sábado, agosto 20, 2022

BETTER CALL SAUL – 6ª TEMPORADA (Better Call Saul – Season Six)



Sempre tive fantasias sobre uma máquina do tempo que pudesse me fazer voltar ao passado e refazer certas situações de que me arrependo. Algumas delas, de coisas que fiz e que me causam arrependimento, e outras, de coisas que não fiz, e que geram em mim um sentimento de perda equivalente (ou pior) ao arrependimento. Mais recentemente, já um pouco conformado com o fato de que nada posso fazer para mudar o passado, e consequentemente o presente, comecei a fantasiar sobre possibilidades de voltar ao passado a fim de reviver alguns momentos particularmente felizes de minha vida, que aos poucos vão se tornando difusos com o passar do tempo.

A questão do arrependimento e de uma possibilidade (inexistente, no meu caso) de tentar corrigir a situação trouxe o tema para minha última sessão de terapia. (Ajudou também eu ter lido um quadrinho português que trata de algo similar chamado Balada para Sophie, de Filipe Melo e Juan Cavia.) Arrependimento é certamente uma das palavras-chave dos dois últimos episódios da última temporada de BETTER CALL SAUL (2022), criação da dupla Vince Gilligan e Peter Gould.

Isso se dá porque tanto Kim (Rhea Seehorn) e Saul (Bob Odenkirk) lidam, cada um à sua maneira, com esse sentimento que corrói a alma. Sei que estou começando a falar desta temporada pelo final, mas é que a segunda parte, além de estar mais fresca na memória, é o que mais ficará cravado em nossa memória. O ideal, em séries tão boas quanto BETTER CALL SAUL, seria fazer reviews semanais de cada episódio, mas isso, felizmente, é possível ver e ler em ótimos canais de YouTube e em ótimos sites, especialmente americanos. Digo isso - sobre a necessidade dessas reviews sobre cada episódio -, pois BETTER CALL SAUL tem um trabalho tão fantástico de construção que muitos detalhes são dignos de nota, tanto para não esquecermos, quanto para fazermos necessárias reflexões. Nada é em vão.

O que parecia ser um spin-off supostamente inferior a BREAKING BAD (afinal, a série de Walter White é tida como uma das melhores da história da televisão), acabou se tornando algo maior, mais sensível, mais cheio de nuances. A opção por mostrar em paralelo as trajetórias de Saul/Jimmy e Mike (Jonathan Banks) ao longo da série se mostrou mais do que acertada e é admirável imaginar que cada ação pode ter sido pensada desde o início por seus criadores. Esta sexta e última temporada leva os personagens de Saul e Kim para os infernos das consequências de seus atos. Mas não sem antes de nos colocar como testemunhas de tudo, às vezes felizes, às vezes muito angustiados com o modo como tudo vai se desenrolando, especialmente quando vidas de personagens queridos como Nacho (Michael Nando) e Howard (Patrick Fabian) são postas em cheque.

Gosto de como a temporada se divide em dois momentos bem distintos e da preferência por um tom mais amargo e mais lento no processo de narrar a série como um derivado (e um tributo) do gênero filme noir, inclusive com o uso da fotografia em preto e branco para as cenas do presente. Aliás, sem querer me atropelar e já me atropelando, o que é aquela cena de Kim e Jimmy dividindo o cigarro na prisão? É ao mesmo tempo arrebatadora e melancólica. E há o simbolismo de Kim entrando atrás (da sombra) das grades para fumar aquele cigarro com Jimmy, como que repetindo um ato que costumeiramente faziam quando estavam juntos e a sós. Não há espaço para abraços ou soluções melodramáticas nesse momento. O mais próximo que há de um contato físico entre eles é a junção das mãos dos dois para o acender do cigarro e o olhar mais próximo no olho do outro. E há o detalhe da chama amarela destoando poeticamente do preto e branco estilizado, como que para relembrar a cor de tempos mais felizes. 

BETTER CALL SAUL é certamente um dos maiores contos morais já produzidos para a televisão. E há tantos episódios que mereceriam um destaque à parte. Para lembrar de três desta temporada, "Point and Shoot", que destaca a grandeza do vilão Lalo (Tony Dalton); seguido por "Fun and Games", sobre crime e castigo; e há "Waterworks", dedicado à Kim, que é de cortar o coração e enfatiza a grandeza de Seehorn como atriz. Enfim, todo o desenvolvimento final da série, toda a conclusão amarga, nos faz valorizar ainda mais tudo que foi visto antes.

