sábado, março 12, 2022

A ILHA DE BERGMAN (Bergman Island)



Saber que Mia Hansen-Løve dirigiu seu A ILHA DE BERGMAN (2021) em duas etapas, em dois anos diferentes, ajuda a explicar um pouco a sensação de que há dois filmes em um. Isso aconteceu por causa de uma mudança no elenco. Quem ia interpretar a protagonista Chris era a Greta Gerwig, que resolveu abandonar o projeto para dirigir o seu ótimo ADORÁVEIS MULHERES. Aliás, é possível fazer paralelos entre os dois filmes dessas duas realizadoras. Ambos tratam de pensar a criação a partir da perspectiva feminina e também lidando com uma indignação frente ao fato de que a sociedade machista privilegia demasiado os homens e deixa a mulher sem espaço para a criação artística.

Com a saída de Gerwig do projeto, Hansen-Løve optou por filmar primeiramente o “filme dentro do filme” de A ILHA DE BERGMAN, ou seja, o filme imaginado pela personagem que passaria a ser interpretada por Vicky Krieps, que está tão bem que nem imagino outra atriz fazendo o papel, por mais que eu ame a Gerwig. Esse filme dentro do filme é “The White Dress”, que conta uma história breve sobre uma garota na ilha de Fårö (Mia Wasikowska) que reencontra o ex-namorado (Anders Danielsen Lie) após algum tempo distantes. Ambos estão presentes para o casamento de uma amiga em comum.

E essa história é encantadora, deixa um quentinho no coração ao mesmo tempo que também machuca. Mia Wasikowska está apaixonante e seu sentimento de amor pelo rapaz e sua vulnerabilidade são tocantes. Como esquecer a cena em que ela vai a uma festa que toca ABBA (“The Winner Takes It All”) e começa a dançar sendo guiada pelas vibrações agridoces da canção? E depois, quando o rapaz sai de cena, é como se sentíssemos o que ela sente. Como se algo naquele momento tocasse em algo por que também já atravessamos em nossas vidas. Acredito que é isso que ocorre. O nosso sentimento de empatia pela personagem naquele momento está muito relacionado ao nosso próprio histórico de sofrimento na vida amorosa.

Enfim, essa parte do filme, que ainda é um projeto de roteiro narrado por Chris é um trecho menor do projeto maior, que seria filmado no ano seguinte, com Tim Roth e Vicky Krieps, como um casal de cineastas viajando para a famosa ilha onde Ingmar Bergman trabalhou e viveu por muitos anos, onde fez vários de seus filmes a partir de ATRAVÉS DE UM ESPELHO. O curioso é que raramente a cineasta francesa tenta emular Bergman em seu filme, mas destaca bastante o quanto a ilha lida com a fama do cineasta e gira em torno de sua arte e sua história de vida.

A história principal de A ILHA DE BERGMAN estaria, portanto, um pouco mais próxima do meu filme favorito da realizadora, O QUE ESTÁ POR VIR (2016), dando ênfase tanto ao cotidiano quanto a processos mais interiores. E também mais íntimos, já que, diferente do citado filme de 2016, a solidão aqui é vivida a dois. E não há exatamente uma forte solidão, já que a personagem de Chris se permite uma aventura com um rapaz mais jovem na ilha, deixando o companheiro na mão no tal Safári Bergman. E embora a relação dos dois pareça ser tranquila, percebe-se um pouco de desgaste. Certas coisas ficam nas entrelinhas, como o fato de o companheiro não compartilhar com ela seus projetos pessoais e ela se sentir um pouco magoada com isso.

Para quem é cinéfilo (e praticamente todo cinéfilo obrigatoriamente precisa passar em algum momento por Bergman), o filme é um prato cheio. Principalmente para aqueles que já têm um pouco mais de intimidade com a obra do realizador sueco. Há uma cena que eu acho ótima, quando o casal está sozinho em uma espécie de cinemateca particular onde se pode escolher um entre vários filmes do Bergman para assistir em 35 mm. E eles demoram um pouco para escolher, já que muitos desses filmes já foram vistos por eles várias vezes. Acabam revendo o doloroso GRITOS E SUSSURROS.

Enfim, A ILHA DE BEGMAN é tão gostoso que até poderia se estender um pouco mais na duração que eu não reclamaria. Até por não se tratar exatamente de um filme tão preocupado com a trama. Mesmo a trama pensada/criada por Chris é uma trama sem um final e também mais interessada nos sentimentos borbulhantes da personagem de Mia Wasikowska do que em um plot. Ou seja, como a própria Hansen-Løve falou em entrevista ao The Playlist, seu cinema é muito mais intuitivo. E isso é muito perceptível quando se assiste a este seu mais recente trabalho.

+ DOIS FILMES

SELMA BLAIR – A BATALHA CONTRA A ESCLEROSE MÚLTIPLA (Introducing, Selma Blair)

Não sei por que motivo eu me atraio por esse tipo de documentário tão intrusivo. Este filme lembrou-me VAL, sobre o ator Val Kilmer, embora esteja longe de ser tão bom quanto. Em SELMA BLAIR – A BATALHA CONTRA A ESCLEROSE MÚLTIPLA (2021), de Rachel Fleit, acompanhamos a luta da atriz Selma Blair contra uma doença que prejudica os movimentos do corpo, a fala e os pensamentos. Um aspecto muito importante deste filme é que ele começou a ser feito antes do tratamento com células-tronco, que surge como uma esperança para que ela recupere a saúde perdida. O documentário, no entanto, joga na nossa cara um bocado de realidade, para o bem e para o mal. A atriz faz questão também de deixar bem clara sua relação conflituosa com a mãe, que segue presente até os momentos finais, por mais que se perceba o carinho entre as duas, mesmo que à distância, por telefone. Em alguns momentos, dá impressão de que Selma está tentado, com este documentário, ganhar um tipo de visibilidade que não conseguiu em sua carreira em Hollywood, o que é algo que a deixa frustrada, embora, frente à doença, isso se torne um problema muito menor.

A FELICIDADE DAS COISAS

Um filme que tem um traço maternal extremamente forte e por isso me ganhou tanto. Em A FELICIDADE DAS COISAS (2021), de Thaís Fujinaga, temos uma mulher grávida com seus dois filhos pequenos e sua mãe em uma casa de praia, se esforçando para conseguir instalar uma piscina, por mais que as finanças não ajudem. É interessante o modo como o filme lida com pequenas coisas e as torna imensas, como o gostoso momento da cena da chuva (senti uma alegria de estar vivo nesse momento, que vocês nem imaginam!), ou nas preocupações cotidianas com as crianças, tanto a menina, quanto o menino, ele já chegando na pré-adolescência e por isso muito mais disposto a se aventurar e a ficar mais distante da mãe. Como o filme tem essa postura de mãe, ele me contaminou com as preocupações da protagonista, ao mesmo tempo em que eu olhava com muita simpatia para a personagem da avó. A cena dos meninos, perto do final, possui algo de eletrizante que não vejo em muito filme de suspense produzido por aí.

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