domingo, setembro 29, 2024

STRANGE DARLING



Minha viagem para a Irlanda foi maravilhosa. E eu ainda quero parar um pouco para escrever pelo menos um relato resumido do que foram os 15 dias em território de James Joyce, W.B. Yeats e Oscar Wilde. Mas foi lá na Irlanda que eu também, ao fugir um pouco da ida quase diária da turma aos pubs, optei por ir ao cinema sozinho. E, entre as opções disponíveis, me chamou a atenção um filme chamado STRANGE DARLING (2023), dirigido por um nome que desconhecia, JT Mollner, passando numa salinha pequena de um dos maiores multiplexes de Limerick. Aliás, é uma pena que o filme tenha passado numa sala tão pequena e esteja sendo visto por uma audiência pequena, pois certamente seria um sucesso dentro de uma sala grande e com uma audiência grande, que urraria diante de tantas cenas intensas e de plot twists de cair o queixo.

Comprei a nova Sight & Sound nesta minha passagem pela Irlanda e a primeira matéria que li foi “Retro Horror – Why Modern Horror Is Thrall to the Past”, texto de Roger Luckhurst que cita títulos recentes do cinema de horror que parecem olhar com muito interesse para o passado. Casos de LONGLEGS – VÍNCULO MORTAL, I SAW THE TV GLOW (esse ainda não vi), O TELEFONE PRETO, A PRIMEIRA PROFECIA, a trilogia “X” de Ti West, A VASTIDÃO DA NOITE etc. Isso só pra citar alguns filmes mencionados na matéria.

Este STRANGE DARLING, se não se passa nas décadas passadas, já começa com um aviso de que foi filmado em 35mm. O que achei incomum. Não a filmagem em película em si, mas a informação explícita. É como se o filme quisesse trazer de volta o palpável no mundo digital. E logo vemos, claro, a textura mais característica da película. Inclusive nas cores mais vivas, o vermelho mais intenso, nas cenas em que os capítulos remetem mais à violência, e o azul, nas cenas mais fechadas e intimistas. Aliás, o diretor de fotografia do filme é o ator Giovanni Ribisi!

Antes de mais nada, fui ver STRANGE DARLING sem saber quase nada do filme. E essa é a melhor coisa a se fazer, já que surpresas acontecem. Além do mais, a própria opção da narração por capítulos embaralhados contribui para essas surpresas muito bem- vindas, que facilmente nos remetem a PULP FICTION – TEMPO DE VIOLÊNCIA, de Quentin Tarantino, e sua montagem em capítulos. Aliás, ele fez o mesmo em KILL BILL, com muito sucesso. Mas acredito ser mais fácil lembrar de PULP FICTION.

Essa narração por capítulos embaralhados contribui para deixar o espectador no mínimo muito intrigado, além de tenso, já que a primeira imagem que vemos é a de uma mulher ferida e aterrorizada, correndo, muito possivelmente, de seu algoz, muito provavelmente o serial killer mencionado no texto de abertura, que diz que o filme é uma história real de algumas das últimas matanças nessa magnitude de um serial killer americano, que começou uma série de mortes entre os anos de 2018 e 2020.

Gostei muito do quanto o filme é forte na condução de uma trama cuja maior parte do tempo quase não tem diálogos e do suspense e da tensão sempre presentes. Eis uma obra que merece muito a atenção não só dos fãs do cinema de horror, mas dos cinéfilos como um todo. Afinal, estamos vivendo um momento excitante em que o cinema de horror voltou a ser extremamente atraente e empolgante, como gênero em si, mas também como reflexo de nossas ansiedades e da nossa sociedade doente.

O filme deve muito às performances dos dois atores principais: Willa Fitzgerald (A QUEDA DA CASA DE USHER) como “the lady”, e Kyle Gallner (SORRIA) como “the demon”. Além do mais, há participações especiais dos veteranos Barbara Hershey e Ed Begley Jr. Outro ponto positivo está na trilha sonora, não só pela cover muito bacana de “Love Hurts”, do Nazareth, por Z Berg, mas pelas canções originais de Berg, em tons sombrios e com letras cheias de lirismo.

Tentei ao máximo não contar detalhes sobre a trama, pois o filme ainda está inédito no Brasil. E não seria legal tirar esse gostinho dos futuros espectadores. STRANGE DARLING já está no meu top 3 do ano, até o momento. E eu gostaria muito de revê-lo nos cinemas. Espero que alguma distribuidora brasileira o tenha comprado. Se não compraram, estão vacilando feio.

