
Que ano intenso foi 1957 para Samuel Fuller! Ele entregou três trabalhos fenomenais: o drama de guerra NO UMBRAL DA CHINA, o western RENEGANDO MEU SANGUE e este outro western, DRAGÕES DA VIOLÊNCIA. E o mais incrível da experiência de ver seus filmes é o quanto eles geram sentimentos mistos, mas sempre sentimentos também de muita admiração por suas ousadias estéticas, e aqui ainda mais, por seu virtuosismo. E ele fazia isso sempre com cinema de baixo orçamento, com produções B. Seus filmes, com frequência (ou quase sempre?), são produções escritas, dirigidas e produzidas por ele mesmo, o que não quer dizer que ele tinha o corte final sempre que queria. No caso de DRAGÕES DA VIOLÊNCIA ele não pôde usar o final que gostaria, por exemplo. A Fox achou por demais niilista.
Talvez este seja o filme em que se percebe com mais facilidade o virtuosismo de Fuller. O uso do cinemascope para mostrar a mulher cheia de poder e seus quarenta ladrões, já desde sua primeira aparição deixando um rastro de areia como numa tempestade, o uso de imagens aéreas para nos apresentar a um território ou uma imagem de cima para nos trazer informação privilegiada, de travellings para nos trazer uma sensação de levitar ou o super close-up dos olhos do herói antes mesmo de existirem os westerns de Sergio Leone, ou aquela cena incrível do tornado.
E mais: o que dizer daquela cena de uma beleza plástica fenomenal, que é a do enterro do irmão do protagonista, com um contraste no preto e branco, de encher os olhos? Mas DRAGÕES DA VIOLÊNCIA sofre com personagens masculinos fracos (talvez os atores escolhidos não tenham sido suficientemente bons) e uma sensação de que algo faltou na mesa de edição.
Barbara Stanwyck, por sua vez, está incrível (como sempre), aqui num papel que geralmente costuma ser associado ou comparado aos de Joan Crawford em JOHNNY GUITAR, de Nicholas Ray, e Marlene Dietrich em O DIABO FEITO MULHER, de Fritz Lang. Curiosamente, as três atrizes dos referidos filmes já eram mulheres maduras e por isso mesmo esses papéis têm a força que tem, embora eu sinta falta de um texto melhor para Stanwyck. Aqui Fuller prefere privilegiar as imagens, e é justamente pelas imagens que este filme costuma ser tão celebrado.
Além do mais, há todo um discurso anti-armas que a princípio eu não notei, mas, vendo o ótimo extra, presente no box O Cinema de Samuel Fuller, meus olhos se abriram e deu para perceber o quanto o cineasta via a arma de fogo como um brinquedo estúpido usado pelos homens para fazer guerras e matar as pessoas. A arma como um brinquedo que pode ser tirado por uma figura materna é algo que se apresenta muito explícito na cena em que a personagem de Stanwyck toma a arma do irmão mais novo, que gosta de ficar aprontando e fazendo besteiras. Inclusive, acho muito interessante que esse tipo de coisa ajude a compensar as acusações que o cineasta por vezes recebia de ser fascista. Do ponto de vista político, ele era tão complexo quanto fascinante.
Aliás, é curiosa a questão entre o protagonista (Barry Sullivan) e a personagem de Stanwyck. Ele, como homem da lei, sente uma atração por aquela mulher que abriga 40 ladrões, e muitos deles com crimes graves, como assassinato, além de assalto a banco também. Fica muito estranho o final, mas há toda uma questão envolvendo a Fox, e Fuller acabou fazendo um final ruim de propósito, ao que parece. Mesmo assim, do jeito que ficou, acho muito curioso ele mostrar a personagem de Stanwyck, depois de ter se apresentado como durona e dona de um império, se desnudando para ficar com o homem que ama e encararem o desconhecido à medida que vão sumindo no horizonte.
No livro Samuel Fuller, de Phil Hardy, publicado em 1970, o autor divide a obra do cineasta em cinco aspectos: “An American Dream”, “Journalism and Style”, “An American Reality”, “Asia” e “The Violence of Love”. DRAGÕES DA VIOLÊNCIA se encaixa nesse último capítulo, junto a EU MATEI JESSE JAMES (1949), O BARÃO AVENTUREIRO (1950) e O BEIJO AMARGO (1964). Trata-se, portanto, de um filme de paixões. Não que vários outros também não o fossem, mas achei interessante essa divisão.
