sexta-feira, dezembro 04, 2020

A DUPLA VIDA DE VÉRONIQUE (La Double Vie de Véronique)



Ah, o tempo. Esse mano velho que passa tão rapidamente e nos ensina coisas que depois a gente esquece. São duas coisas então de que estou me queixando. Da rapidez das horas e do fato de nos esquecermos tão facilmente das coisas. Poderia estar me queixando de uma terceira coisa também: da minha incapacidade de me lembrar melhor mesmo daquelas coisas que me fascinam. No caso de filmes que me deixam apaixonado, o que me deixa frustrado é ele desaparecer de minha memória de maneira tão rápida. Deve ser culpa da quantidade maior do que o normal de filmes que vejo, não sei. Ou apenas os efeitos das drogas que consumi ao longo do tempo. Por isso que quando estava vendo este filme em especial queria tanto me apegar àquele universo presente na telona, pois já sabia que aquela experiência seria eventualmente dissipada.

O fato é que quando eu estava no cinema, em outubro, quando o Cinema do Dragão retomou discretamente suas atividades neste período de pandemia, eu me sentia a pessoa mais feliz do mundo enquanto revia A DUPLA VIDA DE VÉRONIQUE (1991), mesmo com o desconforto da máscara. Já tinha visto o filme há muito tempo em VHS, mas isso nem conta: só havia a lembrança de algumas poucas cenas e de maneira muito nublada.

O caso dos filmes de Krzysztof Kieslowski é muito especial, já que há algo de pouco palpável e ao mesmo tempo muito atraente neles, como se estivéssemos próximos de um sonho muito bom a que não queremos nos afastar. Cada cena de A DUPLA VIDA DE VÉRONIQUE é de uma poesia, de uma beleza impressionantes. A fotografia de Slawomir Idziak, o mesmo que trabalharia com Kieslowski em A LIBERDADE É AZUL (1993), ilumina cada objeto, cada olhar, cada local, como se tudo fosse estritamente essencial. De certa forma, é uma sensação que me faz lembrar o cinema de Andrei Tarkovski, nesse sentido.

Um filme sobre escolhas na vida (um tema recorrente em sua obra) e sobre as peças que o destino prega. Irène Jacob, na flor dos seus 24/25 anos, carrega uma beleza tão forte que dói no peito. Apaixonante, tanto quando interpreta a versão polonesa, quanto a versão francesa da(s) personagem(s). E há também a música de Zbigniew Preisner, colaborador frequente do cineasta e catalisador de emoções em conjunto com as imagens.

Na trama, há Weronika, uma soprano polonesa extremamente apaixonada pelo que parece ter nascido para fazer, ou seja, cantar; e há também Véronique, uma professora de música que resolve, depois de um desconforto espiritual, abandonar esse caminho em sua vida para se dedicar ao amor, em especial à paixão por um jovem rapaz. Há uma breve cena de sexo/nudez que é como presenciar o florescer da juventude em sua mais impressionante beleza.

Ao contrário de certos filmes que lidam com o tema do duplo, Kieslowski não usa recursos de antagonismo ou de horror. As jovens coexistem e se completam mesmo sem saberem da existência uma da outra. Tanto que, quando uma não mais está, a outra sente terrivelmente o baque. Temas fortes como a morte, a solidão, o destino, o acaso, a paixão etc. são pincelados de maneira tal que seriam necessárias várias revisões desta obra para poder apreender o que nos é fornecido. 

A DUPLA VIDA DE VÉRONIQUE foi exibido em uma mostra que incluíam todos os longas do realizador feitos para o cinema. Espero consegui falar um pouco sobre outros que julgo serem suficientemente especiais para merecerem mais do que apenas um parágrafo.

+ TRÊS FILMES DE KIESLOWSKI

A CICATRIZ (Blizna)

Primeiro longa-metragem para cinema de Kieslowski, A CICATRIZ (1976) demorou a me ganhar. Na verdade, tive dificuldade de me atrair pelos personagens e pela trama. É tudo propositadamente áspero, inclusive a fotografia, que acentua aquelas cores de terra do espaço que está sendo usado para a construção de uma fábrica. Talvez o fato de o complexo de culpa do protagonista não se mostrar tão facilmente compreensível e de haver muitas elipses nem sempre também fáceis, isso pode ter contribuído para o meu distanciamento em relação à obra.

SEM FIM (Bez Konca)

Diferente do primeiro, SEM FIM (1985) já apresenta um cuidado maior na direção e um gosto pela melancolia que se tornariam marcas do diretor. Só de começar com um morto contando a história de sua morte e depois vermos o que se sucede após a sua partida, isso já me causou muito interesse. Ainda assim, há um pouco de desequilíbrio (de forças) entre a trama da mulher do morto e a do velho advogado que fica com o seu caso, um caso envolvendo questões políticas. O filme se passa no início dos anos 1980 quando o país viveu lei marcial. Adorei a atriz que faz a protagonista. Se o filme se centrasse apenas nela seria uma obra-prima.

SORTE CEGA (Przypadek)

A impressão que eu tive vendo este SORTE CEGA (que foi rodado em 1981, mas por causa da censura ficou na geladeira por seis anos, em 1987) é de que parece uma adaptação toda picotada de um desses romances difíceis de adaptar. Mas não é. É um roteiro original de Kieslowski. Ver este filme é também um exercício de experimentar uma gramática diferente, por assim dizer, por conta de uma montagem diferente (muitas elipses), principalmente, e com uma cultura e uma situação política a que não estou tão a par. O mal estar se concentra principalmente no sentimento de dúvida de um jovem rapaz sobre que caminho seguir na vida, em uma Polônia dividida. Tenho meus senões quanto ao final, mas, quem sabe, lendo a respeito, passo a valorizá-lo.

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