quarta-feira, março 30, 2022

OS 15 CURTAS INDICADOS AO OSCAR 2022



Assim como no ano passado, neste ano consegui ver todos os curtas-metragens indicados ao Oscar nas três, categorias: live action, documentário e animação. Gostei de todos os filmes de ficção live action, mas os demais praticamente não gostei, excetuando um ou outro. Comentários rápidos sobre cada um, abaixo.

Live action

ON MY MIND 

Tenho conversado com meus alunos nas últimas aulas em que trago música sobre o poder de uma "simples" canção de cerca de três minutos de duração e de como algumas dessas se tornam tão cheias de sentimentos profundos e tão duradouros que parecem eternos. Neste curta dinamarquês, temos um homem que deseja cantar uma canção clássica do repertório de Elvis Presley para sua esposa em um bar vazio e com um karaokê (mais ou menos) disponível. ON MY MIND (2021), de Martin Strange-Hansen, é muito simples em sua proposta, e muito sensível em abordar o sentimento desse homem e de como emoções conflitantes e talvez até alguns remorsos podem povoar sua mente, ao lembrar da esposa e recitar a letra da canção que faz a alma voar.

PLEASE HOLD

A comparação com BLACK MIRROR é bem válida, pois temos aqui também a tecnologia agindo como agente do terror. E há uma relação direta com o nosso momento e a nossa relação com a "inteligência" artificial. Quantas vezes não odiamos aqueles robôs que atendem as chamadas e não entendem o que dizemos? No caso do drama do protagonista de PLEASE HOLD (2020), de KD Dávila, a coisa ainda é mais perturbadora, pois ele é preso por robôs e sequer sabe o motivo de sua prisão. 

ALA KACHUU - TAKE AND RUN

Quando o curta não tem muita força na direção, é interessante que ele se justifique como obra política relevante. E talvez seja o caso de ALA KACHUU - TAKE AND RUN (2021), de Maria Brendle, embora não seja um filme mal dirigido. Mas a questão da mulher que é sequestrada para se casar contra a sua vontade em um povoado do Quirguistão é algo que merece ser gritado para todos os cantos do mundo, de modo que absurdos como esse deixem de acontecer. Na trama, Sezim é uma jovem que sonha em estudar na faculdade e sair de seu povoado. Para isso, faz uma prova para conseguir fazer seu curso com uma bolsa de estudos. Infelizmente, alguém a escolhe como noiva. A duração de 38 minutos passa a impressão de vermos a prévia de um longa e não um curta, e não digo isso como um demérito. Eu continuaria vendo o filme com bastante prazer caso a história continuasse a ser contada por mais uma hora e meia.

THE LONG GOODBYE

Em tempos de ascensão dos grupos de extrema direita, um filme como este se faz necessário. E como se já não fosse muito poderoso criar uma espécie de distopia em que os brancos passam a matar à queima-roupa pessoas de diferentes etnias, ainda temos a força do rap como aliado. Riz Ahmed, que, além de ótimo ator, ainda é um rapper, usa os minutos finais deste curta para mostrar sua indignação mais do que justificada. Os brancos invadem diferentes países e territórios na Ásia, na África e nas Américas para depois vir expulsar, diminuir e matar aquelas pessoas que, agora nascidas em países como Estados Unidos e Inglaterra, são consideradas estrangeiras e nada bem-vindas. THE LONG GOODBYE (2020), de Aneil Karia, foi o vencedor na categoria.

THE DRESS (Sukienka)

Um filme um tanto arriscado este THE DRESS (2020), de Tadeusz Lysiak, pois poderia trazer uma impressão de pena da protagonista por parte de alguns espectadores. Ela é uma jovem anã carente de afeto e que nunca foi para a cama com um homem (ou mulher) até então. Equilibrando-se nessa corda-bamba, o jovem diretor polonês conta, com segurança e cuidado, em sua meia hora de duração, um recorte da vida dessa moça - sua mudança de humor quando recebe o flerte de um jovem caminhoneiro, sua indignação e desgosto por não ser uma pessoa "normal", seguido do sentimento de busca de uma autoconfiança necessária para que ela possa ser minimamente bem-sucedida em seus anseios. E, nesse sentido, é fácil se identificar com ela, já que o filme nos aproxima mais de seus dramas e de suas dores.