+ TRÊS FILMES

NÃO FALE O MAL (Speak No Evil)

O remake do homônimo dinamarquês de 2022, se não é tão pancada quanto, traz mudanças no enredo que o beneficiam, que o tornam de certa forma até melhor, trazendo um pouco de poesia em meio a tanto mal-estar e violência, especialmente psicológica. A escalação do elenco de NÃO FALE O MAL (2024) ajuda muito, principalmente Mackenzie Davis como a mulher forte do casal convidado a passar uns dias com um casal estranho que conhecem numa viagem à Itália. O sujeito que os convida é muito bem defendido por James McAvoy, que encarna brilhantemente uma pessoa perturbadora. O diretor James Watkins é o mesmo do ótimo e sangrento SEM SAÍDA (2008) e por isso tem experiência em entregar um produto cheio de terror e muita tensão. Ambos os filmes são exemplares do horror mais “real”, sem a necessidade de fantasia ou sobrenatural para nos fazer sentir medo. A poesia, ou melhor, um tipo de poesia mais sensível, menos brutal, está na última imagem. O menino mudo ainda conta com uma cena que entra em sintonia com outros dois filmes recentes e bem distintos, e que me fez pensar no quanto estamos vivendo uma necessidade de explodir e, de preferência, matar aquilo que nos atormenta no fim do processo. (Os filmes recentes a que me refiro são IMACULADA e MAIS PESADO É O CÉU.)

LONGLEGS – VÍNCULO MORTAL

Até que estou em dia com os filmes de Osgood Perkins, mesmo não tendo me esforçado muito para tal. Este é o quarto longa-metragem do realizador e o que mais está fazendo barulho. Um barulho um tanto exagerado, eu acho, e que tem trazido certos problemas no quesito expectativa. Mas LONGLEGS – VÍNCULO MORTAL (2024) é um terror plasticamente tão bonito que fica difícil não valorizá-lo. O que me deixou incomodado foi o quanto o filme não foi eficiente em fazer com que as cenas mais chocantes ou aterrorizantes me pegassem. O que eu gosto no filme é o quanto ele subverte o gênero policial de investigação de crime e reveste de um tom de pesadelo, que tem muito a ver com o que uma personagem que acorda de um coma diz que tem a sensação de estar vivendo um longo sonho. Mas é preciso embarcar na proposta ou na viagem para ter uma experiência no mínimo boa. Gosto muito de como a Maika Monroe e o Blair Underwood se completam como agentes do FBI de estilos totalmente diferentes, sendo que ela é uma pessoa que está em constante estado de ansiedade e desconforto. Aliás, eu até queria ser contaminado no filme por esse desconforto da personagem, mas acho que acabei ficando muito confortável com a construção visual, com a beleza das imagens que me ganharam nesse aspecto, mas que acabaram por me afastar do que mais me importaria. No mais, Nicolas Cage está de fato um vilão e tanto. P.S.: O satanismo voltou de vez para o cinema de horror? Este já é no mínimo o quarto filme badalado com esse tema lançado em 2024.

O MAL NÃO EXISTE (Aku Wa Sonzai Shinai)

Este é o quarto filme de Ryûsuke Hamaguchi que vejo e a única coisa que encontro em comum em seus trabalhos, se não me engano, e sem reler meus textos passados, é o gosto por planos longos, em especial com diálogos longos. O MAL NÃO EXISTE (2023) começa com cenas silenciosas, imagens da natureza de uma área rural do Japão, com árvores altas, um rio limpo e um espaço onde os cervos habitam. Esse cenário paradisíaco é ameaçado com a chegada de uma empresa com o plano de construir um retiro no vilarejo, algo que vai mexer com a estrutura do lugar, inclusive com a água. Os habitantes não gostam nada e se revoltam durante reunião de apresentação do projeto. O filme fica mais interessante quando mostra também o ponto de vista daquelas duas pessoas que vieram apresentar o projeto. O filme recebeu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza e o prêmio da crítica (FIPRESCI), além de outros dois prêmios menores no mesmo festival, sendo que um deles é dado a obras com o tema do meio ambiente. Confesso que não está entre os meus favoritos do realizador, mas é, sim, um trabalho de quem, claramente, tem pleno domínio de sua arte. E só por isso já é de dar gosto.

sábado, setembro 14, 2024

TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO (Witness for the Prosecution)



Experimentando preparar uma postagem para o blog num aeroporto, o de Salvador, enquanto aguardo um voo com destino final para Dublin. Minhas colegas de grupo estão conversando e eu vim carregar meu celular. Ótimas chances de serem ótimos 15 dias em minha vida, um presente de Deus. Mas quem é cinéfilo fica logo pensando em meios de ver filmes dentro desse programa. De preferência numa sala de cinema. Acho que vai dar certo. Oremos. Enquanto isso, atualizemos este espaço tão abandonado para falar sobre um grande clássico da Velha Hollywood.

