quarta-feira, setembro 20, 2017

PARIS, TEXAS

Engraçado como o tempo nos prega peças. A minha memória de PARIS, TEXAS (1984), possivelmente a obra-prima máxima de Wim Wenders, já estava um bocado nebulosa. Não sei por que, por exemplo, havia limado o personagem do garotinho de minhas memórias. Talvez por que na época me interessasse pouco a questão de filhos ou questões paternas. O que mais pegou na cabeça daquele adolescente de cerca de 16 anos que já se julgava um cinéfilo (na verdade não lembro se já usava esse termo para me descrever) foi a dor do personagem de Harry Dean Stanton e o impacto do reencontro com a ex-mulher, depois de anos vagando pelo deserto, tido como morto ou desaparecido. Além da força das imagens do deserto e da trilha de Ry Cooder.

Não estava nos meus planos rever PARIS, TEXAS tão cedo. Na verdade, estava ensaiando uma peregrinação pelo cinema de Wim Wenders a partir de seus primeiros filmes. Até já tinha preparado uma cópia de VERÃO NA CIDADE (1970), seu primeiro longa, para ver. Mas eis que morre o querido Harry Dean Stanton e cresce uma vontade imensa de (re)ver o que talvez seja o filme mais importante que Wenders realizou nos Estados Unidos, país que sempre o fascinou e que o inspirou a fazer alguns ótimos trabalhos nos anos 1980.

A morte de Harry Dean Stanton, só não chegou a ser tão lamentada porque, afinal, ele já tinha 91 anos. Viveu plenamente, imagina-se. Mas não deixa de ficar um ar de melancolia no ar, justamente por sua participação em TWIN PEAKS - O RETORNO. São breves, mas importantes aparições, especialmente no episódio 6, em que ele chega a ver o espírito de uma criança subir ao céu depois de morrer em um acidente. Lynch o colocou como capaz de ver além do que o olho terreno é capaz.

Embora trate de questões aparentemente mundanas, PARIS, TEXAS é dessas obras que sublimam isso. Além do mais, quem disse que relações humanas são exclusividade de nosso plano de existência? As dores e as angústias seguem presentes enquanto não se cuida delas. Às vezes as pessoas preferem esquecê-las. É o caso de Travis Henderson (Dean Stanton), um homem que perambula sozinho pelo deserto americano, completamente sem rumo, tendo esquecido de si mesmo. Até o dia que é socorrido em uma cidadezinha muito pequena e seu paradeiro é informado ao irmão (Dean Stockwell).

Já ficamos sabendo que Travis tem um filho, uma criança que guarda pouca lembrança do pai, devido aos quatro anos de desaparecimento. E ficamos sabendo que a mãe também está desaparecida. A primeira imagem dela que vemos é através de uma filmagem em super-8 que o irmão de Travis sugere que seja ele veja. Cada imagem de Jane (Nastassja Kinski) é como uma facada no peito. Pelo menos é o que imaginamos. O cinema, diferente da literatura, nos convida a imaginar o que se passa na cabeça dos personagens a partir de suas atuações e também da montagem. E, nesse sentido, Wenders foi muito feliz. Como, aliás, consegue ser em tudo neste filme.

As primeiras imagens de Travis no deserto já denunciam que estamos vendo uma obra incomum. Inspirada por musas talvez. Mas também realizada com muita racionalidade na escolha dos planos, das cores, da significância das cores e do modo como isso nos afeta inconscientemente. Sabemos da força da cor vermelha, em muitas sequências, e também do verde, mas só um estudo mais detalhado para entender alguns dos segredos da linda paleta que o cineasta alemão escolheu para contar a sua história.

Uma história sobre perdas e reconquistas, PARIS, TEXAS é um dos mais belos, mas também mais amargos filmes realizados nas últimas décadas. E Travis é um dos grandes heróis solitários do cinema, talvez tão grande quanto o Ethan Edwards, de John Wayne, em RASTROS DE ÓDIO. Com a diferença aqui é que temos um homem que experimentou momentos felizes em sua relação com Jane, no passado. O fato de o filme nos esconder o passado de Travis é outro acerto gigantesco, pois a história contada pelo próprio personagem conversando com Jane na cabine do peep show é tão cheia de força que não necessita de música de fundo ou muitos adornos. Ao contrário: os silêncios entre cada fala têm um impacto devastador.

Mas depois Wenders sabe usar muito bem a música para fechar com chave de ouro esta obra-prima. A cena de Jane reencontrando o filho tem um misto de alegria e tristeza que não sabemos muito bem mensurar ou descrever. E o diretor faz isso muito bem com o uso das cores, do posicionamento dos personagens em cena, e do quanto aquelas pouco mais de duas horas de projeção já nos trouxeram de lágrimas ou de nós na garganta. O sentimento de agradecimento que sentimos por Wenders é talvez semelhante ao que Jane e o filho Hunter sentem por Travis no final.

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