Documentário

ONDE EU MORO (Lead Home)

Para uma seleção de documentários em curta-metragem pouco atraentes, até que eu achei bonito este ONDE EU MORO (2021), de Pedro Kos e Jon Shenk, que pode funcionar como uma reflexão sobre o abismo existente entre os ricos e os miseráveis dentro da sociedade americana. Ver isso acontecendo em três das cidades mais ricas da Califórnia é entender que o sistema capitalista errou, e errou feio. O filme nos apresenta a um grupo de pessoas que vivem nas ruas, por uma série de razões, mas a principal delas é, claro, a falta de dinheiro, a impossibilidade de conseguir o aluguel e de se alimentar ao mesmo tempo. Muito interessante o fato de o filme acompanhar também a vida afetiva de alguns deles, mostrar que ela existe, apesar das circunstâncias. Por mais que não seja um documentário brilhante, só de cutucar a ferida já vale.

WHEN WE WERE BULLIES

Alguns amigos e colegas de trabalho costumam dizer que essa atual preocupação com o bullying nas escolas é bobagem, que a gente viveu isso e que estamos vivos e bem. Será que estamos bem? Algumas memórias ficam apagadas, de fato, especialmente de quando fomos crianças. Só aquelas mais marcantes ficam presentes. E foi com essa sensibilidade que o diretor de WHEN WE WERE BULLIES (2021), Jay Rosenblatt, resolveu fazer um filme sobre um comportamento que ele lamenta ter cometido quando estava na quinta série, de ter agredido um colega de classe, juntamente com outros colegas seus. No filme, ele entra em contato com os colegas dessa turma e muitos esqueceram de quase tudo dessa época, mas a maioria lembra desse garoto que sofreu bullying. O modo como o diretor tece a trama é muito instigante e me deixou interessado em ver em que ponto seu filme chegaria. O uso de técnica de animação artesanal com as fotos das crianças e imagem de filmes antigos ajuda a juntar as peças. Considero um dos melhores filmes da categoria.

TRÊS CANÇÕES PARA BENAZIR (Three Songs for Benazir)

Seguindo a tendência de documentários em curta-metragem fracos da temporada do Oscar, este aqui, disponível na Netflix, apresenta, em um registro próximo da ficção, a história de um jovem homem casado que mora em um abrigo e não consegue se alistar no exército pois sua família acredita que é uma má ideia. E talvez eles tenham razão. TRÊS CANÇÕES PARA BENAZIR (2021), de Elizabeth Mirzaei e Gulistan Mirzaei, não funciona como história de amor (ora, se o sujeito ama tanto a esposa, pra que ele quer ir para a guerra?), nem como filme de protesto frente à situação sempre de desvantagem e desgraça do povo afegão (já foram alvo dos russos, dos talibãs e dos americanos). Há um quê de cinema iraniano, mas a dupla de cineastas precisa se esforçar muito para chegar pelo menos ao padrão médio do cinema feito no Irã.

THE QUEEN OF BASKETBALL

É impressão minha ou esses documentários em curta-metragem selecionados para o Oscar deste ano estão bem fracos? Até tive sentimentos mistos em relação a este aqui, sobre uma das primeiras jogadoras de basquete dos Estados Unidos a ter uma repercussão mundial. Como não ligo muito para o esporte, o que mais me pegou no filme foi a questão da passagem do tempo e das sequelas que as doenças causam no corpo ao longo dos anos, de como uma pessoa pode passar de um estágio de saúde forte (dentro do esporte) a uma situação de fragilidade. THE QUEEN OF BASKETBALL (2021), de Ben Proudfoot, também enfatiza a questão do machismo e da demora de se criar e patrocinar uma liga de basquete feminina nos Estados Unidos. Este filme foi o vencedor da categoria.

