segunda-feira, janeiro 17, 2022

DESERTO PARTICULAR



Um dos sentimentos que mais têm me afligido neste início de 2022 é o cansaço. Um cansaço mental, espiritual. Um cansaço da pandemia e de ver um ensaio aparente de tudo começando de novo. Um cansaço de um 2021 terrível, o pior dos anos, que parece ainda continuar – até por que, dizem que o ano começa de verdade perto de 20 de março, do ponto de vista astrológico e das estações. Então esse cansaço tem atrapalhado um pouco minhas tentativas de escrever, pois também venho tentando esquecer um pouco os problemas que me circundam, que estão muito próximos; problemas que minha família vem sofrendo e eu não tenho conseguido ajudar.

No que se refere aos textos para o blog, acho sempre frustrante quando tento resgatar de minha memória e “pôr no papel” meus sentimentos com relação a filmes de que gostei muito. Filmes que me trouxeram um impacto emocional tão bonito, que cheguei a ficar triste quando saí daquele mundo, ao apagar das luzes. Foi o que aconteceu com DESERTO PARTICULAR (2021), de Aly Muritiba, visto por mim no início de dezembro do ano passado e presente em meu top 20 de 2021. A experiência do filme em tela grande, até por também envolver música (“Total Eclipse of the Heart”, principalmente, mas também Odair José), traz algo de mágico.

DESERTO PARTICULAR é aquele tipo de filme que quanto menos você souber antes de vê-lo melhor. Não que haja tanta surpresa assim do ponto de vista da trama para o espectador, no que se refere a determinado personagem. O filme acompanha o drama de um policial (Antonio Saboia) que está passando por uma investigação por agressão que viralizou nas redes. Muritiba toma o cuidado para não nos apresentar a esse lado mais agressivo do personagem, preferindo mostrar o seu aspecto mais humano, seja cuidando do pai doente, seja sofrendo ao não receber resposta de uma mulher com quem ele anda conversando pelo WhatsApp há alguns meses.

E quando pensamos que o filme é sobre a jornada deste homem ferido, ganhamos muito mais. É lindo quando percebemos a mudança de pontos de vista feita com uma segurança absurda na direção e na montagem – houve um amadurecimento do cineasta desde o seu (também ótimo) PARA MINHA AMADA MORTA (2015). Grande parte da narrativa traz uma aura de mistério e de magia que encanta, até pelo fato de o protagonista estar embriagado de desejo e carência. Mas aí temos a outra história, a história do outro personagem, que é ainda mais fascinante. Também chama a atenção a textura da fotografia, a cargo de Luis Armando Arteaga (do filme paraguaio AS HERDEIRAS).

Há quem diga que DESERTO PARTICULAR é uma representação de um Brasil despedaçado (já vivemos há mais de dez anos divididos, daí também o cansaço) que, enfim, se reencontra e que vislumbra uma reconciliação através do amor. O que é lindo, por mais que a solução do enredo possa parecer por demais fantasiosa para muitos. Afinal, vivemos no país que mais assassina homossexuais e transexuais no mundo. Então, não deixa de ser uma postura corajosa da parte de Muritiba em optar por esse final.

De todo modo, o final, apesar de muito bonito, talvez nem seja o mais importante. Como em todo belo road movie, o que mais importa em DESERTO PARTICULAR é a jornada. E Muritiba nos faz feliz (ou triste, em alguns momentos) durante toda a travessia Curitiba-Sobradinho, durante a travessia envolvendo paixão-desespero-frustração-confusão-aceitação-compreensão do primeiro protagonista.

+ DOIS FILMES

TRANSVERSAIS

O que mais me emocionou em TRANSVERSAIS (2021), de Émerson Maranhão, foram as questões envolvendo as mães e os pais das pessoas trans protagonistas. Se bem que há uma mãe no filme que ganha o protagonismo de maneira muito bonita, mãe de uma garota (Mara) que sofreu rejeição da própria escola. Acho que foi a partir do relato dela que o filme começou a me comover mais, eu que tenho por hábito me emocionar com situações envolvendo mães. Depois há o relato também lindo de Caio José, do dia em que ele teve "a conversa" com o pai. Um dos grandes méritos do filme é também ampliar a apresentação dessas pessoas para o campo profissional, além de apresentar depoimentos de familiares, de modo que tenhamos uma visão um pouco mais abrangente de suas vidas e do que elas vivenciam. Achei, por exemplo, impressionante a coragem da Érika de ter se tornado professora e diretora de escola. Fiquei pensando também no quanto é importante a educação para que todos possam chegar aos melhores caminhos possíveis. Sei que isso vale para todas as pessoas, inclusive cis, mas algumas infelizmente precisam provar mais para a sociedade.

DEUS TEM AIDS

O longa-metragem de estreia de Fábio Leal (REFORMA, 2018) é em parceria com Gustavo Vinagre, que já tem uma carreira solidificada e um estilo bastante seguro na condução tanto de documentários quanto de filmes híbridos com ficção. Este DEUS TEM AIDS (2021) é interessante em sua proposta, que é tratar da questão da invisibilidade das pessoas soropositivas e o quanto ainda existe um medo de contato próximo com pessoas que convivem com o vírus, além de haver também uma falta de informação maior a respeito dos avanços nos tratamentos hoje em dia. Gostei de pelo menos dois dos entrevistados: o pernambucano que trabalha com dança e o rapaz que convida pessoas para conversar, no meio da rua, sobre AIDS. Há uma cena bem incômoda, mas creio que a intenção tenha sido mesmo essa. E por isso mesmo é válida, assim como é válido conferir este filme.

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