domingo, maio 29, 2022

TOTALMENTE SELVAGEM (Something Wild)



Com o falecimento de Ray Liotta na quinta-feira passada, dia 26, a revisão que eu já estava ensaiando de TOTALMENTE SELVAGEM (1986) acabou por se antecipar. Embora Liotta seja um personagem fundamental para a trama, ele só aparece depois de cerca de uma hora de metragem. Mas justamente para mudar o tom do filme, trazer sombras para as tintas até então solares que Jonathan Demme emprestava à história de um encontro feliz (ainda que provavelmente perigoso) entre a libertária Lulu (Melanie Griffith) e o yuppie Charlie (Jeff Daniels). Os dois se conhecem em um café quando ela percebe que ele sai sem pagar do estabelecimento, flagrando, assim, seu lado rebelde, contraventor.

Lulu, a versão morena de Melanie Griffith, com uma peruca que faz lembrar o corte de cabelo de Louise Brooks, faz o tipo femme fatale, e por isso mesmo muito atraente. Charlie, a princípio muito temeroso de entrar no carro colorido de Lulu, que joga fora seu pager e depois entra em contato com o escritório dele para deixar claro que ele passará o fim de semana de folga com ela, sente uma atração muito forte por aquela mulher.

Acho o filme bem ousado na primeira cena de sexo do casal. E embora tenha ficado muito forte o seu impacto em minha memória de adolescente, ainda hoje vejo essa cena (e tudo que vem junto) como a materialização de uma fantasia masculina de dominação (passiva), frente a uma mulher poderosa. Na tal cena, Lulu algema Charlie na cama, rasga sua camiseta, tira fora a própria blusa deixando ver seus belos seios e faz um sexo de uma maneira até então inédita para aquele homem. Não à toa, ele se deixa levar cada vez mais por essa brincadeira e aceita até fingir ser noivo de Lulu, na verdade Audrey, quando visita a mãe dela. O fato de Audrey ser loira, inclusive, faz lembrar o jogo hitchcockiano de UM CORPO QUE CAI, mas de maneira muito mais divertida, por assim dizer.

TOTALMENTE SELVAGEM talvez possa ser visto como uma espécie de trilogia que o diretor fez em parceria com o músico David Byrne, após ter dirigido o musical STOP MAKING SENSE (1984), sobre a banda Talking Heads. Byrne faria tanto a canção de abertura de TOTALMENTE SELVAGEM, quanto a trilha sonora do ótimo DE CASO COM A MÁFIA (1988), que também conta com os ritmos afrolatinos do anterior. Aquilo parecia ser uma marca do cineasta, mas ele resolveu entrar com força em filmes mais sérios e com vistas ao Oscar, a partir de O SILÊNCIO DOS INOCENTES (1991), seu maior êxito comercial, de crítica e de premiações. Não que eu esteja reclamando. E não que Demme também já não tivesse experimentado o gênero suspense nos anos 1970, ainda que em produções mais modestas.

Sobre TOTALMENTE SELVAGEM, gosto de como o filme se sai bem em suas viradas de roteiro, e também em como é dessas obras que se assiste com um sorriso no rosto por cerca de uma hora pelo menos. Até o momento que o humor se alia também ao suspense. No mais, ver o filme é também aproveitar o momento adorável de Melanie Griffith naqueles anos 1980, após ela ter trabalhado com Ferrara (CIDADE DO MEDO) e De Palma (DUBLÊ DE CORPO). Quanto a Ray Liotta, é bem possível que o sucesso de seu personagem vilanesco no filme de Demme tenha sido o motivo de ele ter sido convidado por Martin Scorsese para protagonizar a obra-prima OS BONS COMPANHEIROS. A partir de então, o ator ficaria marcado por personagens criminosos, maus e/ou perversos. Enfim, um ator que vai fazer falta.

+ DOIS FILMES

MANITOU - O ESPÍRITO DO MAL (The Manitou)

É impressão minha ou o cinema de horror dos anos 1970 era bastante original? Como não acompanhei "ao vivo" esta década nas salas de cinema, não saberia dizer, mas o que dizer de um filme sobre uma mulher que está com um tumor nascendo na nuca, que descobre que esse tumor é um feto, e que dele está reencarnando um antigo curandeiro de 400 anos atrás? Além do mais, MANITOU - O ESPÍRITO DO MAL (1978), de William Girdler, é também um filme sobre exorcismo, só que o exorcista aqui é um nativo americano, combatendo fogo com fogo - essa é a ideia do escritor vivido por Burgess Meredith, em participação pequena. O protagonista é Tony Curtis e isso daria a impressão de que se trata de uma produção classe A, mas o fato é que muitos atores e atrizes da velha Hollywood estavam precisando de dinheiro e muitos deles participavam de algumas produções de terror da década. O filme não envelheceu muito bem, especialmente com os efeitos pouco críveis, mas isso é algo para se dar um desconto. Ainda assim, eu preferia um filme mais focado na história do feto nascendo na nuca do que em um exorcismo ou coisa parecida. Mas não dá para negar que o roteirista dá asas à imaginação, sem medo de ser feliz. Filme presente no box Obras-Primas do Terror 17.

O BÍGAMO (The Bigamist)

O corpo de sete filmes e um monte de episódios para séries de televisão que Ida Lupino dirigiu nos anos 1940-60 é admirável dentro de uma indústria onde se via tão poucas diretoras mulheres. E mais admirável ainda que todos os filmes que vi dela são no mínimo muito bons. Este melodrama noir, O BÍGAMO (1953), é bem mais do que o título dá a entender. Claro que já ficamos sabendo de imediato que temos uma história sobre um homem com uma vida dupla, casado com duas mulheres. Mas Lupino e seus roteiristas, em vez de condenarem o homem, tornam-no mais complexo e mais digno de nossa solidariedade. Afinal, é pelo ponto de vista dele que ficamos sabendo de toda a história, através de um longo flashback muito comum nos filmes da época. E ainda que seja uma obra de narrativa bem clássica, a opção dada para a conclusão me pareceu um tanto moderna, além de trazer uma dramaticidade muito bonita dentro daquela situação complicada, para usar de eufemismo.

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