AUDIBLE

Antes de mais nada, pra que um curta de 39 minutos? Continua sendo curta? Provável que sim. Mas a minha reclamação talvez não tenha a ver com duração, mas como este filme se esforça para emocionar e a mim não conseguiu em nenhum momento. O que me trouxe de novo foi perceber um mundo diferente, o de jovens jogadores de futebol (americano) surdos. AUDIBLE (2021), de Matthew Ogens, foca em alguns poucos membros desse time e passa aquela lição de que não podemos desistir por perder um jogo, que podemos nos esforçar para vencer o próximo. Essa coisa do jogo, como metáfora da vida, até tem algum sentido, mas é bom sempre a gente lembrar que sempre que há um vencedor, há do outro lado um perdedor. É praticamente uma lógica do capitalismo. Mas talvez falar essas coisas só denunciem que não tenho um espírito competitivo muito forte. E talvez por isso não me ligue em jogos, esportes etc. O que não quer dizer que em bons filmes de esporte eu não possa torcer por alguém.

Animação


AFFAIRS OF THE ART

Não me entusiasmei muito com este AFFAIRS OF THE ART (2021), de Joanna Quinn, mas talvez tenha me faltado algo próximo à identificação com a protagonista, a mulher que desde criança adora desenhar e pintar e que segue fazendo isso obsessivamente, agora que é casada e tem um filho. A animação é bem interessante - parece pintura à guache ou coisa do tipo. Tanto que fiquei tão ligado na singularidade da animação que me perdi na rapidez da narrativa. Por causa disso é bem capaz que seja um filme que cresça com a revisão. O difícil é eu querer rever.

BOXBALLET

A história de uma relação quase improvável durante os últimos anos da União Soviética entre uma bailarina delicada de musicais clássicos e um boxeador grosseiro e de rosto arrebentado de tanto apanhar nas lutas. Não achei a animação envolvente e na verdade fiquei me perguntando qual seria o critério para a escolha desses filmes. De todo modo, BOXBALLET (2021), de Anton Dyakov, é um curta simpático e que celebra a união das diferenças, ou apesar das diferenças. Além do mais, do ponto de vista técnico, é uma animação com personalidade.

THE WINDSHIELD WIPER

Interessante e bonito este curta indicado a melhor animação. É uma obra bem adulta e reflexiva sobre o amor romântico. Um homem escuta conversas sobre relacionamentos que não funcionam em um café e talvez ele seja o alter-ego do diretor Alberto Mielgo. Ao final do filme, ficamos sabendo que as pequenas histórias apresentadas foram inspiradas em conversas ouvidas em cafés e restaurantes em diversas cidades do mundo. Essa coisa mais globalizada aparece também nos lugares. Há desde alguém que se suicida por causa da solidão ou do fracasso no amor, passando pelo casal que olha o mar calado (a moça seminua ajuda a tornar os aspectos mais carnais da relação bem importante), pelo mendigo que, no fundo do poço, confunde uma manequim com sua ex-esposa etc. Destaque para as belas pinturas que combinam com o clima de desencanto do filme. THE WINDSHIELD WIPER (2021) foi o vencedor na categoria.

BESTIA

Tive que rever imediatamente depois da primeira vez, por causa da minha dificuldade de acompanhar histórias sem falas (minha mente passa a se dispersar). Além do mais, BESTIA (2021), de Hugo Covarrubias, também possui muitos hiatos temporais, muito mistério (auxiliado pela trilha sonora) e há coisas muito importantes sobre o filme que só se fica sabendo através de artigos ou entrevistas, como o fato de ser uma obra sobre uma torturadora real da época da ditadura de Pinochet. Em vez de focar em aspectos mais políticos ou mesmo nas torturas de maneira mais explícita, o filme nos apresenta à mente perturbada da protagonista e também à sua rotina de vida com seu cachorro. Aliás, as coisas envolvendo o cachorro são talvez as mais chocantes do filme. Achando muito interessante essa seleção de curtas mais adultos do Oscar 2022.

A SABIÁ SABIAZINHA (Robin Robin)

Eis um filme muito bonitinho sobre um passarinho (na tradução brasileira chamam de sabiá, mas acho que em inglês é outro pássaro - acho) e esse passarinho fêmea, desde que nasceu, é criado por uma família de ratos. Ela cresce aprendendo a fazer coisas que os ratos fazem, como ser cuidadosa em roubar coisas das casas dos humanos, mas não aprende a voar, por exemplo. A SABIÁ SABIAZINHA (2021), de Dan Ojari e Michael Please, tem pelo menos dois momentos de suspense muito bons, que lembram thrillers de roubo. E há uma gata como vilã da história, vivida por Gillian Anderson. Aliás, uma coisa que sempre me deixa encucado, por que nas animações os gatos são sempre vilões? Ou quase sempre, sei lá. Curta presente na Netflix.

