Não só TWIN PEAKS - THE RETURN borrou a fronteira entre cinema e televisão no Festival de Cannes deste ano. TOP OF THE LAKE - CHINA GIRL (2017), a continuação da série com cara de minissérie de 2013, criada por Jane Campion e Gerard Lee, foi recebida com muito carinho por boa parte da crítica e do público, ainda que sua repercussão tenha sido muito mais discreta. Mais uma razão para que divulguemos este trabalho tão bonito e tão cheio de momentos de emoções intensas.
Antes de mais nada, em comparação com a primeira história de TOP OF THE LAKE, passada na Nova Zelândia, e que mais parecia uma espécie de TWIN PEAKS sem o surrealismo, ao tratar da investigação de uma menina de 12 anos em uma cidade cheia de agressores, a nova temporada é muito superior. O engajamento pesado contra a misoginia parece ainda mais intensificado. Ou talvez seja impressão somada com as experiências trazidas pela personagem nos eventos da primeira temporada.
Esse machismo, em TOP OF THE LAKE - CHINA GIRL, principalmente no começo, parece ainda mais pesado. A impressão que temos é que não há homem algum que preste naquele lugar, a não ser o amigo gay que trabalho no necrotério. E por ser gay, ainda por cima. Isso faz com que muitos dos personagens e dessas situações de machismo pareçam um bocado acima do tom, talvez exageradas.
Felizmente, as coisas ganham um equilíbrio considerável ao longo da narrativa. Até pela figura do personagem do pai adotivo da filha biológica da detetive Robin (Elisabeth Moss). O sujeito é vivido por Ewen Leslie e já passa um ar de homem compreensivo: a esposa (Nicole Kidman) o deixou para ficar com outra mulher e ele aceita essa situação exercitando seu equilíbrio emocional.
Mais uma vez, a série trata de maternidade, mas de maneira ainda mais intensa, já que a própria personagem de Moss está vivenciando o fato de finalmente conhecer a filha adotiva que deu para adoção quase que imediatamente, depois de ter engravidado em um estupro coletivo. Agora a menina, Mary, de quase 18 anos, vivida com brilho por Alice Englert (filha de Campion), está envolvida com um cafetão sinistro que, ainda por cima, tem umas ideias loucas de colocá-la também como as outras que trabalham no prostíbulo, para que ela não se sinta superior, ou coisa do tipo. É assustador a coisa.
Aliás, o tal personagem do namorado de Mary, apelidado de 'Puss', é destaque na série. Perturbadora e intensa interpretação do sueco David Dencik. Há uma cena na praia, com ele e Robin, que parece saída de um filme de horror. Justamente por causa de tantas situações pesadas, há momentos em que o coração não aguenta. E somos levados a nos emocionar bastante com algumas cenas de deixar o coração entalado na garganta, como na cena do primeiro encontro de Robin com Mary, em uma lanchonete. Quando as duas param para fumar um cigarro do lado de fora e conversar um pouco, o grau de sensibilidade explorado é de arrepiar.
Ao que parece teria mesmo que ser uma mulher de talento e sensibilidade como Campion para tratar de maneira tão delicada essa relação complicada entre uma filha que poderia muito bem se sentir rejeitada pela mãe biológica (e que não se relaciona nada bem com a mãe adotiva) e a mãe biológica que se sente afeiçoada imediatamente àquela filha que ela largou por circunstâncias bastante incômodas, para usar de eufemismo.
E eu nem cheguei a falar da trama policial, envolvendo o caso do corpo de uma garotinha asiática grávida que é encontrada dentro de uma mala. Descobre-se no segundo episódio que o feto não tem o DNA da garota, sendo que ela agia como barriga de aluguel. Eis que a narrativa também trata desse tema: o dos casais que desejam muito ter filhos e apelam para pagar meninas pobres para passar pelo processo de gravidez e poder ficar com a criança.
TOP OF THE LAKE - CHINA GIRL até pode ter os seus problemas - e boa parte deles aparece justamente no último episódio -, mas é certamente dessas séries (ou minisséries) que merecem ser vistas por uma série de motivos: pela temática, pelas excelentes interpretações (principalmente de Moss, mas também da jovem Englert), pela participação especial de Nicole Kidman (que poderia ser maior e mais brilhante, é verdade), e pela sensibilidade toda especial com que trata situações de ordem familiar e afetiva.
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