quinta-feira, março 17, 2022

FRESH



Tem sido interessante ver o quanto as cineastas mulheres têm se apropriado de subgêneros do terror que anteriormente eram, com muito mais frequência, dirigidos por homens. Alguns desses filmes, inclusive, pareciam ter uma carga, ainda que leve, de misoginia. Não sei o quanto isso faz sentido ou se estou fazendo algum tipo de presunção indevida, mas sigamos.

De uma forma ou de outra, acho interessante pensar que FRESH (2022), longa-metragem de estreia de Mimi Cave, é uma obra com um grau de militância bem evidente, principalmente no modo como apresenta a amizade e a sororidade das personagens, seja em situações de alegria, seja em situações de horror e desespero.

Falando em horror, é bom deixar claro que este texto conterá alguns spoilers e que FRESH é o tipo de filme que deve ser visto sabendo-se o menos possível, dada a quantidade generosa de surpresas, a começar pela própria pegadinha do prólogo/primeiro ato, que passa a falsa impressão de que o filme seria uma comédia romântica ou algo parecido.

Na trama, Daisy Edgar-Jones (jovem atriz muito querida por quem viu a série NORMAL PEOPLE) é Noa, uma moça adepta dos encontros por aplicativos, ainda que esteja em um momento de desesperança e de cansaço desse ritual de iniciação e tentativa de namoro. Sem falar que, como dá para perceber em um de seus encontros, a chance de dar errado é muito maior.

Até o dia em que ela conhece no supermercado um cara bonito e simpático (Sebastian Stan) que parece ser o homem dos seus sonhos. E embora ela saiba muito pouco desse homem de nome Steve, ela resolve cair de cabeça nessa nova relação, por mais que sua melhor amiga suspeite do fato de ela não saber muita coisa a respeito do sujeito.

E chega o momento da grande revelação. Os créditos de abertura com o título do filme aparecem apenas após esses trinta minutos iniciais, dividindo e apresentando o que seria, a seguir, um filme de horror tão assustador e absurdo quanto próximo de algo realista. Steve, que havia se apresentado como um cirurgião plástico que não comia carne, é na verdade um sádico sequestrador de mulheres. E o que ele faz com elas é de gelar o sangue.

Ainda que seja uma obra que não use tanto gore quando se poderia esperar de um filme desse subgênero, o terror e o suspense estão mais na expectativa, e no modo como a narrativa nos coloca no lugar da protagonista, numa situação de vítima totalmente indefesa, à espera não apenas da morte, mas da pior das mortes. Afinal, ter partes de seu corpo cortadas para vender para uma elite formada por canibais é de deixar qualquer pessoa pirada.

Além disso, o filme se beneficia bastante dos momentos em que Noa conversa com Steve enquanto está presa, na esperança de conseguir conquistar sua confiança e, quem sabe, fugir. E FRESH guarda algumas cenas muito interessantes e até sofisticadas, como aquela em que ela, sob domínio dele, mas já tentando seduzi-lo, dança com o psicopata na sala de jantar. A cena tem uma beleza visual muito interessante, e faz isso tendo que lidar com sentimentos perturbadores da protagonista e da audiência. Eis um filme que vem crescendo em minha memória afetiva, por mais que eu tenha achado a conclusão menos interessante do que o restante da narrativa.

+ DOIS FILMES

AS BODAS DE SATÃ (The Devil Rides Out)

Uma aposta da Hammer em um tempo em que o mercado já estava saturado dos filmes de Drácula e Frankenstein foi dirigido justamente pelo principal cineasta da companhia, e muito provavelmente o melhor deles. Há tempos que eu me devia ver AS BODAS DE SATÃ (1968), de Terence Fisher, e só agora peguei para assistir. Fiquei com um pouco de decepção, mas há também um charme e algo de especial nesta produção. A começar pela ótima performance de Christopher Lee, que aqui faz o papel de um herói, um mago que tenta salvar um de seus melhores amigos de se juntar a um culto de adoradores do demônio. A produção veio à luz por conta do crescente interesse dos jovens e da cultura pop por temas relacionados a esoterismo e satanismo naquela época. E assim os romances de Dennis Wheatley acabaram sendo aproveitados em algumas poucas produções da companhia. O problema foi que AS BODAS DE SATÃ foi mal nas bilheterias americanas e a Hammer foi perdendo um de seus aliados mais fortes, os Estados Unidos. Tem algo neste filme que já parece um pouco antiquado para a época. E nem falo dos efeitos especiais, que realmente não são bons, mas do espírito da época, que estava mudando. Mas não deixa de ter sido uma coragem do Fisher de mostrar explicitamente certas imagens, como o demônio-bode ou o anjo da morte.

A JAULA

Refilmagem do argentino 4X4, de Mariano Cohn, este suspense bastante tenso tem o grande mérito de conseguir se manter interessante do início ao fim, mesmo tendo a metade de sua metragem em um único e apertado lugar, um carro. Na trama de A JAULA (2022), Chay Suede (excelente!) é um ladrão de carros que cai na armadilha de um "cidadão de bem" (Alexandre Nero), que, cansado de ter seus carros roubados, resolve punir de maneira cruel o rapaz. Como não vi o filme original, acredito que houve muitas adaptações para a situação brasileira - há citações muito próprias do momento sócio-político em que vivemos atualmente. Inclusive, dependendo do espectador, há quem vá torcer pela pessoa errada no filme, por mais que os roteiristas se esforcem para deixar clara sua posição e o aspecto mais caricaturesco de certos personagens de extrema direita. O filme de João Wainer também sabe o momento certo para fazer a virada para o terceiro ato. Deveria ser mais visto. Não apenas por causa das questões políticas, mas por ser um ótimo filme de gênero.

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