segunda-feira, março 28, 2022

OSCAR 2022



Não dá para dizer que não foi uma noite memorável. Mas é triste saber que será lembrada como a noite em que Will Smith levou o Oscar depois de ter dado um tapa no apresentador de uma das premiações, Chris Rock, famoso por algumas piadas infames e que cometeu o erro de fazer uma piada besta com a condição física da esposa de Will, Jada Pinket-Smith. Mas o erro foi maior ainda de Will, de partir para a agressão em rede mundial. Seu ato até agora está repercutindo e há quem o defenda e há quem o condene. Eu estou pendendo mais para condenar o seu ato, e acabei por admirar ainda mais Denzel Washington, que, durante o discurso acalorado de Will, falou para ele tomar cuidado no que poderia dizer. Sim, isso foi um acontecimento tão tenso que eu sequer lembrei de anotar o vencedor da categoria melhor documentário anunciado por Rock. Tive que ver em algum site depois. Naquela hora, ninguém queria saber, na verdade, a não ser talvez os premiados.

A cerimônia estava me rendendo muita raiva no início, com a pressa e desrespeito da academia em ter deixado de fora da apresentação ao vivo oito prêmios que são, sim, muito importantes. Eles foram apresentados de maneira muito rápida e editada, como que numa tentativa desesperada de conquistar o espectador do Tik Tok, ou talvez de acreditar que a impaciência é a marca do público jovem. O resultado é que metade da cerimônia aconteceu de forma atropelada. 

Ao menos duas das apresentações musicais foram bem legais: “We don’t talk about Bruno”, bastante divertida, da animação ENCANTO, e “No Time to Die”, cantada por Billie Eilish, música-tema de 007 – SEM TEMPO PARA MORRER, e a que conquistou o troféu.

Quanto às premiações, é mesmo muito estranho que ATAQUE DOS CÃES, indicado a 12 estatuetas, só tenha ganhado a de melhor direção para Jane Campion. Talvez o modelo de cálculo que valoriza os filmes com menor rejeição tenha resultado na vitória de NO RITMO DO CORAÇÃO, um filme bem menos ambicioso e simples, mas que de alguma maneira tinha como trunfo a questão da inclusão dos deficientes auditivos – um tema que também comparece no curta AUDIBLE e no japonês DRIVE MY CAR. Será que a academia resolveu usar essa bandeira como tema para essa edição? Inclusive, tivemos o prêmio de ator coadjuvante para Troy Kutsur, que fez o discurso mais bonito da noite, em linguagem de sinais e traduzido para o inglês. Mas também é possível pensar que a academia não queria mais uma vez premiar uma produção da Netflix. 

O campeão em número de estatuetas da noite foi DUNA, de Denis Villeneuve. Aliás, é curioso que justamente os filmes mais odiados ou desprezados pela maioria da minha bolha cinéfila tenham sido os grandes vencedores. DUNA faturou um monte de categorias técnicas e é compreensível. E pode até repetir o feito na segunda parte, caso se torne mais querido por um público maior. 

Quem estava linda e muito elegante na noite era Jessica Chastain, que fez um discurso em prol das pessoas LGBTQI+, ao receber o Oscar por OS OLHOS DE TAMMY FAYE. A minha favorita, Kristen Stewart, por SPENCER, ficou para a próxima oportunidade. De todo modo, neste ano, a categoria mais bonita e também mais acirrada e confusa foi mesmo a de melhor atriz. Todas as concorrentes eram ótimas, cada uma à sua maneira.

No mais, espero que a Academia tome novas providências para que os erros desta edição não se repitam na próxima. Sei que é preciso repensar estratégias para conquistar também o público mais jovem e o prêmio não ficar esquecido com o passar dos anos, mas não creio que será dessa maneira desrespeitosa. No fim das contas, por razões inesperadas e nada felizes, o Oscar furará a bolha da cinefilia na televisão e na internet, quando se comentará e se discutirá bastante o incidente de Will Smith.



