segunda-feira, agosto 22, 2022

OS PRIMEIROS SOLDADOS



“Quem vai saber o que você sentiu?
Quem vai saber o que você pensou?
Quem vai dizer agora o que eu não fiz?
Como explicar pra você o que eu quis”
(Renato Russo-Marcelo Bonfá, “Soldados”)

Logo na primeira sequência de OS PRIMEIROS SOLDADOS (2021) ouvimos a voz em off do personagem de Johnny Massaro citando, ainda que discretamente, um trecho de “Soldados”, da Legião Urbana, essa canção que já ganhou homenagem em peça de Marcelo Rubens Paiva, que por sua vez foi adaptado para o cinema em DEPOIS DE TUDO, de Johnny Araújo. Soube depois que a canção deveria estar no filme - o que faz todo o sentido -, mas que seus direitos não foram concedidos, muito provavelmente por causa dessa rixa judicial que o filho de Renato Russo anda criando, para a tristeza dos fãs da banda.

De todo modo, para quem conhece a canção, que é uma espécie de hino cifrado de uma homossexualidade proibida, esse início de filme já vai ajudando a situar a ação. A melancolia do personagem de Massaro, que visita a família na virada de 1982/83, antecipa uma aproximação com Caio Fernando Abreu, um dos artistas mais célebres a referenciar a morte em sua obra, junto com Cazuza e Renato Russo. Quem leu, por exemplo, o conto “Linda, uma História Horrível” pode fazer certos paralelismos com esse personagem que esconde seu maior segredo e sofre em solidão. Mas o filme se demora um pouco a explicitar a AIDS como grande vilão a ser combatido em batalha injusta.

Antes disso, a obra nos apresenta a outros dois personagens que também lidam com seus medos e suas angústias, a travesti e performer Rose (Renata Carvalho) e o cinegrafista Humberto (Victor Camilo). Humberto é o personagem menos trabalhado pelo filme, mas sua função de documentar a si e aos outros será de importância decisiva para o terceiro e mais emocionante ato do filme.

Já Rose, por trabalhar em uma casa de espetáculos de público LGBTQI, traz a alegria e a tristeza andando lado a lado. Em seu show, ela aparece montada com um figurino espalhafatoso e dublando canções. Na virada do ano novo ela escolhe uma canção um triste, lindamente triste: “Um Homem Também Chora (Guerreiro Menino)”, na voz de seu autor, Gonzaguinha. Esse momento, além de nos trazer arrepios de emoção, tem algo de hipnotizante, de paralisador do tempo. E como sempre costumo dizer, ver o filme no cinema para ter o privilégio de ouvir a canção em caixas Dolby de sete canais faz muita diferença no modo como a música amplifica os sentimentos.

Aliás, todas as utilizações de música no filme são lindamente acertadas ("Nossa linda juventude", do 14 Bis, surgindo em um momento irônico e triste; "Seja o meu céu", de Robertinho do Recife, sendo um registro feliz de uma das costumeiras festas caseiras dos anos 80).

Chama a atenção no filme de Rodrigo de Oliveira o tom muitas vezes teatral, quase empostado, das falas, que funciona muito bem - a citação a Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, não é à toa. Quanto ao drama dos personagens em seus destinos para a morte iminente, será preciso esperar pelo lindo último ato para conhecer mais sobre suas lutas, pelo ato ato desesperador de acreditar que a ciência poderá encontrar a cura para aquela nova doença antes que a morte os leve. Esse terceiro ato é também simbólico de como o cinema, em sua magia, pode “ressuscitar” um personagem, através da montagem, do uso do flashback prolongado, e das próprias imagens gravadas pelo personagem do cinegrafista.

Com a morte de um dos personagens do filme, somos levados àquele momento da história humana em que os próprios médicos legistas tinham medo do contato com os cadáveres infectados. Ou seja, é como se fosse negado ao morto e a seus familiares o mínimo de dignidade em seu instante final. Mal comparando, é possível lembrar do momento recente da pandemia de COVID, quando nos foi negado a ida aos funerais de nossos amigos.

O último ato traz também algo de belo nessa aproximação lenta da morte, como uma maneira de a pessoa vitimada poder acompanhar a evolução da própria doença e consequentemente se preparar melhor para a chegada da ceifadora. Há muitos relatos de pessoas com câncer que também trazem esse tipo de alento.

OS PRIMEIROS SOLDADOS talvez seja a obra máxima de Rodrigo de Oliveira. Um filme de muitas emoções, andamento lento e um cuidado visual e de produção de dar gosto. Um filme que vai além da mera narração simples de uma história, explorando a dilatação do tempo nas cenas e a valorização dos rostos e da natureza nas imagens. Seria maravilhoso se fosse visto pelo maior número possível de espectadores. 

+ DOIS FILMES

SEGUINDO TODOS OS PROTOCOLOS

Juntar o desejo sexual com a pandemia, do ponto de vista de um homem bastante precavido, por assim dizer, é talvez o que há de mais novo nesta comédia dramática com toques de documentário. Acho que o ponto alto do filme é o diálogo do próprio Fábio Leal com o também cineasta Marcus Curvelo (os dois interpretando personagens fictícios). Curvelo deve ter contribuído bastante para o tom cômico/paranoico dessa primeira parte. Quem conhece seus ótimos trabalhos provavelmente terá essa impressão também. Diferente do parceiro Gustavo Vinagre, com quem dirigiu DEUS TEM AIDS (2021), Leal opta por um sexo simulado nas cenas de intimidade. O interesse em se aproximar mais das preocupações do protagonista se sobrepõe ao desejo sexual e as cenas de intimidade procuram ser mais carinhosas do que agressivas, o que é muito coerente com o momento apresentado. No mais, SEGUINDO TODOS OS PROTOCOLOS (2022) funcionará como uma ótima cápsula do tempo daqui a alguns anos, inclusive para que se possa entender as relações humanas no ambiente virtual nos anos 2020-2021.

LET ME DIE A WOMAN

Acho muito difícil fazer um julgamento de um filme como LET ME DIE A WOMAN (1977), uma espécie de documentário exploitation sobre as angústias de pessoas trans, com direito a cenas dramatizadas que às vezes parecem saídas de um suspense B. O filme procura ser também uma obra que traz esclarecimentos sobre as cirurgias de mudanças de sexo, com detalhes bem explícitos das operações e da anatomia das pessoas. Como sempre tive a curiosidade de ver os filmes de Doris Wishman, gostei da chance de ver algo que me deixou muito interessado do início ao fim, embora em alguns momentos eu tenha preferido virar o rosto. Como a diretora tem muita experiência com filmes de gênero, eu destaco como uma das cenas mais interessantes aquela em que uma pessoa com poucos meses de operada já quis tentar fazer sexo para se sentir uma mulher. Um filme único, mas que certamente seria visto com algumas restrições pelas novas gerações.

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