sábado, julho 04, 2020

ATÉ O FIM

O cinema brasileiro, sabemos, é plural. Como o nosso país o é. Há tempos deixou de ser exclusividade do Rio de Janeiro e de São Paulo. Cidades do interior como Contagem-MG e agora também Cachoeira, no Recôncavo Baiano, aparecem no cinema brasileiro contemporâneo como áreas de explosão afetiva e artística. Os jovens cineastas baianos Ary Rosa e Glenda Nicácio têm chamado a atenção desde CAFÉ COM CANELA (2017), o lindíssimo filme sobre amizade, superação diante das adversidades e valorização da cultura afro-brasileira. Isso dentro de uma estrutura que mistura experimentação com um pouco de classicismo.

A descrição até faz lembrar um bocado o mais novo filme, ATÉ O FIM (2020), exibido e premiado na 23ª Mostra Tiradentes. O filme foi ovacionado de pé e, pelas descrições, dá a entender que foi a mais intensa recepção popular de um filme na já tradicional mostra. Muito disso tem a ver com a aguardada expectativa de um novo filme da dupla, que em 2018 tinha exibido ILHA (2018), talvez o trabalho mais arriscado dos dois.

ATÉ O FIM me agrada mais por talvez ser tão feminino e tão cheio de afetividade quanto CAFÉ COM CANELA. Mas, em vez de se focar em amizades, aqui o elo que une, depois de tantos anos de distância, as protagonistas é um elo de sangue. Pelo menos três delas são irmãs. O filme começa, curiosamente, na mesma barraca de ILHA, além de fazer uma referência direta e explícita a essa obra. Isso acaba por trazer um tipo de familiaridade impressionante para quem tem ainda tão poucos filmes realizados.

É nesta barraca que conhecemos Geralda (Wal Diaz), uma mulher de meia idade que trabalha e é dona daquele espaço. Ela recebe a notícia da morte iminente de seu pai, que está internado no hospital. Essa situação será o elemento que reunirá as irmãs de Geralda. Primeiro aparece a simples e alegre Rose (Arlete Dias) e depois a premiada e bem-sucedida Bel (Maíra Azevedo). A quarta personagem aparecerá para balançar ainda mais a noite.

Toda a narrativa acontece no espaço de uma noite e muitas feridas são expostas. A começar por Geralda, que se sente abandona pelas irmãs, que deixaram a cidade sem muita explicação e Geralda ficou sozinha, cuidando do pai. E com o tempo vamos percebendo que o roteiro do filme até poderia se transformar muito bem em uma peça de teatro, já que a narrativa é toda pautada em diálogos, bem verborrágica. Mas isso não incomoda, até porque os diálogos são cheios de tensão, emoção e espontaneidade.

A figura do pai é importante, pois ele é o principal responsável pelos rumos distintos que ocorreram nas vidas daquelas mulheres. Ele nunca aparece, mas é como um espírito ruim que continua presente, cuja morte é esperada ansiosamente pela maior parte daquelas mulheres. O filme, nesse sentido, e a partir das várias discussões calorosas que ocorrem naquela mesa de bar, lida com a questão do abuso sexual, do ataque ao candomblé, da homofobia, da transfobia, do machismo etc.

Destaque para uma janela de aspecto em formato quadrado que passa um ar claustrofóbico e faz com que haja uma aproximação dentro do quadro daquelas personagens. Vez ou outra, vemos dois quadros. A movimentação e os ângulos de câmera também são bem atípicos e apontam para uma vontade de experimentar muito saudável. Então, o que temos aqui é uma junção muito bem orquestrada de um racionalismo ditado pela forma e de um sentimentalismo ditado pelos traumas e situações de fragilidade das personagens.

Além do mais, a presença da quarta personagem, Vilmar (Jenny Muller), faz com que essas emoções explodam em um convite às lágrimas, que nem sempre representam a tristeza, mas também uma mistura com a alegria de viver e de estar lidando com coragem com as dores do passado que seguem vivas no presente. Já sonho com a possibilidade de rever este filme na telona.

+ TRÊS FILMES

ILHA

Depois do lindo e feminino CAFÉ COM CANELA (2017), a dupla baiana faz algo mais masculino, centrado em dois personagens distintos: um cineasta que é capturado por um sujeito para realizar o filme de sua vida. O mais belo do filme são as cenas de calmaria, em que chegamos a um estado de espírito que, puxado por alguma emoção e também pelas ondas da ilha, que não param de bater, nos conecta a algo singular (a cena do baseado e a cena da cerveja, quando Henrique canta "Clube da Esquina 2" são os melhores exemplos). Muito provavelmente à alguma experiência que já tivemos. O filme lida com isso também, com as experiências, inclusive aquelas que ficaram um tanto esquecidas. E também com a verdade e a ficção: a ficção na verdade e vice-versa. Direção: Ary Rosa e Glenda Nicácio. Ano: 2018.

OS FAROFEIROS

Está longe de ser essa coisa horrível que muita gente está pintando. O negócio é aceitar o filme como ele é, uma diversão sem a menor intenção de ser algo inteligente. E tem sim vários momentos engraçados. Só não gosto de quando tenta abrir espaço para o drama. Mas isso quase toda comédia brasileira peca nesse aspecto. Direção: Roberto Santucci. Ano: 2018.

ALTAS EXPECTATIVAS

Até que a gente quer gostar do filme. E o Gigante Léo e a Camila Márdila são muito legais. Mas há muitas coisas que incomodam, como o próprio andamento, e toda essa questão da autopiedade do protagonista, que leva o filme lá pra baixo. Sem duplo sentido. Direção: Pedro Antônio e Álvaro Campos. Ano: 2017.

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