Os Premiados

Melhor Filme – NO RITMO DO CORAÇÃO
Direção – Jane Campion (ATAQUE DOS CÃES)
Ator – Will Smith (KING RICHARD – CRIANDO CAMPEÃS) 
Atriz – Jessica Chastain (OS OLHOS DE TAMMY FAYE) 
Ator Coadjuvante – Troy Kutsur (NO RITMO DO CORAÇÃO) 
Atriz Coadjuvante – Ariana DeBose (AMOR, SUBLIME AMOR
Roteiro Original – BELFAST 
Roteiro Adaptado – NO RITMO DO CORAÇÃO 
Fotografia – DUNA 
Montagem – DUNA 
Trilha Sonora Original – DUNA 
Canção Original - "No Time to Die”, de 007 – SEM TEMPO PARA MORRER 
Som – DUNA 
Efeitos Visuais – DUNA 
Direção de arte – DUNA 
Figurino – CRUELLA 
Maquiagem e cabelos – OS OLHOS DE TAMMY FAYE 
Filme Internacional – DRIVE MY CAR (Japão) 
Longa de Animação – ENCANTO 
Curta de Animação – THE WINDSHIELD WIPER 
Curta-metragem live action – THE LONG GOODBYE 
Documentário – SUMMER OF SOUL, OU QUANDO A REVOLUÇÃO NÃO PÔDE SER TELEVISIONADA 
Curta Documentário – THE QUEEN OF BASKETBALL



domingo, março 27, 2022

DRIVE MY CAR (Doraibu Mai Kâ)



“A memória muitas vezes nos dá força”
(Haruki Murakami, no conto “Kino”)


Estou repetindo a experiência que EM CHAMAS, o maravilhoso filme de Lee Chang-dong, trouxe: entrando em contato com os contos de Haruki Murakami que deram origem à obra cinematográfica. Se no EM CHAMAS, os contos foram retirados do livro O Elefante Desaparece, DRIVE MY CAR (2021), de Ryûsuke Hamaguchi, tem por base os contos do livro Homens sem Mulheres, principalmente o conto que dá nome ao filme. Estou em processo de leitura ainda do livro e totalmente encantado com um conto em específico chamado “Kino”, possivelmente o mais misterioso do volume. Dele Hamaguchi toma emprestada a imagem do marido que chega em casa e vê a esposa transando com outro homem. E de “Sherazade” o cineasta toma emprestadas as cenas em que a esposa conta ao marido histórias na cama, após o sexo.

Quanto à inclusão do filme em quatro categorias no Oscar deste ano, eis é um feito e tanto. Principalmente se compararmos com as outras produções indicadas e mais convencionais, ver este filme arthouse de três horas de duração e andamento bem lento é ver um corpo estranho na premiação. Nem sei se todos os fiéis gabaritadores do Oscar conseguirão ver o filme. O próprio diretor não acreditou quando lhe deram a notícia das indicações. Muito provavelmente isso deu pelo efeito de ele ter conseguido emplacar dois sucessos em dois dos maiores festivais internacionais do ano passado, RODA DO DESTINO em Berlim (Urso de Prata) e DRIVE MY CAR em Cannes (melhor roteiro).

E falando em roteiro, a indicação para roteiro adaptado neste ano e o prêmio específico para o roteiro em Cannes deve ter muito a ver com o modo como o diretor (em parceria com Takamasa Oe) expande um conto bem pequeno de Murakami de maneira brilhante, modificando e acrescentando elementos extras e dando mais tempo e espaço para a peça Tio Vânia, de Anton Tchekhov. Além do mais, os diálogos são ditos, quase sempre, de maneira bem pausada.

Outra coisa: em DRIVE MY CAR, principalmente, Hamaguchi parece ser mais um diretor de rostos (seria um absurdo compará-lo a Bergman, nesse sentido?), dada a quantidade de cenas em que ele prefere ressaltar a expressão de seus atores e atrizes. Há um momento muito especial que reúne três personagens no carro conversando (um deles apenas ouvindo) sobre um assunto particularmente delicado. E essa tensão nos interiores é tanta que quando as imagens se abrem para planos gerais, principalmente diurnos, fica uma sensação de alívio no ar. Eu, particularmente, senti falta de me envolver mais com o drama dos personagens, mas isso tem sido quase uma constante comigo com os filmes dessa temporada de premiações.

