sexta-feira, janeiro 17, 2025
DAVID LYNCH (1946-2025)
Era para ter sido um dia normal esta quinta-feira, 16. Estava no shopping, comendo um sanduíche prestes a entrar para uma sessão de cinema com meu amigo Walker, quando ele me mostra a notícia em seu celular. Àquela altura, minha timeline inteira estava falando do assunto, e eu já havia recebido mensagens de meus amigos Zezão, Marcos e Rodolfo. Só não tinha visto ainda. A notícia da passagem de Lynch não foi fácil de receber. Não imaginei que seria assim, como a morte de um ente querido. Que o sanduíche não teria gosto algum, que o café seria tomado acompanhado de tristeza.
Lynch não era um homem que só se conhecia por seus filmes, como uma espécie de marca. Ele aparecia em TWIN PEAKS (1990-1991) como um personagem divertido e apareceu num papel carinhoso num filme recente e bastante pessoal de Steven Spielberg. Além disso, veio ao Brasil falar de meditação transcendental, tinha um divertido boletim meteorológico diário na internet e fez campanha para a Laura Dern ser indicada ao Oscar ao lado de uma vaca por IMPÉRIO DOS SONHOS (2006).
Mas não é por isso que Lynch se tornou tão querido. É pelos seus filmes e por suas séries mesmo. Por ter criado a mais bonita e mais dolorosa história de amor perdido (CIDADE DOS SONHOS, 2001); por ter juntado comédia, horror, investigação policial, surrealismo e melodrama em TWIN PEAKS, a série que revolucionou a televisão americana; por ter contado histórias de pessoas em trajetórias de vida trágicas, mas que encontram, ao fim, a tão sonhada paz, como O HOMEM ELEFANTE (1980) e TWIN PEAKS – OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER (1992) – ou não, como em CIDADE DOS SONHOS ou talvez no ainda mais enigmático ESTRADA PERDIDA (1997) –; por saber contar também uma história de amor entre irmãos idosos e no meio disso tudo nos mostrar a beleza da vida, em HISTÓRIA REAL (1999). E fez tudo isso com originalidade, cuidado com o uso do som e da câmera. Ou seja, temos tantas razões para agradecer por ter conhecido o cinema desse homem, a arte desse homem.
Acompanho Lynch desde a aurora de minha cinefilia, quando vi VELUDO AZUL (1986) pela primeira vez na televisão. E depois veio o fenômeno TWIN PEAKS com direito a uma trilha sonora memorável de Angelo Badalamenti e um livro spin-off escrito por sua filha, chamado O Diário Secreto de Laura Palmer. Nessa época, eu tinha o hábito de alugar várias vezes da mesma videolocadora aquela cópia do piloto estendido de TWIN PEAKS, que saiu pela Warner no Brasil. E veio a chance de ver um filme seu pela primeira vez no cinema, o vencedor da Palma de Ouro em Cannes CORAÇÃO SELVAGEM (1990). E aquilo foi insano. Hoje tenho um pôster de CIDADE DOS SONHOS no meu quarto, meu perfil no Facebook é com uma imagem desse filme, meu “papel de parede” do celular alterna temas de TWIN PEAKS – O RETORNO (2017) e sempre estou pronto para comprar livros sobre Lynch ou a série que venham a surgir. Sua (auto)-biografia, Espaço para Sonhar, foi uma delícia de ler. Li saboreando, com pena de chegar ao final.
Aliás, que presente que ele nos deixou com esses 18 episódios de TWIN PEAKS – O RETORNO, hein?! Ali há material para nosso deleite por muitos e muitos anos. Uma fonte inesgotável e, diferente do que ele fez na série original para a ABC, foi tudo dirigido por ele. E ele não parou de trabalhar depois desse acontecimento celebrado pela Cahiérs du Cinéma como “o melhor filme do ano”. E depois como “o melhor filme da década de 2010”. Sendo que, ao pé da letra, é uma série e não um filme. Mas é cinema, sim, e isso que contou na escolha. No ano passado mesmo, Lynch dirigiu dois videoclipes em parceria com Christabel, que fez o papel da agente Tammy Preston no retorno de TWIN PEAKS.
Não houve e nem haverá nenhum outro artista como David Lynch. Ele foi o único cineasta que me deixava de fato com medo vendo seus filmes. Adoro cinema de terror, mas sentir medo mesmo, eu sentia vendo alguns de seus trabalhos. Ele sabia como ninguém criar uma espécie de medo irracional a partir de um mistério todo próprio, ao mesmo tempo que também lidava com o humor e a com a ternura. BOB entrando pela janela de Laura Palmer; o “homem misterioso” se apresentando para o personagem de Bill Pullman; a chegada ao Clube Silenzio.
Obrigado por tudo, mestre. Boa viagem!
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