Nunca fui de destacar mais a atuação de um intérprete do que o filme em meus textos. A não ser em casos especiais. E fazer isso pode dar a impressão de que estaria diminuindo o filme ou a direção. Mas diminuir TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO (1957), baita drama (com toques de comédia e suspense) de tribunal, e sei diretor Billy Wilder, que o dirigiu pensando em fazer um thriller divertido com toques hitchcockianos, seria uma injustiça.

Pois bem. Acontece que o que mais me encantou neste filme foi Charles Laughton. E achei isso curioso, já que havia visto o ator em outros quatro filmes (A ESTALAGEM MALDITA e AGONIA DE AMOR, ambos de Alfred Hitchcock; OS AMORES DE HENRIQUE VIII, de Alexander Korda; e, mais recentemente, A ILHA DAS ALMAS SELVAGENS, de Erle C. Kenton) e não tinha percebido toda essa grandeza, todo esse brilho. Dizia-se que na época da realização do filme de Wilder, na maturidade, ele vivia uma das melhores fases de sua vida: havia deixado de fingir que era hétero e ter um casamento de conveniência e estava feliz com um outro homem.

TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO (1957) logo de início nos ganha pelo humor, e depois vi que o sucesso desse humor estava não apenas no domínio e no estilo característico de Wilder, mas na presença vibrante de Laughton, definitivamente um dos maiores atores de todos os tempos e aqui no papel de um advogado de defesa com a saúde frágil de maneira deliciosa. É difícil não se encantar com o ator, que havia também marcado seu nome na história do cinema dois anos antes, dirigindo o cultuado O MENSAGEIRO DO DIABO.

Curiosamente, eu não tinha visto TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO até um dia desses por ter um pouco de preguiça de filmes de tribunal. Mas este aqui é tão divertido que acho quase impossível alguém não gostar. Tive dois empurrõezinhos: o livro da Versátil sobre filmes de tribunal e o BluRay Wilder Essencial, também da Versátil, que traz o filme, o único dos quatro totalmente inédito para mim, em imagem e som cristalinos, de dar gosto.

Na trama, Tyrone Power é um sujeito simpático que é o principal suspeito de ter assassinado uma senhora idosa. Acontece que, para surpresa dos advogados, a esposa do homem parece mais disposta a depor contra ele do que a favor. Fiquei surpreso pelo papel relativamente pequeno de Marlene Dietrich, mas com Laughton em cena a gente até esquece da pouca presença de qualquer outro ator. Ainda assim, as cenas de flashback que o personagem de Power conta são deliciosas, especialmente a que ele relembra do dia em que conheceu sua esposa numa Alemanha destruída pela guerra. Essa é a cena mais sensual do filme, e que convida o espectador a fazer um exercício de complementação entre o visual e a palavra oral. Inclusive, Dietrich faz lembrar seu papel em O ANJO AZUL.

Quanto ao plot twist, é mesmo importante ver o filme sabendo o mínimo possível da trama. Num dos extras no BluRay, destaco um sobre Laughton, que conta que daquele momento feliz da vida do ator. E que a atriz que faz a personagem da enfermeira (Elsa Lanchester, indicada ao Oscar) havia sido sua esposa por um longo tempo no passado, num casamento obviamente complicado, e neste filme eles se encontraram novamente, resultando em cenas muito divertidas

TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO foi baseado num conto de Agatha Christie publicado originalmente em 1925 e que virou uma peça de teatro de sucesso em 1953. Quem teve a ideia da adaptação foi Dietrich, mas ela só queria Wilder na direção. E felizmente o diretor aceitou e fez algo antológico com sua assinatura.