Talvez a falta de uma familiaridade maior com o cinema japonês e com o tipo de interpretação mais particular deles tenha interferido um pouco em minha apreciação. Tanto que prefiro quando as interpretações são um pouco mais frias e estranho as interpretações mais catárticas, como acontece nos momentos finais – apesar de eu ter achado belíssima a cena da apresentação de Tio Vânia

Uma coisa curiosa que eu tenho visto nas tentativas de criar uma sinopse para o filme é que ela pode ser feita de duas maneiras: ou contando o que acontece com Kafuku (Hidetoshi Nishijima) no prólogo de 40 minutos, ou seja, contando a situação entre ele e a esposa; ou indo direto para a espinha dorsal da narrativa, que é a relação entre Kafuku e a motorista Misaki (Tôko Miura). A opção de Hamaguchi de contar para o espectador a história pregressa do protagonista com a esposa em vez de usar flashbacks, como acontece no conto, tira um pouco do mistério em torno do protagonista, embora fiquem no ar ainda suas angústias e seu sentimento dúbio em relação à esposa. Aliás, a dubiedade parece ser algo muito comum na filmografia de Hamaguchi, a julgar pelo que vimos em suas obras anteriores, ASAKO I & II (2018) e RODA DO DESTINO. 

E acredito que DRIVE MY CAR seja um filme que mereça revisões para que compreendamos melhor os detalhes, as entrelinhas, os sentimentos que podem ser compatíveis com os nossos e assim nos aproximar mais do filme. Conhecer a peça de Tchekhov pode ajudar também a compreender melhor o filme, já que muito do que aflige o personagem passa pelo que essa peça esbarra com sua vida. Além do mais, é uma maravilha quando duas ou três formas de arte se coadunam e uma ou outra oferece um convite para o nosso enriquecimento cultural.  

+ DOIS FILMES

MADALENA

Foi muito bom ir ao cinema no finzinho do ano passado e ainda poder ver um filme tão poderoso quanto MADALENA (2021), de Madiano Marcheti, que escapou a todas as minhas expectativas quanto ao desenvolvimento do enredo. Na verdade, não é exatamente um filme de enredo; há muito mais interesse em aprofundar uma atmosfera e em apresentar personagens diferentes, que estão ligados, de alguma maneira, a uma mulher trans chamada Madalena, apresentada morta logo no prólogo. A personagem-título raramente aparece e talvez isso a torne uma espécie de fantasma assombrando (principalmente no caso da história do rapaz filho de um rico latifundiário) ou trazendo um sentimento forte de ausência. MADALENA é desses filmes que expandem a nossa compreensão da grandeza espacial de nosso país, ao apresentar uma área rural do Mato Grosso do Sul como uma das faces do Brasil, o país machista e recordista no assassinato de travestis e transexuais. Um grande longa-metragem de estreia.

TITANE

Terminei de ver TITANE (2021), de Julia Docournau, numa madrugaesta do ano pasasdo, mas precisei de um tempo para ruminar um pouco o que acabara de ver (no fim das contas acabei não escrevendo um texto maior a respeito, o que é uma pena). É curioso como dois dos maiores festivais de cinema do mundo optaram por filmes ousados (foi o caso de Berlim também). Docournau já diz a que veio no início da narrativa, quando vemos a protagonista ainda criança tendo um tipo de personalidade complicada. Na vida adulta, outra surpresa logo surge na cena do estacionamento, e mais ainda em outros momentos. Até a entrada em cena de Vincent Lindon, quando TITANE se transforma também em um filme sobre amor. O que é muito estranho, levando em consideração tudo o que havíamos visto até então, não apenas de violência, mas da opção por um estudo mais fantástico da personagem e o produto do sexo com um automóvel. Daí a entender a alegoria que o filme promove ter demorado um pouco pra mim. No mais, que bela estreia em longa da atriz Agathe Rouselle, hein!

sábado, março 26, 2022

A PIOR PESSOA DO MUNDO (Verdens Verste Menneske)



