A descoberta de Frank Borzage, a partir de ESTRELA DITOSA (1929), me deixou bastante desnorteado. Cheguei a começar a ler um texto mais aprofundado sobre ele no site Senses of Cinema, mas percebi que seria preciso conhecer mais seus trabalhos para que esse texto passasse a fazer mais sentido para mim. Não que eu precise conhecer todos os seus trabalhos – pelo menos não por enquanto, e nem sei se isso é possível –, mas acredito que seja necessário um bom apanhado para que sua poética começasse a se fazer mais perceptível para mim.
É novamente do box Melodrama no Cinema que entro em contato com outro de seus trabalhos, o desconcertante A HISTÓRIA COMEÇOU À NOITE (1937), uma obra que está mais em sintonia com a década de 1930, já que foi a partir dessa década que as comédias sofisticadas e com ênfase na fala começaram a se fazer presentes. E não sei o quanto isso influenciou os melodramas, de modo que eles deixassem de ser tão carregados como eram na década de 1920.
O que me deixou muito impressionado com A HISTÓRIA COMEÇOU À NOITE foi a mistura de gêneros. Isso não acontece de maneira homogênea, mas pulando de um para outro, e de maneira muito fluida. O filme começa com um ar de filme noir e suspense, com a personagem de Jean Arthur, Irene, abandonando o casamento recente com o magnata dos navios Bruce Vail (Colin Clive), e partindo para Paris. O marido (ou ex-marido) fica indignado e, acreditando que Irene tem um amante, envia homens para, de alguma maneira, trazê-la de volta.
É aí que entra Paul, o personagem de Charles Boyer, um maître de um respeitado restaurante, que, vendo Irene ser atacada por um dos homens de Bruce, faz de conta que é um ladrão, dá um soco no sujeito, acende as luzes do apartamento, leva umas joias de Irene consigo e carrega-a em um carro. Ela, inclusive, acredita nesse teatrinho até o momento em que Paul lhe devolve as joias, demonstra ser um cavalheiro e a convida para jantar e tomar um champanhe. Ela aceita e os dois têm uma noite romântica inesquecível. Nesse momento, o filme assume toques de comédia romântica. Que logo será quebrada por uma chantagem pesada de Bruce.
Então, o filme passa a assumir o manto de melodrama, no sentido de que temos uma situação dramática de separação injusta de um casal que se ama. Um destaque interessante (e também muito triste) está no fato de que o ator Colin Clive, mais lembrado como o Victor Frankestein dos filmes de James Whale, estava muito doente durante as gravações e morreria no ano de lançamento do filme, por complicações da tuberculose e também por conta do alcoolismo. A partida de seu personagem no filme também é trágica, e acontece num momento em que o filme ganha ares de tragédia.
O curioso é que Frank Borzage trafega por todos esses tons e gêneros de maneira muito natural, ainda que isso cause estranheza, mesmo aos olhos de hoje, quando estamos mais acostumados a ver mais experimentações. E ele faz isso em um filme de menos de 100 minutos de duração e de maneira muito dinâmica. Se alguém pensasse em algo parecido hoje certamente faria um filme de três ou quatro horas de duração.
Acontece que A HISTÓRIA COMEÇOU À NOITE não foi uma obra pensada para ser assim desde o começo. Quando Borzage foi convidado para dirigir o projeto (pelo produtor Walter Wanger) não havia roteiro. O script foi sendo construído enquanto as cenas iam sendo rodadas. Achei isso incrível e mesmo assim o filme pode ser visto como um sucesso. Saber que a cena do navio foi pensada muito depois faz muito sentido. Apesar de completamente inesperada, a cena tem uma força incrível. A impressão que temos é que depois que a personagem de Arthur descobre que seu amado está em Nova York e não em Paris o filme estaria perto do fim, mas esse é uma especie de falso final.
Uma das coisas observadas pelos estudiosos do filme e do cinema de Borzage e que se aplica muito bem em A HISTÓRIA COMEÇOU À NOITE é que não há em nenhum momento dúvida por parte do casal de amantes sobre seus sentimentos. Eles sabem que se amam como almas gêmeas. Em comparação com ESTRELA DITOSA (a única comparação que posso fazer no momento), há neste filme um ar mais espiritual e bem menos físico no que se refere ao amor dos dois. Porém, isso pode ser culpa do código Hays, que impôs regras duras para insinuações sexuais nos filmes a partir da década de 1930. Por isso, no momento em que o casal se encontra no restaurante, a transição um tanto brusca entre a conversa esclarecedora deles à noite e o café da manhã íntimo (e fora da cama, no fogão) é notada de maneira bem clara. Ou seja, talvez a fama de cineasta espiritual que Borzage ganhou tenha sido, em parte, causada por essa censura. Mas isso é algo que ainda preciso estudar para saber de fato. Além do mais, uma coisa não excluía a outra, não é verdade?
+ DOIS FILMES
CLÉO DAS 5 ÀS 7 (Cléo de 5 à 7)
Não é sempre que se tem o privilégio de ver esta obra-prima de Agnès Varda no cinema. Ainda mais em uma restauração tão linda e em uma sala tão boa (como a do Cinema do Dragão). Muitos detalhes me impressionaram durante a metragem, mas o que mais encanta é o quanto a trama (e o espírito do filme) parte de um presságio de morte para fazer uma celebração da vida nos mínimos detalhes, seja no ruído das ruas de Paris, seja nas conversas nos cafés, seja o momento mágico em que a protagonista (Corinne Marchand, linda) canta, seja na cena do ônibus. E ainda há explicitado o amor de Varda pelos gatos. Montes de gatos aparecem na casa de Cléo, tirando até um pouco de nossa concentração, e até da própria diretora, mas para um bem maior. CLÉO DAS 5 ÀS 7 (1962) é o tipo de filme que parece ganhar mais beleza a cada revisão.
ANNETTE
Acredito que se eu tivesse visto ANNETTE (2021) no cinema talvez a experiência fosse mais positiva para mim. Gosto muito do final, e gosto de muitas coisas no filme, embora tenha ficado aborrecido com outras, até porque nem toda cena musical parece funcionar, pois nem todas as canções são boas. Adoro o início, com "So May We Start", e o tema mais marcante, "We Love Each Other So Much", que antecipa algo da tragédia e horror que o filme oferece a partir de determinado ponto. Adam Driver funciona muito bem como homem tóxico e violento, seja por sua altura, seja pela lembrança de GIRLS. Marion Cotillard desperta o sentimento de amor com muita naturalidade. A estranheza que já é comum de se encontrar nas obras de Leos Carax aqui aparece de maneira mais forte, embora a história seja de fácil apreensão, se compararmos com HOLY MOTORS (2012), seu longa anterior. Como aqui não é ele que assina o roteiro, não vejo o projeto como totalmente dele, tanto quanto é dos roteiristas e compositores. Momentos impactantes: a tempestade, o assassinato premeditado e a visita de Annette no final.
Nenhum comentário:
Postar um comentário