+ TRÊS FILMES


STOP MAKING SENSE

Ver STOP MAKING SENSE (1984) no cinema e em especial na sala IMAX é um privilégio e tanto. Eu, que nunca fui fã dos Talking Heads, fiquei muito empolgando com o show, mas também muito feliz de estar vendo um trabalho feito também como cinema. Quem dera outras grandes bandas tivessem também a sorte de ter um filme dirigido por um cineasta de verdade e com afinidades entre si, como é o caso de Jonathan Demme e a banda de David Byrne. É só lembrar que nos anos 1980, o cineasta havia parido filmes quentes e com forte presença da música, como TOTALMENTE SELVAGEM (1986) e DE CASO COM A MÁFIA (1988). O "maior filme-concerto de todos os tempos", como afirma o cartaz do relançamento da A24, é de fato empolgante do início ao fim. Desde o instante em que Byrne chega com um rádio daqueles típicos dos anos 80 e um violão para tocar uma versão acústica de "Psycho Killer", passando pela chegada da baixista, e depois com o surgimento da banda inteira e a disposição de fazer com que cada canção seja um evento visual único, tudo nos faz ter vontade não apenas de nos aprofundar mais no som da banda, mas de voltar àquele filme novamente, a essa experiência cinematográfica e musical sem igual novamente. Byrne diverte e impressiona com seus movimentos, sua dança e sua energia. De certa forma, fiz bem em não ter ligado muito para a crítica da SET lá do início da minha cinefilia e alugado o filme em VHS, já que ver pela primeira vez numa sala de cinema não tem preço.

OS FANTASMAS SE DIVERTEM (Beetlejuice)

Na época que tomei a decisão de me tornar cinéfilo OS FANTASMAS SE DIVERTEM (1988) já havia sido exibido nos cinemas. E mesmo com todos os elogios da crítica, durante todos esses anos, nunca havia parado para ver o filme. Eis que a sequência vindoura fez voltar em cartaz a hoje clássica comédia que mostra o ponto de vista dos fantasmas que querem expulsar os novos habitantes da casa, em vez da tradicional história de assombração do ponto de vista dos assombrados. Aliás, os novos habitantes quase não são assombrados: querem mesmo é tirar proveito de terem fantasmas em casa para lucrar. Exceto a personagem da garota vivida por Winona Ryder, que na época ainda não tinha atingido a maioridade. Ryder fica amiga do casal de falecidos. Um dos grandes baratos de ver este filme no cinema hoje é perceber o quanto Tim Burton quis apresentá-lo como algo bem artesanal, quase caseiro. Os efeitos visuais não buscam o realismo, e vez por outra passa a impressão de estarmos vendo uma animação. Foi o segundo longa para cinema de Burton, mas o aspecto de produção de baixo orçamento só fica dissonante com a presença de astros do primeiro time de Hollywood - Michael Keaton, Geena Davis, Alec Baldwin e Winona Ryder. Depois desta sessão da tarde anárquica, foi dada a Burton a missão de dirigir BATMAN (1989), projeto ambicioso que fez à sua maneira e novamente com seu amigo Keaton. Mesmo não sendo um fã do cineasta, é difícil não reconhecer seus méritos e suas conquistas. Nunca deixei de ver nenhum filme dele lançado nos cinemas, inclusive.

O SAMURAI (Le Samouraï) 

Sou praticamente um ignorante no cinema de Jean-Pierre Melville. Antes deste filme só havia visto TÉCNICA DE UM DELATOR (1962), que talvez até tenha gostado mais - principalmente por sua violência brutal, que me pegou de surpresa. O SAMURAI (1967) é mais melancólico, ainda que uma melancolia mais centrada na forma e no estilo, menos preocupada na trama. O filme deixa escapar o espírito de seu tempo, um momento mais aberto a experimentações formais. O personagem de Alain Delon é um homem que é pago para matar as pessoas e em determinado momento ele é tido como o principal suspeito de um homicídio pela polícia, o que o coloca num jogo de gato e rato pelas ruas e metrôs de Paris. Delon traz olhares ambíguos e pouco evidentes em seus gestos e suas ações e o filme usa muito pouco as palavras para contar a história, principalmente por parte do personagem de Delon, que fala somente o necessário, acentuando tanto o mistério quanto a elegância (seu sobretudo e seu chapéu são tão importantes que ele não os descarta quando efetua o primeiro crime do filme). Na época que vi O ASSASSINO, de David Fincher, muito se falava de O SAMURAI. Agora compreendo e acho justa a comparação.

domingo, setembro 08, 2024

FERNANDA YOUNG – FOGE-ME AO CONTROLE



O cinema que reflete sobre a vida e sobre a própria arte. Que reflete sobre a vida de uma mulher, como artista e como pessoa, e no caso de Fernanda Young essas duas coisas não são exatamente separadas. Pelo menos, é a impressão que fica depois que vemos FERNANDA YOUNG – FOGE-ME AO CONTROLE (2024), de Susanna Lira. No IMDB também consta o nome de Clara Eyer como codiretora, mas nem todos os sites apresentam o nome de Clara nessa função. De todo modo, o fato de termos um documentário sobre uma mulher e dirigido por uma mulher faz toda a diferença aqui.

