domingo, dezembro 15, 2019

NO INTENSO AGORA

“Nem sempre a gente sabe o que tá filmando”. Essa é uma das frases mais significativas dentre as tantas ditas pelo diretor João Moreira Salles ao longo de NO INTENSO AGORA (2017), já que muito do que o cineasta faz neste filme, construído na mesa de edição, é observar, analisar e refletir sobre imagens deixadas para a posteridade, mas sem a total consciência do que significariam.

O filme abre em silêncio, com imagens da Tchecoslováquia de 1968. Nota-se um respeito forte por aquelas imagens e pelas que virão. Elas mostram pessoas alegres, festejando a vida. São imagens amadoras e o narrador faz observações sobre essas pessoas, sobre as roupas, sobre a estação do ano e principalmente sobre a felicidade delas.

Mais à frente, saberemos que NO INTENSO AGORA é sobre momentos felizes que foram substituídos por frustrações ou até mesmo por tragédias. No caso, uma tragédia pessoal que não é contada pelo cineasta: o fato de sua mãe ter perdido a alegria de viver e morrido em 1988. A perda da mãe não é dita explicitamente, mas, através do tom de voz, do uso do tempo pretérito e de associações com algumas histórias apresentadas, isso se torna claro. "Eu era feliz nas férias, na minha memória; minha mãe era feliz o ano inteiro", afirma o cineasta.

João Moreira Salles prefere lembrar-se da mãe naquele momento de sua vida, feliz. Em outros momentos, pergunta-se se a mãe estaria feliz naquele maio de 1968, quando a família morava em Paris e a França vivia uma convulsão social que trouxe alegria e empolgação para os jovens que se tornaram, ao menos por alguns momentos, protagonistas de uma nova história que estava sendo – acreditava-se – construída.

As cenas que mostram Maio de 68 são cheias de uma vontade de viver contagiante. “A felicidade é uma ideia nova” foi uma das frases pintadas nos muros de Paris nessa época. A moça que corre no dia 6 de maio, rindo enquanto a polícia joga bombas contra os estudantes; a garota com um sorriso no rosto que atende a ligação de uma mãe preocupada com a ausência do filho que participa ativamente dos movimentos daquele mês.

Desses movimentos de luta, os protagonistas são o jovem Daniel Cohn-Bendit, do lado dos estudantes, e o Presidente da França Charles De Gaulle, representante do estado de coisas velho, das alas conservadoras e resistentes à mudança. Infelizmente os conservadores vencem no final. Cohn-Bendit é usado pelo sistema que ele tanto ataca e é afastado do movimento. O líder aceita a proposta de uma revista, ganha um carro, viaja para a Alemanha, sendo fotografado em seu trajeto. Foi usado pelo capitalismo. “Meu personagem me escapou’, diz.

O sentimento de frustração que isso provoca encontra ecos no que acontece na Tchecoslováquia, com as imagens da invasão dos tanques soviéticos em Praga. A história dos tchecos em 1968 ganha um arco dramático menor na narrativa, mas o drama do jovem Ian Palak, que protestou contra o sistema ateando fogo no próprio corpo, é comovente, com o governo permitindo o enterro público para que as pessoas pudessem ao menos ter o direito de expressar sua dor. João Moreira Salles busca casos semelhantes também em Paris e no Rio de Janeiro.

Um dos problemas de NO INTENSO AGORA é que suas passagens na China acabam trazendo uma sensação de torpor, ao contrário do que acontece quando o filme se centra na situação na França ou na Tchecoslováquia. Há uma tentação de ser mais lírico, mais poético, mas triste, muito pela presença de sua mãe naquele espaço, naquele momento. A situação política da China, porém, é mais complexa, provoca sentimentos contraditórios.

Ao final, porém, percebemos que o que poderia ser visto como dois filmes em um, o filme pessoal e intimista sobre a mãe do cineasta na China da Revolução Cultural e o filme sobre as lutas e opressões sociais na Europa e um pouco no Brasil, é cuidadosamente pensado como algo interligado principalmente pelo sentimento. Um sentimento um tanto amargo de derrota, mas também da lembrança de dias felizes.

+ TRÊS FILMES

O MISTÉRIO DE PICASSO (Le Mystère Picasso)

Henri-Georges Clouzot a essa altura já podia tudo. Até mesmo fazer um filme com Pablo Picasso pintando exclusivamente para sua câmera. Eu fiquei um tanto impaciente, mas é uma experiência e tanto. Até porque o filme quase inteiro é só de acompanhar as pinturas feitas por ele. Em alguns momentos achei assustador o quanto a aplicação das cores em suas obras trazem uma sensação de caos e perturbação. Falta-me mais conhecimento sobre a história da arte como um todo para poder apreciar melhor um filme como esse. Ano: 1956.

TORRE DAS DONZELAS

Quando o filme começou eu estava achando estranho aquele grupo de mulheres que passaram por anos de prisão e tortura estarem ali rindo e sorrindo. Depois a gente vai entendendo os motivos, ao longo da narrativa, quando sabemos que o fato de elas estarem inteiras e muito vivas para contar isso é mais um sinal de que elas venceram os torturadores, por mais difícil que tenha sido. Não apenas por terem sobrevivido, mas por transformarem aquele tempo juntas em algo quase agradável, muitas vezes divertido e um espaço de transmissão e absorção de conhecimento. E o que é Dilma Roussef, hein? Essa mulher é uma fortaleza. E cada fala dela dá um orgulho danado de ter torcido por ela afinal de tudo. Direção: Susanna Lira. Ano: 2018.

AUTO DE RESISTÊNCIA

Um filme sobre as dores de mães que perderam seus filhos pela ação assassina de policiais. Também sobre suas tentativas de se unir para conseguir alguma justiça. Algumas cenas são impressionantes, como aquelas que flagram a ação dos policiais. Talvez haja muitas repetições no discurso das mães, mas talvez seja maldoso imaginar que essa repetição não seja necessário. É até pouco, apenas uma parcela da missão de vida dessas mulheres. Como não podia deixar de ser, lá estava Flávio Bolsonaro defendo os policias e suas técnicas de matar primeiro e armar para que as vítimas apareçam como os culpados. Direção: Natasha Neri e Lula Carvalho. Ano: 2018.

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