domingo, março 06, 2022
ESTRELA DITOSA (Lucky Star)
A ideia de que a arte é uma forma de imortalização da vida parece equivocada quando lembramos que até nosso planeta tem data de validade. E, por causa dos próprios humanos, uma data de validade que pode ser antecipada para bem mais próximo do que gostaríamos. Mesmo assim, pensar na arte como o mais próximo da imortalidade que temos nos traz um pouco de alento. Afinal, foi basicamente por isso que Shakespeare fez todos os seus sonetos de amor. E é para isso que muitos dos melhores filmes sobrevivem e seguem sendo vistos e revistos por diferentes gerações. Há alguns que são redescobertos. E há aqueles que renascem das cinzas.
Até já falei neste espaço de alguns filmes de Fritz Lang que foram dados como perdidos e encontrados muitas décadas depois em cinematecas de diferentes lugares do mundo (casos de DEPOIS DA TEMPESTADE e CORAÇÕES EM LUTA) e de vez em quando vêm à tona a possibilidade e a esperança de que possamos encontrar em algum lugar (talvez até no Brasil) a versão original sem cortes de SOBERBA, de Orson Welles. Também podemos lembrar de coisas que nunca mais serão vistas, mas é melhor não falar sobre isso para não ficarmos tristes.
Em vez disso, falemos de uma obra que foi reencontrada para nossa felicidade. ESTRELA DITOSA (1929), de Frank Borzage, é um caso bem singular. Por conta da Grande Depressão de 29, pela transição para o cinema falado e pela má distribuição do filme na época, essa maravilha se deu por perdida por muitas décadas. Só foi redescoberta no início dos anos 1990, depois de encontrada uma cópia (da versão silenciosa) em Amsterdã. Os novos intertítulos em inglês foram refeitos com base no roteiro original. Além do mais, dizem que a versão silenciosa é bem melhor que a sonora, a distribuída nos cinemas dos Estados Unidos - essa continua perdida. Borzage fez uma versão sonora com poucos diálogos e alguns efeitos sonoros, a pedido dos produtores, já que os espectadores americanos não queriam mais ver filmes mudos naquele momento de transição.
Claro que seria ótimo se tivéssemos as duas versões disponíveis, mas já fiquei muito feliz de poder ver essa versão linda. Até fui checar no livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer se o filme estava incluso, mas infelizmente não está (só há três filmes de 1929 e um deles nem é mudo – trata-se do primeiro sonoro do Hitchcock). De todo modo, é possível compreender que talvez seja necessário ainda algum tempo para que ESTRELA DITOSA entre com mais força nos cânones. Eu mesmo nem sabia de sua existência e por isso sou muito grato à curadoria da Versátil, que incluiu este e outro trabalho de Frank Borzage no box Melodrama no Cinema (espero que este box renda continuações). Confesso que, ao perceber que o filme era silencioso, fiquei um pouco desanimado, já que tenho por hábito ficar disperso em filmes sem diálogos. No entanto, isso mudou imediatamente assim que eu dei play e vi as primeiras imagens.
É impressionante quando a gente dá de cara com uma obra-prima. A gente já percebe nos instantes iniciais que está diante de um filme muito especial. O visual majestoso salta aos olhos e faz lembrar AURORA, de F.W. Murnau. Logo esse, que é talvez o mais alto que o cinema feito em Hollywood chegou na era silenciosa. Como se não bastasse, há a presença em ambos os filmes de Janet Gaynor, que em ESTRELA DITOSA está apaixonante como a jovem que conhece dois homens que trabalham em instalação de eletricidade em uma cidadezinha da Nova Inglaterra.
Esses dois homens funcionam como figuras opostas. Enquanto o preguiçoso e mulherengo Martin (Guinn Williams) se mostra cada vez mais de caráter duvidoso, seu subordinado Tim (Charles Farrell) é capaz de tomar o partido de Mary, a personagem adolescente de Gaynor, por causa da briga que ela estava tendo com Martin. Mas também é capaz de dar-lhe umas palmadas em seu bumbum quando descobre que ela enganara Martin com uma moeda – ela estava vendendo leite para os trabalhadores.