Conhecia muito pouco o trabalho de Young. Só havia visto alguns episódios soltos de OS NORMAIS (2001-2003), série que ela escreveu com o marido Alexandre Machado. Também percebo que vi alguns filmes que ela assinou o roteiro, como BOSSA NOVA, de Bruno Barreto e MUITO GELO E DOIS DEDOS D’ÁGUA, de Daniel Filho, mas o grosso do trabalho dela dentro do audiovisual foi para a televisão, principalmente para a Rede Globo.

Vendo o documentário fica claro que ela se via como escritora e ficava um pouco triste de ver que sua obra literária não era devidamente valorizada pelos seus colegas escritores, talvez por seu envolvimento com a televisão ou por seu visual tatuado. Ou quem sabe até por seu ensaio para a revista Playboy. Vendo o filme também percebemos o quanto se desnudar era natural para Young, que achava que o desnudar-se através da poesia era muito mais difícil, ainda que uma necessidade de seu espírito.

A grandeza de FERNANDA YOUNG – FOGE-ME AO CONTROLE está no fato de que é mais do que um filme-ensaio de apresentação de uma artista: é também um filme sobre amor, dor, dislexia, atitude punk, depressão, ansiedade e ser mulher neste mundo. Inclusive, um dos momentos que mais me chamou atenção é sua participação no programa SAIA JUSTA. Ela fez parte da primeira formação do programa, de 2002, junto com Rita Lee e Marisa Orth. Chamou-me a atenção o modo como ela trouxe, com muita sensibilidade, uma canção de Madonna, “What it feels like for a girl”, de modo que nos convida a tentar entender ou refletir sobre o que a letra diz. Outro trecho de música que ela traz – e traz para si, para sua própria vivência – é “Os Cegos do Castelo”, dos Titãs (composição de Nando Reis), uma canção um tanto cifrada, e que ganha um novo olhar com sua tradução, por assim dizer.

O primeiro tópico que o filme traz é o amor. E acredito que Fernanda Young teria aprovado essa opção de Susanna Lira. E ouvir a escritora cantando o clássico de Roberto Carlos “As Canções Que Você Fez pra Mim” no karaokê, depois de ouvirmos na gravação original, é o pontapé inicial desse capítulo do filme, onde vemos trechos de programas de TV que ela roteirizou, como SHIPPADOS, ODEIO SEGUNDAS ou OS NORMAIS, um convite a percebermos em criações artísticas geralmente menos valorizadas sua autoria. Tanto, talvez, quanto em seus livros (de prosa e poesia), vários deles citados na voz de Maria Ribeiro e que se mostram um verdadeiro convite a adquiri-los, como A Sombra das Vossas Asas (2011), Dores do Amor Romântico (2012), Vergonha dos Pés (2012), A Mão Esquerda de Vênus (2016), Pós-F: Para Além do Masculino e do Feminino (2019), Posso Pedir Perdão, Só Não Posso Deixar de Pecar (2019), entre outros.

Inclusive, eu diria que um dos motivos de nos apaixonarmos por Fernanda Young e pelo filme está nos excertos desses livros, desses escritos, dos trechos pungentes que queremos fixar, anotar em algum lugar. Quando saí do cinema, aliás, vi uma das espectadoras dizendo que pretende ver o filme novamente, e isso realmente é uma vontade que temos. Vontade de abraçar o filme, abraçar aquela mulher, abraçar a artista que ficou e o quanto soube falar tão bem das dores e das perturbações provocadas pela depressão e pela ansiedade. Mas ela fala tudo de maneira tão apaixonada que é difícil não se pegar também apaixonado.