A primeira lembrança que Hardy faz de DRAGÕES DA VIOLÊNCIA nesse capítulo é da cena em que os personagens de Stanwyck e Sullivan se beijam ao som do barulho dos pés do homem que havia acabado de se enforcar: um homem que trabalhava para a líder do bando, e que nutria por ela uma paixão. Ou seja, há nesta cena um conflito terrível: como se o amor estivesse fadado a ser interrompido pela tragédia ou pelo horror. Em EU MATEI JESSE JAMES, Bob Ford descobre que sua namorada não o ama e que ele amava, na verdade, o companheiro que assassinou covardemente. Já em DRAGÕES, vemos aquela cena bastante incômoda do tiro: Sullivan não apenas atira na mulher para, em seguida, matar o bandido, mas também segue friamente, dizendo: chamem o médico, ela está viva, ou algo do tipo. Mas deixarei para falar um pouco mais sobre isso, quando da revisão de O BEIJO AMARGO.
+ TRÊS FILMES
CORAÇÕES LOUCOS (Les Valseuses)
Em homenagem a Bertrand Blier, falecido no dia 20 de janeiro, escolhi este CORAÇÕES LOUCOS (1974) para ver, muito por sempre ter achado atraente a foto que circula pela internet com os três protagonistas nus, Gérard Depardieu, Patrick Dewaere e Miou-Miou. É fácil se pegar com raiva dos protagonistas do filme logo de início, não por eles serem ladrões pés-de-chinelo e também homens com um grau de taradice bastante acentuado, mas justamente pelo modo como eles se aproveitam da masculinidade para se aproximar de mulheres indefesas. Felizmente este trabalho de Blier é muito mais complexo e traz tons de cinza para esses dois homens, especialmente quando entra em cena a ótima personagem de Miou-Miou, uma mulher que tem problema de frigidez. Mas o filme me ganha mesmo quando surge em cena a personagem de Jeanne Moreau. Seu momento em cena é curto, mas muito marcante e faz com que os rumos das vidas dos três mudem consideravelmente, assim como a vontade de fazer algo bom. Certamente é um filme que jamais seria feito nos dias de hoje (a cena com uma bem jovem Isabelle Huppert, principalmente), mas funciona como um documento daqueles anos mais complexos e mais libertários. A palavra liberdade e suas variáveis é a primeira que vem à mente nas últimas cenas do filme, inclusive. E que sensacional que é a cena de sexo dentro do carro em movimento, hein.
VONTADE INDÔMITA (The Fountainhead)
O filme que inspirou O BRUTALISTA tem um visual ainda mais emulador dos grandes edifícios em cada fotograma. Embora o filme me perca por vezes no roteiro e nas ideias do personagem de Gary Cooper, ele me ganha quando um triângulo amoroso muito interessante se estabelece, com Patricia Neal e Raymond Massey. Do ponto de vista político achei estranho que King Vidor, o mesmo diretor de O PÃO NOSSO (1934), de forte aceno comunista, seja o mesmo deste VONTADE INDÔMITA (1949), uma ode ao individualismo e um filme claramente liberal. Gosto muito das cenas entre Cooper e Neal, e acho engraçado como a lógica do melodrama aqui se forma de maneira a mostrar seus heróis como figuras trágicas e muitas vezes estúpidas: quando estão com a felicidade em suas mãos, do ponto de vista do amor, acabam tomando outros caminhos, por causa de caprichos. É um filme estranho também justamente por ter nascido da parceria com a autora do romance, a russa Ayn Rand, que exigiu muita fidelidade a seus diálogos. Por isso há algo de travado e pouco realista quando os personagens falam sobre suas visões de mundo. Ainda assim, é visualmente admirável. De encher os olhos. Visto no box Melodrama no Cinema.
ALUCARDA – A FILHA DAS TREVAS (Alucarda – La Hija de las Tinieblas)
Por mais que eu não tenha sido tão conquistado por ALUCARDA – A FILHA DAS TREVAS (1977), de Juan López Moctezuma, é preciso ver o quanto o filme traz um visual original (o que são aquelas freiras vestidas de múmia?) e uma seriedade que o afasta de um horror B mais comum ou de um nunsploitation vulgar. Sem falar que temos aqui um filme de vampiro que é também um filme de possessão demoníaca. Ou seja, pensamos nos dois filmes de terror possivelmente mais influentes dos anos 1970, OS DEMÔNIOS, de Ken Russell, e O EXORCISTA, de William Friedkin. Gosto muito da protagonista, vivida pela belíssima Tina Romero, que já tinha 28 anos na época, mas que convence muito bem como uma adolescente rebelde e estranha em seu vestido preto e expressões que vão da paixão ao ódio. Há cenas que ficam grudadas na memória, como a tentativa de exorcismo de Justine, com a entrada em seguida do médico. O visual do convento, que também é um orfanato, é muito próprio, parecendo uma caverna. Coisas que só um diretor ousado e criativo e filmando de maneira bem independente conseguiria. Visto no box Obras-Primas do Terror 10.
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