terça-feira, janeiro 21, 2020

VITALINA VARELA

Há uma frase clássica de Hitchcock em que ele diz: "alguns filmes são pedaços da vida, os meus são pedaços de bolo." Por mais que a afirmação do mestre do suspense seja muito feliz e que, certamente, se aplique à delícia que é ver seus filmes, diria que a grande maioria dos filmes que existem são feitos para trazerem certo prazer e contentamento, sejam eles mais ou menos valiosos. Talvez não seja exatamente o caso de VITALINA VARELA (2019), do cineasta português Pedro Costa. Difícil, duro, sem concessões. Não há espaço para a fé, nem para a esperança .

Envolto em sombras, seus personagens caminham como fantasmas em um mundo escuro e desprovido de alegria. Como se confinados em uma espécie de umbral ou purgatório. Até ouvimos o som de música em algum lugar, mas mesmo isso parece ser apenas um pequeno alento para personagens que nem são mostrados. O próprio padre do lugar, vivido por Ventura, ator-fetiche do cineasta, afirma, em sua igreja abandonada e de cadeiras quebradas, que nós somos formados por sombras.

Em quase todo o filme, desde o início, com um grupo de pessoas aparecendo do breu de um cemitério, depois de enterrar um amigo, até quase perto do final, a luz é muito pouca. E isso é muito desafiador para o espectador desacostumado ou despreparado para o cinema de Costa. Com relação à luz, até poderíamos lembrar também do cinema de Val Lewton, dos anos 1940, como SANGUE DE PANTERA ou A MORTA-VIVA, mas estaríamos falando de um tipo de cinema muito mais próximo do prazer, do entretenimento. Em Val Lewton é possível sorrir de satisfação, algo que passa um pouco longe de VITALINA VARELA.

Há a questão da lentidão também, algo que se assemelha um pouco aos trabalhos de Tsai Ming-Liang e Béla Tarr, mas isso também pode ser percebido em variados filmes arthouse. Portanto, o que incomoda mesmo (no bom sentido) é a falta de luz. A maior parte das cenas se passa à noite, uma noite muito pouco iluminada. E quando é dia, a luz que sai pelas frestas da casa é minúscula.

No entanto, o que Pedro Costa nos apresenta em cada cena, com a câmera na maioria das vezes parada, lembram pinturas renascentistas. Ele transforma a miséria e a tristeza em beleza, com o uso de cores e um tipo de direção de arte singular, como a arquitetura dos casebres, ou o céu ao fundo. Seu fotógrafo é o colaborador habitual Leonardo Simões, com quem trabalhou nos anteriores JUVENTUDE EM MARCHA (2006) e CAVALO DINHEIRO (2014).

Pouco antes do título do filme surgir nos créditos, somos apresentados à protagonista, Vitalina Varela (mesmo nome da atriz), que vem de Cabo Verde para o funeral do ex-marido em Portugal. Ela é recepcionada por algumas poucas mulheres, que a aconselham a voltar para sua terra, que ali não tem nada para ela. Conselho não aceito, ela segue até a casa do ex-marido, já enterrado há poucos dias. Na casa, habitavam alguns amigos, que precisam agora deixar aquele espaço para ela.

Assistir VITALINA VARELA - e os outros filmes de Costa sobre a questão dos migrantes de Cabo Verde - é perceber o quanto somos em geral ignorantes ao que aconteceu e que ainda reverbera na vida desse povo. É preciso saber sobre os conflitos, sobre a situação dessas pessoas, sobre como Portugal lida com essa dívida com uma de suas ex-colônias mais pobres. E há também a questão da língua, que é algo bastante importante na trama, inclusive, como elemento de desvalorização do dialeto falado pelos povos mais pobres de Cabo Verde. Em determinado momento, o padre de mão trêmula diz que o espírito do marido de Vitalina só a ouvirá se ela conversar com ele em português, e não em crioulo. Assim, percebemos que há ali um pensamento de colonizador vindo até mesmo de um cabo-verdiano.

Outras questões importantes surgem, mas a forma do filme é tão impactante que até parece ser mais essencial que o conteúdo. Claro que isso pode ser apenas uma impressão de alguém que tem pouco conhecimento, pouca aproximação com esse país.

+ TRÊS FILMES

AMA-SAN

Creio que se fosse em casa talvez eu desistisse deste filme antes da metade de sua duração. Mas no cinema a gente procura curtir mais, prestar atenção nas pequenas coisas, aproveitar a experiência ao máximo. E o filme lida com as pequenas coisas do cotidiano, algo que já é muito comum na cultura e no cinema japoneses. Aqui temos uma cineasta portuguesa disposta a adentrar os costumes de um grupo de mulheres que mergulham no mar para pescar mariscos e coisas do tipo. Fazem como um ritual, mas também como um trabalho importante para a subsistência de suas famílias e da economia daquele lugar, pelo que entendi. Mas a melhor cena, pra mim, está perto do final, uma cena em que as várias mulheres se encontram em um karaoke bar para conversar, comer, beber e rir bastante. O momento que eu ri com elas. Poética também a cena dos vagalumes. É um filme que cresce mais na memória do que durante a apreciação. Direção: Cláudia Varejão. Ano: 2016.

ANTÓNIO UM DOIS TRÊS

O filme lembra tanto Sang-soo quanto Resnais, mas o que lembra mesmo é o próprio cinema do Mouramateus, pra quem já viu alguns de seus curtas. As festas, as brigas, as conversas, tudo muito gostoso de ver. Acho que tem algo pelo meio que parece travar um pouco a narrativa, mas no geral é uma beleza. Começa e termina bem. Deborah Viegas, a atriz que faz a personagem Débora, é apaixonante. E isso ajuda muito a gente a comprar essa história de amor de universos paralelos. Direção: Leonardo Mouramateus. Ano: 2017.

SAUDADE

A premissa é simples: discursar sobre o significado da palavra saudade em países de língua inglesa, contando com o depoimento de inúmeros artistas das mais diversas áreas. Há passagens lindíssimas e bem poucos momentos que eu não me encantei. Acho que estava in the mood. Direção: Paulo Caldas. Ano: 2017.

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