No poste de luz, ambos os rapazes descobrem que os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial e ambos vão para o front, ainda que por razões distintas. Martin vai à guerra por causa da fama das mulheres francesas, enquanto Tim tem motivos mais nobres. É patriota, acredita que é seu dever lutar por seu país. O problema é que a guerra lhe toma sua capacidade de andar e depois de dois anos ele volta para seu vilarejo, agora ficando o tempo todo dentro de casa, em sua cadeira de rodas. É nesse retorno que sua relação de proximidade com Mary volta a acontecer.
A relação de amizade vai se estreitando e se transformando em atração e amor. Principalmente a partir do momento em que Tim lava o cabelo dela (com ovos) e nota que ela é loira por debaixo de tanta sujeira, e quer também dar-lhe um banho, já que ela precisa de uns esfregões. No entanto, ao começar a tirar seu vestido, ele percebe que ela já tem um corpo de mulher e acha melhor que ela mesma tome o banho. A imagem dela se despindo é vista de maneira nebulosa, à distância, em segundo plano, e todo esse momento pode ser encarado como erótico e fetichista. Ao que parece, o fetichismo é algo presente na obra de Borzage, a julgar por alguns poucos textos que li a respeito do cineasta, e isso meio que me deixou mais interessado em seu trabalho.
Mas ainda que a história do casal, seja de maneira simbólica ou quase explícita, tenha esse conteúdo mais físico e do desejo, é uma história que também tem um conteúdo espiritual muito forte. Afinal, não deixa de ser a história de um milagre; a história de um amor que é capaz de curar corpo e alma, como os dois dizem na emocionante cena final, com aquela imagem fantástica de Mary agarrada às pernas de Tim. Antes disso, porém, há aquela sequência de Tim lutando contra a fraqueza das pernas para conseguir chegar até Mary, no meio da tempestade de neve, quando ela estava indo embora para se casar com Martin. E, no meio disso tudo, todos os momentos em que os dois se encontram são mágicos. ESTRELA DITOSA é pura poesia visual.
+ DOIS FILMES
O MORRO DOS VENTOS UIVANTES (Wuthering Heights)
Há tempos me devia ver esta versão de Andrea Arnold para o clássico de Emily Brontë, até para ter o prazer de apreciar a beleza de Kaya Scodelario. E talvez até tenha achado melhor do que a versão de William Wyler. Neste O MORRO DOS VENTOS UIVANTES (2011) temos atores negros no papel de Heathcliff, e não um branco pintado com tinta escura. Além desses detalhes, há a força na direção de Arnold, que valoriza a sensualidade e o aspecto sensorial da natureza. Como não li o romance e faz tempo que vi o Wyler, não me lembrava do quanto o personagem enlouquece no final pela amada. Adorei. Um exemplar do ultrarromantismo mostrado de maneira áspera. Fiquei interessado em ver os filmes que ainda não vi de Arnold. Pena que são poucos.
O ÚLTIMO DUELO (The Last Duel)
Um dos melhores filmes de Ridley Scott dos últimos oito-dez anos, este O ÚLTIMO DUELO (2021) tem um recurso narrativo semelhante ao de RASHOMON, de Akira Kurosawa, apresentando a história por três diferentes pontos de vista: a história de uma mulher que é estuprada e desafia uma sociedade acostumada a silenciar esse tipo de violência. A mulher é vivida por uma Jodie Comer que parece ter despontado para o estrelato aqui, de tão magnética que está em cena. A duração do filme, cerca de duas horas e meia, passa até bem rápido e a cena final da batalha é de deixar o público nervoso. Há também o luxo de uma produção cara como essa, que nos leva para a França do século XIV. No mais, por mais que Matt Damon e Ben Affleck não sejam tão bons atores, Adam Driver compensa com seu brilhantismo de sempre.
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