sábado, janeiro 08, 2022

MUITO RISO E MUITA ALEGRIA (They All Laughed)



No último dia 6 de janeiro, Peter Bogdanovich foi para o outro plano. Já tinha os seus 82 anos de vida bem vividos e, portanto, o sentimento que mais ficou com sua partida foi de muita gratidão. Da geração da Nova Hollywood, ele se diferenciava por ser também o maior estudioso de cinema da turma (mais até do que Martin Scorsese, eu diria); seus livros de entrevistas se tornaram tão famosos quanto seus filmes. Eu tenho o Afinal, Quem Faz os Filmes como um dos meus favoritos, um livro de consulta constante e de leitura saborosa. Até hoje não terminei de ler (e estou sempre relendo trechos), pois é algo que pretendo fazer enquanto vejo os filmes dos vários cineastas entrevistados. O mesmo vale para o livro Este É Orson Welles.

Esses livros representam tanto o amor de Bogdanovich pelo cinema da Velha Hollywood quanto um gesto de generosidade da parte dele, já que ele está compartilhando informações valiosas com a gente. E amar é compartilhar (nem sei de onde tirei essa frase). Para muitos, inclusive por mim, Bogdanovich também será sempre invejado por ter namorado a Cybill Shepherd no auge da beleza. Ela aparece pela primeira vez, radiante, no lindo A ÚLTIMA SESSÃO DE CINEMA (1971), muito provavelmente a obra-prima maior de Bogdanovich. Ao mesmo tempo, é possível imaginar, e se solidarizar, com sua dor, com a perda de Dorothy Stratten, assassinada pelo próprio marido, quando ele soube que a modelo o deixaria para ficar com o diretor de cinema.

Assim, MUITO RISO E MUITA ALEGRIA (1981), o filme que ele fazia com a Miss Playboy de 20 anos de idade ficou com essa mancha de obra maldita. Foi durante as filmagens que ele se apaixonou por Stratten. O que é uma tristeza, levando em consideração que o filme tem um alto astral contagiante, quase uma negação da vida real dura e um abraçar a fantasia. No filme, o alter-ego de Bogdanovich, vivido por John Ritter, é um detetive particular que se apaixona por uma mulher casada e que a segue, obsessivamente. O final é feliz, como em uma telenovela, com quase todo mundo com seu par.

MUITO RISO E MUITA ALEGRIA é uma comédia maluca herdeira das comédias dos anos 1930, as comédias que o diretor já havia homenageado no ótimo ESSA PEQUENA É UMA PARADA (1972), remake do clássico LEVADA DA BRECA, de Howard Hawks. A diferença é que não é bem um filme de gags e não há tanta influência das animações. É mais algo romântico mesmo. Há tanto uma vontade de ser uma carta de amor a Nova York quanto uma intenção de contar uma história sem muitas amarras, quase de maneira caótica e sem tanto aprofundamento dos personagens. Ainda assim, é possível se envolver e se identificar e se apaixonar por alguns deles.

Como Dorothy Stratten era ainda uma atriz iniciante, não se destaca tanto nas atuações, apenas na beleza. Ao contrário de Colleen Camp, que faz uma cantora de música country que é meio que rejeitada tanto pelo personagem de Ben Gazzara, quanto pelo personagem de Ritter – já que a obsessão dele é pela linda mulher casada. Colleen canta, faz as melhores cenas cômicas, está na melhor cena de beijo do filme – e uma das melhores cenas de beijo que já vi em um filme, eu diria. Então eu ficava me perguntando: meu Deus, essa mulher encantadora está sendo deixada de escanteio! Como pode? O par dela apareceria na cena da sapataria, que é uma cena muito interessante para nós, brasileiros, já que a música que toca lá é “Amigo”, do Roberto Carlos.

Aliás, uma das coisas que faz com que MUITO RISO E MUITA ALEGRIA seja tão cheio de energia positiva é a quantidade de música boa que toca. Fiquei imaginando o quanto deve ter sido extasiante ver esse filme no cinema na época. Infelizmente, foi um fracasso de bilheteria, como aconteceu com tantos outros filmes dirigidos por Bogdanovich. O que é uma pena, mas pelo menos eles ficaram para serem vistos, revistos, valorizados, cultuados, amados.

Este foi um dos últimos filmes com a Audrey Hepburn à frente de um elenco, mas acho que ela foi um tanto eclipsada pelo elenco mais jovem. O que não quer dizer que tê-la no elenco não tenha sido um presente e tanto, seja para o diretor, fã da velha Hollywood, seja para nós, espectadores. Ela é o par romântico de Gazzara, cujo personagem é tão seguro de si em sua capacidade de conquistar as mulheres que chega a dar raiva.

Sobre Audrey Hepburn, há uma declaração interessante de Bogdanovich a respeito. Ele conta que o filme seria, em parte, baseado em sua vida. Ela estaria sendo traída naquele momento pelo seu segundo marido, e continuava com ele apenas por causa das crianças. E havia também um monte de outras coisas autobiográficas do diretor, escondidas numa comédia de detetives.

+ DOIS FILMES

A MÃO DE DEUS (È Stata la Mano di Dio)

Dos longas de Paolo Sorrentino, A MÃO DE DEUS (2021) é apenas o quarto que vejo do realizador. É o que menos me incomodou, mas, ao final, acabei vendo que senti falta daquela coisa mais felliniana do cinema dele. De todo modo, a homenagem a Fellini está mais uma vez presente neste conto de inspiração autobiográfica sobre rapaz começando a conhecer a vida adulta a partir da atração sexual que sente por uma mulher, pelo amor que começa a ter pelo cinema e admiração pelos cineastas e também pelo amor por Maradona. Gosto de como essa aura tão especial do jogador é registrada no filme, semelhante a um aspecto místico, como o vento que surge eventualmente em algumas tomadas bem bonitas, ou no prólogo, quando uma mulher é chamada para ver o “pequeno monge” (desconheço esse mito, que deve ser muito próprio da Itália ou de Nápoles). Gosto também daquela conversa do rapaz com o diretor de cinema que fala com ele sobre o ter o que dizer como artista, ou sobre o uso da fantasia para sublimar a dor.

AZOR

Um filme, sem dúvida, para um público pequeno. A ação de AZOR (2021) acontece principalmente às escondidas, nessa história de um banqueiro suíço que chega à Argentina na época do golpe militar e não encontra seu sócio. Nem sempre consegui me conectar ao filme, mas quando retornava para ele, admirava o tom de thriller frio de espionagem nas conversas do protagonista com membros da alta cúpula da sociedade argentina e também de pessoas que se aproveitam para enriquecer naquele momento de repressão e desaparecimento de pessoas. O trabalho de construção visual do filme é impressionante, com ótimo rigor formal do estreante em longas Andreas Fontana. O roteiro foi feito por Fontana em parceria com Mariano Llinás, diretor da obra-prima LA FLOR.

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