemporâneos, François Ozon talvez seja o que mais exalta a força e o prazer que a narrativa clássica traz para o espectador ou leitor. Em VERÃO DE 85 (2020), temos um filme que tanto remete ao CONTO DE VERÃO, de Eric Rohmer, logo de início, quanto aos filmes de jovens americanos dos anos 1980, mas talvez mais ainda aos clássicos da Velha Hollywood, com a informação de que um dos personagens está morto e a partir de então vamos acompanhando o destino dessa história de amor que vai se encaminhando para algo no mínimo triste. Gosto da intervenção da garota inglesa, inclusive no que ela fala sobre a projeção da paixão. No mais, visual excelente, um mix de sentimentos às vezes contraditórios e várias cenas marcantes.
O ATO INDIZÍVEL (The Unspeakable Act)
Em FOURTEEN (2019), descobri um diretor que carrega elementos de Bresson, Rohmer e Cassavetes, mas que trazia algo de novo, de fresco, também. Mas, mais do que isso, um filme de um poder imenso. Saí da sessão profundamente emocionado. O estilo de Dan Sallitt já se mostrava bastante formado em O ATO INDIZÍVEL (2012), com uma de suas atrizes constantes, Tallie Medel. O curioso deste trabalho aqui está no próprio enredo, que trata de uma relação de amor (romântico) entre dois irmãos, principalmente por parte da moça, já que o rapaz anda querendo mudar de vida (até arranjou uma namorada, o que deixou a irmã um tanto triste). Gosto muito das cenas dos dois conversando, das cenas de análise, e até das pequenas transições, com a garota atravessando a rua de bicicleta. Novamente sem trilha sonora e com tomadas curtas, o filme vai construindo o seu caminho. Quero ver mais Sallitt!
VIL, MÁ
Embora seja o menos potente dentre os longas de Gustavo Vinagre, VIL, MÁ (2020) faz com que seu autorismo se torne mais evidente e mais interessante. Se nos primeiros filmes havia uma contaminação entre ficção e documentário, aqui ele lida com este aspecto da fantasia e da realidade nas personas de Edivina/Wilma, 74 anos, que escrevia contos de sadomasoquismo para revistas especializadas e teve várias experiências no meio, até para servir de combustível para seu trabalho. E é interessante como o filme começa focando nas fantasias que os escravos sexuais enviavam para ela. Alguns dos textos, achei excitantes, mas há coisa muito barra pesada, de dar mal estar. Gosto de como o diretor põe a figura de "Wanda" como uma leitora que fica lá no canto da sala, quase como uma escrava da protagonista. Em alguns momentos o filme perde o fôlego, mas continua acentuando uma carreira muito interessante do diretor.
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