Um acontecimento raro ter algo assim, realizado com tanto esmero na direção, no roteiro, nas atuações, na direção de arte, nos figurinos, na fotografia, nas pequenas imagens mostradas no início de cada episódio, como prenúncios e simbolismos. Além do mais, “Saul Gone”, o episódio final, especialmente na cena em que Saul se despede de seu alter-ego e diz se chamar Jimmy (isso, depois de assumir a identidade de Gene para se esconder da polícia), faz com que percebamos BETTER CALL SAUL como uma série também sobre a arte performática, a excelência da atuação. Saul/Jimmy joga para cima uma chance de ganhar apenas sete anos na prisão para receber uma sentença de 86 anos. “Convidar” Kim para assistir sua última performance é demonstrar que, no fim, ela ainda é a mulher de sua vida. É nos fazer acreditar que toda aquela história de máquina do tempo para ganhar mais dinheiro ou de lembrar de ter falhado em algum golpe era só uma maneira de se blindar dos sentimentos.

Lembremos que a série traz um salto temporal bastante significativo do momento em que Kim o deixa para o momento em que Saul Goodman já é aquele personagem espalhafatoso e autoconfiante que conhecíamos desde BREAKING BAD. Então, não pudemos ver o comportamento imediatamente posterior de Jimmy com a partida de Kim, o quanto sofreu e o quanto trabalhou para superar tudo isso e abraçar a profissão de advogado de criminosos e a vontade de fazer dinheiro como sendo as coisas mais importantes de sua vida.

Então, as respostas para as perguntas que surgem do tipo: “Saul alguma vez teve uma consciência?” ou “ele de fato se arrepende de alguma coisa?” se tornam claras, especialmente com os flashbacks que trazem de volta personagens falecidos, seu irmão Chuck (Michael McKean); seu parceiro no crime mas um exemplo de grande coração Mike; e o anti-herói Walter White. A grande season finale responde a essas perguntas. E nos deixa ainda mais machucados. Ter a consciência de ter acompanhado uma obra de arte feita com tanto cuidado e ter experimentado tantos sentimentos é tão doloroso quanto gratificante. Meu muito obrigado a todos os envolvidos.

+ DOIS FILMES

UM HERÓI (Ghahreman)

Estranha a inclusão de UM HERÓI (2021) na Mostra Varilux deste ano, levando-se em consideração que a única coisa francesa nele é o dinheiro da coprodução. Mas não tenho do que reclamar, pois não está dando para confiar no minguado circuito local e eu tenho por hábito apreciar os filmes de Asghar Farhadi. Este mais recente trabalho é uma espécie de conto moral sobre questões mais complexas acerca da verdade e da mentira, da honestidade e da desonestidade. Na trama, Rahim (Amir Jadidi) é um homem que está preso por causa de dívidas e recebe dois dias de liberdade condicional, que usa para rever a família e a namorada, a quem encontra às escondidas. Uma bolsa com moedas de ouro encontrada pela namorada e sua posterior decisão de devolver ao dono é o ponto de partida para uma série de situações que trarão tanto sorte quanto azar. Farhardi é um mestre da construção de diálogos tensos e aqui ele opta por planos mais fechados do que abertos, na maior parte das cenas, enfatizando o bom desempenho de seus atores e atrizes. Poderia ser um pouco mais curto para não cansar tanto, por causa da sucessão de plot twists, mas não há como negar que se trata de outro filme marcante do cineasta.

AS AVENTURAS DE MOLIÈRE (Molière)

É curioso como essas comédias históricas francesas costumam me dar um pouco de preguiça. Mas aos poucos este AS AVENTURAS DE MOLIÈRE (2007), de Laurent Tirard, foi me fazendo rir e me envolvendo com sua história simples em que o ainda não tão célebre dramaturgo do título (Roman Duris) se infiltra em uma família disfarçado de padre para ajudar um homem rico (Fabrice Luchine) a ser um bom ator, de modo a conquistar uma bela jovem (Ludivine Sagnier) com seus dotes artísticos. Enquanto isso, Molière fica interessado na esposa do tal homem abobalhado (Laura Morante). Não é um filme que desejo ver novamente, mas, para uma obra que me prometia muita preguiça, até que as duas horas de duração passaram rapidinho.

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