Uma das coisas que mais me dá prazer é poder acordar de manhã e verificar que tudo está em ordem – não muito cedo, de preferência, mas se o corpo não reclamar do sono, pode ser também. Minha mãe ainda dormindo, meu gato Jorginho deitado no chão da cozinha todo cheio de pose (ou em cima da mesa, às vezes), o silêncio do horário só interrompido pelo tráfego dos carros e motos e eu não precisando sair apressado para trabalhar ou para algum compromisso não muito agradável. E, assim, poder escrever com prazer para o blog. Quem acompanha este espaço aqui percebe que já faz mais de uma semana que não o atualizo, mas deixo claro que não é por falta de vontade, mas por falta de tempo, saúde (não vou falar das dores na lombar para não ficar parecendo ainda mais "blog de véio") e disposição. Mas tudo bem (eu acho). Afinal, é preciso trabalhar para garantir o pão de nosso de cada dia.

Quando vi A PIOR PESSOA DO MUNDO (2021), do norueguês Joachim Trier, sabia que precisaria tirar um tempo para escrever um pouco mais a respeito, nem que fosse um texto de natureza bem pessoal e mais confessional, já que é um filme que me pegou de maneira muito próxima, despertando vários gatilhos e trazendo à tona várias lembranças. Identifiquei-me, em dois momentos distintos, com dois personagens: inicialmente com a protagonista Julie (Renate Reinsve, melhor atriz em Cannes 2021), e posteriormente com o personagem do namorado dela, Aksel (Anders Danielsen Lie, presente em A ILHA DE BERGMAN).

Por mais que seja adepto da política dos autores e tenho por costume dar a maior parte do crédito para o diretor, é sempre bom perceber quem está assinando o roteiro com o realizador, principalmente quando o filme lida com diálogos delicados, sentimentos fortes e uma construção narrativa muito particular. No caso, o corroteirista aqui é Eskil Vogt, parceiro de Trier em todos os seus cinco longas-metragens e que tem alguns trabalhos na direção, entre eles o premiado BLIND (2014). Então, imagino que é preciso dar crédito a Vogt também, que inclusive está sendo indicado ao Oscar de roteiro original junto com Trier, já que A PIOR PESSOA DO MUNDO foi um dos poucos filmes estrangeiros – junto com DRIVE MY CAR e MÃES PARALELAS – que furou a bolha das produções faladas em língua inglesa.

A PIOR PESSOA DO MUNDO tem sido mencionado como o último da chamada "trilogia Oslo" do realizador, em que se incluem COMEÇAR DE NOVO (2006) e OSLO, 31 DE AGOSTO (2011). Como ainda não vi os referidos filmes, todos estrelados por Anders Danielsen Lie, não sei o que eles têm em comum, além do fato de se passarem na capital da Noruega. Pelo pouco que vi dos enredos, os três filmes lidam com dores espirituais.

A PIOR PESSOA DO MUNDO nos apresenta a uma personagem feminina que, apesar de se sentir angustiada com dúvidas sobre sua carreira profissional (ela já abandonou algumas faculdades e ainda não sabe direito o que quer da vida), ela se mostra constantemente sorridente. Aliás, eu diria que muito do que o filme nos ganha vem do sorriso lindo de Julie/Renate. E também de como a narrativa tem uma leveza e um senso de humor que a princípio torna situações que poderiam ser pesadas um pouquinho mais suportáveis. É o caso, por exemplo, da cena da transa de despedida de Julie com Aksel. Ela estava morando com ele já há algum tempo e tudo parecia normal, mas depois que ela conhece Eivind (Herbert Nordrum), ela passa a acreditar que deve partir para uma nova relação, impulsionada pela paixão.

E por mais que as cenas com Aksel até então vistas sejam muito bonitas – gosto muito de quando ela chega no apartamento apartamento dele para ficar e começa a negociar espaços de livros na estante –, é fácil compreender o que faz Julie se sentir balançada, já que a cena do encontro de Julie com Eivind é simplesmente uma das mais eróticas já produzidas nos últimos dez anos no cinema mainstream. Trata-se de uma cena que lida com um jogo delicioso sobre o que se constituiria ou não uma traição, dentro daquilo que eles desejam em suas intimidades.

