sábado, janeiro 11, 2025

A SEMENTE DO FRUTO SAGRADO (Dâne-ye Anjîr-e Ma'âbed)



Já faz um tempo que ver um filme produzido no Irã é como estar vendo um ato de subversão, um ato de rebeldia imenso. Infelizmente são poucos os filmes do país que têm chegado a nosso circuito. Se não me engano, os últimos foram CRÔNICAS DO IRÃ, de Ali Asgari e Alireza Khatami, e SEM URSOS, de Jafar Panahi, ambos muito críticos ao regime iraniano, às violências cometidas pelo estado. Panahi é um homem que ficou anos em prisão domiciliar e, depois de ser preso mais uma vez em 2023, e passar por uma greve de fome, conseguiu sair do país no mesmo ano. O motivo de sua última prisão foi reclamar no escritório do promotor em Teerã da prisão do cineasta Mohammad Rasoulof, que havia sido preso por críticas ao governo. Pois bem, Rasoulof é o cineasta de A SEMENTE DO FRUTO SAGRADO (2024), consagrado em Cannes e vencedor do Prêmio Especial do Júri.

O filme veio no calor do momento em que várias jovens mulheres saíram às ruas do país em protesto contra a repressão, tirando seus véus, um protesto que ficou muito mais acirrado depois que uma jovem de 22 anos, Mahsa Amini, foi morta após ter sido presa durante os protestos. Ela havia sido presa por “não usar corretamente o hijab”, obrigatório para as mulheres no país, especialmente se estão fora de suas casas.

Este novo filme de Rasoulof (NÃO HÁ MAL ALGUM, 2020) traz esse momento para a trama, embora ela seja quase um pano de fundo para a história principal, que envolve um advogado recém-promovido a juiz de instrução e sua família, formada pela esposa devotada e duas filhas adolescentes, bastante antenadas com as redes sociais e o que está acontecendo nas ruas do país. O homem começa a ficar muito paranoico com o trabalho que recebe, por ser uma função bem longe de ser popular, já que ele deve assinar a sentença de morte de algumas pessoas. A ele lhe é dada uma arma, por segurança, e essa arma desaparece, o que faz com que ele suspeite da família e isso passe a gerar situações bastante tensas.

Gosto muito de como o forte do filme são as cenas nos interiores, principalmente na casa da família, e quando ele passa a explorar de maneira cada vez maior as tensões entre o patriarca, que representa o velho estado e as meninas, que representam o novo, o que os jovens desejam que o país se torne. O fato de o sujeito ter perdido uma arma é também simbólico, pelo aspecto fálico e representativo de uma masculinidade tirânica.

O filme pode ser dividido em três partes, e a terceira, que é a que mais caracteriza o filme como um suspense mais tradicional, é aparentemente a menos querida por boa parte da audiência. Eu, particularmente, achei incrível. De fato, dá uma quebra no estilo de narrativa até então, mas não vejo isso como um problema. De certa maneira, até o torna mais ousado, levando em consideração as situações por que passa a família e o simbolismo de vermos a menina mais jovem sendo a maior protagonista.

Eu adoraria ver um documentário sobre o processo de realização de A SEMENTE DO FRUTO SAGRADO, desde o início, a escrita do roteiro, passando pela contratação do elenco, pelas filmagens às escondidas extremamente perigosas, e a fuga do diretor do país a fim de que seu filme seja exibido. O diretor atravessou a fronteira do Irã a pé, enquanto seu filme foi contrabandeado para a Alemanha, onde a obra passou por um processo de pós-produção. A Alemanha escolheu o filme como o indicado do país ao Oscar 2025. 

+ TRÊS FILMES

BABYGIRL

A diretora Halina Reijn, que buscou reinventar o slasher para a geração Tik Tok e Instagram com MORTE, MORTE, MORTE (2022) agora busca fazer uma espécie de filme erótico, mas faz isso sem parecer querer gerar tensão sexual ou algo do tipo. No máximo, o que gera é algum desconforto, e esse desconforto é gerado mais por certo constrangimento no enredo, nos diálogos e na construção dos personagens do que nas situações em que eles se colocam. Nicole Kidman arrisca um papel de alguém que sente desejo e tem fantasia pela submissão e encontra no jovem estagiário vivido por Harris Dickinson (TRIÂNGULO DA TRISTEZA) alguém que trará tanto alegria quanto preocupação em fazer com que ela perca coisas valiosas. Acho interessante essa coisa de se ter uma personagem feminina que escancara esse desejo dentro de um filme mainstream, mas vejo o problema mesmo é na execução em BABYGIRL (2024).

MUFASA – O REI LEÃO (Mufasa – The Lion King)

Achei estranho Barry Jenkins, um cineasta autoral do premiado MOONLIGHT – SOB A LUA DO LUAR (2016), assinar a direção de MUFASA – O REI LEÃO (2024), prequel da animação de 1994 (ou do remake de 2019, tanto faz). Mas se o anterior teve um homem branco na direção (Jon Favreau), sendo que o cenário se passa na África e a grande maioria dos atores que dublam o filme de 2019 é negra, ao que parece, trazer Jenkins para este novo pode ter sido uma forma de a empresa do Mickey tentar evitar reclamações. Mas o mais importante mesmo é: o filme funciona? Eu diria que é melhor do que eu esperava. Acho um porre as canções (ainda mais dubladas), mas pelo menos são curtas. Tirando isso, é uma bela aventura com toques de intriga e um personagem problemático de que gosto muito, Taka, o jovem leãozinho que salva a vida de Mufasa, mas que é dominado por sentimentos ruins mais adiante. O que me incomodou mesmo foi a Disney ter deixado esses pobres leões o filme inteiro com fome. Não podem mostrá-los se alimentando dos animais que encontram pelo caminho, já que as crianças poderiam ficar horrorizadas com a sanguinolência. Se no REI LEÃO de 2019 os leões apareciam sem bolas, neste eles são desprovidos do alimento básico. Brincadeiras à parte, gosto também da luta/fuga de Mufasa do temível leão branco, líder de uma alcateia impiedosa.

A SUBSTÂNCIA (The Substance)

Não deixa de ser um dos filmes mais singulares dos últimos anos, por mais que não tenha me ganhado como eu gostaria, em especial em seus instantes finais mais alucinados. O problema é que é um alucinado que cansa um pouco o espectador, já que ultrapassa as duas horas. Ainda assim, A SUBSTÂNCIA (2024) será um daqueles filmes que continuará nos fazendo lembrar de várias de suas cenas quando fizermos nossa retrospectiva do ano. A diretora despeja um monte de referências de sua bagagem cultural de filmes e diretores que ela aprecia ou apreciou, de A MOSCA, de David Cronenberg, a CARRIE, A ESTRANHA, de Brian De Palma. Trata-se de uma fábula de terror que remete ao romance O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, e que se apresenta como uma crítica ao modo como a indústria cultural torna as mulheres descartáveis à medida que elas envelhecem. Tanto Demi Moore quanto Margaret Qualley defendem muito bem seus papéis: a primeira é a matriz; a segunda, o outro corpo, nascido para ser a versão mais bonita do primeiro, o que, cá pra nós, não é. (Demi Moore segue imbatível.) Mas entendemos, sim, se tratar da tentação pela juventude, um tipo de obsessão já tantas vezes explorada pela literatura. O filme de Coralie Fargeat opta por imagens mais artificiais e espaços de ação mais minimalistas. Quanto ao roteiro, por que logo esse filme foi escolhido em Cannes? Os diálogos não são dos mais ricos. Diria que a força do filme está mais na direção do que no roteiro.

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