Achei muito interessante quando ela falou que usava a depressão como agente para que ela trabalhasse e saísse pra correr, se exercitar. Não como algo que paralisa, embora ela deixe claro que a doença chega nas pessoas de maneira muito diferente. Uma coisa que adorei foi a ideia que ela teve de colocar um aviso com uma luz escrito “divina” na porta de seu quarto, para acender nos momentos que estivesse trabalhando, nos momentos que estivesse inspirada e colocando pra fora essa inspiração.

O documentário usa vários trechos de filmes para ilustrar suas obras literárias e para entrecortar imagens de arquivo, como que colocando num plano onírico as suas falas, os seus pensamentos. Como se esses pensamentos fluíssem para muito além do nosso plano terreno. As imagens em preto e branco de filmes variados, de artistas como Man Ray, Maya Deren, Joseph Losey e Dziga Vertov, entre outros, se harmonizam com seus poemas e trechos de prosa.

Fiquei muito feliz de ter visto esse filme. E ainda saí do cinema escutando no carro Madonna e Roberta Miranda.

+ TRÊS FILMES

NADA SERÁ COMO ANTES – A MÚSICA DO CLUBE DA ESQUINA

Tenho que confessar que até hoje não consegui entrar no clássico álbum Clube da Esquina. Por entrar, quero dizer compreendê-lo mais profundamente, principalmente pelo caminho das emoções (que é o que mais faz sentido pra mim, em se tratando de música). Certamente me faltou dedicação, mas também faltou, até o momento, uma identificação maior. Junte-se a isso, no caso da sessão, um sono proveniente da crise alérgica no horário tradicional das 18h e eis que o resultado foi uma sessão bem ruim. A impressão que ficou de NADA SERÁ COMO ANTES – A MÚSICA DO CLUBE DA ESQUINA (2023), de Ana Rieper, foi de um especial para a televisão, com entrevistas dos envolvidos no disco. Há poucas imagens de arquivo e mais uma busca de reconstituição através de depoimentos muitas vezes apaixonados, especialmente de Lô Borges. Não entendi a escolha da diretora por uma janela scope para um documentário quadrado como este.

TODAS AS VIDAS DE TELMA

Temos aqui mais um filme que me enganou direitinho. TODAS AS VIDAS DE TELMA (2022), de Adriana Botelho, pega uma história real (de uma mulher chamada Telma Saraiva) e a partir daí cria uma narrativa de ficção com características de documentário de busca. Até mesmo a personagem que manipula a câmera é uma criação da diretora e roteirista. O filme foi rodado em 16 mm e depois convertido em digital com som adicionado e esse formato causa uma agradável estranheza. Faz lembrar VIAJO PORQUE PRECISO, VOLTO PORQUE TE AMO, de Aïnouz e Gomes, inclusive nas cenas em que a protagonista está na estrada, se dirigindo à cidade de Crato-Ce, local onde viveu a mulher que fazia fotopinturas (lembro que o costume dessas fotos pintadas chegou a minha casa na minha infância; hoje parece artigo de museu, pouca gente quer exibir nas paredes). Para completar, a história acontece durante a pandemia, mas com as pessoas viajando e fazendo turismo com certa leveza. Acho que me perdi um pouco lá perto do final, com o filme trazendo outras questões também, como o machismo em todos os lugares públicos e a invisibilidade do legado de Telma e a lembrança da cidade do Crato de décadas atrás.

INCOMPATÍVEL COM A VIDA

Eis um filme que nasce não apenas de uma dor, mas de várias. Afinal, o assunto que a diretora Eliza Capai traz para INCOMPATÍVEL COM A VIDA (2023) é o das gestações interrompidas, por má formação do feto, ou perda da criança bem no inicio do nascimento. Perdi no cinema, mas o filme entrou na MUBI, em glorioso 4K, que valoriza as cenas que envolvem mares ou rios. Afinal, o simbolismo da água ainda é algo forte quando se fala sobre maternidade e funciona muito bem, tanto para momentos de respiro das histórias quanto para enfatizar a dor das mulheres. O flme também traz à tona a questão da proibição do aborto no Brasil em comparação com o Portugal, que está bem mais adiantado na questão. Achei corajosa a proposta de Capai em mostrar a si mesma naquela situação, e também muito inteligente em trazer paralelismos com casos similares de outras mulheres, fazendo com que essas experiências ganhem mais força e voz. Uma das coisas que me pegou muito foi uma cena de despedida, cheia de amor. Não estava esperando, e, nesse sentido, a montagem é crucial para que o momento certo de certas partes seja anunciado num instante mais sábio.