A PIOR PESSOA DO MUNDO, como o próprio nome dá a entender, é justamente esse filme que lida com a dor que a pessoa que você ama é capaz de lhe inflingir. E Julie, por mais que jogue de maneira muito franca com seus namorados, às vezes até franca demais, como quando joga na cara de Eivind sua pouca cultura e sua ocupação profissional mais humilde (em comparação com Aksel), por mais que jogue de maneira muito franca, ela sabe o quanto é capaz de magoar alguém.

E isso se torna um fardo ainda muito mais pesado para Julie quando ela reencontra Aksel nos últimos capítulos da narrativa e vê seu estado físico e quando ouve dele que ela foi a mulher de sua vida, a pessoa que ele mais amou em toda sua existência. Foi nesse momento que o filme bateu forte em mim e eu me identifiquei muito com Aksel, embora quisesse aceitar também um abraço de Julie, já que já passei por situações similar. E por mais que o filme abrace o melodrama nesta conclusão, enfatizando a condição de Aksel, acredito que o sentimento sobre a relação dos dois consegue ganhar uma dimensão ainda mais importante do que a própria morte iminente.

Trier lida com esse carrossel de emoções de maneira muito inteligente e criativa. A cena de Julie pausando o tempo e o espaço para passar várias horas com o novo (e supostamente proibido, pois representativo de adultério) amor de sua vida é impressionante, mas também é digno de nota cada vez que o cineasta emoldura seus personagens de acordo com as emoções que eles sentem, seja um sentimento de manipulação, de culpa, de impulsividade, de solidão ou de desejo.

+ DOIS FILMES

SUMMER OF SOUL (...OU, QUANDO A REVOLUÇÃO NÃO PÔDE SER TELEVISIONADA) (Summer of Soul (...or, When the Revolution Could Not Be Televised))

Acredito que um dos "defeitos" que podemos atribuir a SUMMER OF SOUL (...OU, QUANDO A REVOLUÇÃO NÃO PÔDE SER TELEVISIONADA) (2021), de Ahmir 'Questlove' Thompson, seja o fato de ser um documentário mais quadrado para os padrões da atualidade. Mas talvez ele precisasse ser assim mesmo, para, além de nos apresentar a alguns dos melhores momentos dos shows do Harlem Cultural Festival de 1969, ainda nos situar dentro daquele caldeirão fervente que era os Estados Unidos (e o mundo) naquele ano. O que é impressionante é que um registro tão valioso e tão cheio de estrelas como esse tenha ficado guardado e praticamente esquecido por cerca de 50 anos. Entre os nomes presentes no festival, há Steve Wonder, Nina Simone, Sly and the Family Stone, B.B. King e tantos outros, numa celebração da diversidade da música e da cultura negra em um tempo de revolução cultural e autoafirmação da beleza do negro. Há espaço tanto para um dia dedicado ao gospel, quanto a números vindos direto da África, passando por grupos pop, artistas de jazz, blues, r&b, soul. Impressionante, de fato. Indicado ao Oscar na categoria documentário em longa-metragem.

BELFAST

Um filme tão simpático quanto ineficiente em tudo que tenta fazer. Não sei o que é mais incrível: Kenneth Branagh estar conseguindo tanto espaço para um filme como este ou ter voltado a parecer um cineasta importante após tantos trabalhos medíocres. A singularidade de BELFAST (2021) estaria no fato de ser um projeto mais pessoal do cineasta, retratando sua infância em Belfast aos nove anos de idade, quando sua cidade passou a ser palco de uma guerra entre católicos e protestantes. Como o filme tenta ser um olhar do protagonista infantil, não há muito interesse em tomar partido na situação, o que eu acho compreensível se pensarmos esse embate apenas como uma imbecilidade, sem explicar minimamente o porquê daqueles acontecimentos. Mas nem chega a ser esse o problema do filme e sim o quanto ele tenta emocionar e não consegue (pelo menos não a mim), como os diálogos são qualquer coisa, como as imagens procuram trazer algo de poético e bonito e não conseguem também. No meio disso tudo, porém, se destacam as performances do elenco, especialmente do menino Jude Hill e da atriz que faz sua mãe, Caitríona Balfe, hoje mais conhecida como a protagonista da série OUTLANDER. Indicado ao Oscar nas categorias de filme, direção, roteiro original, ator coadjuvante (Ciarán Hinds), atriz coadjuvante (Judi Dench), canção (“Down to Joy”, de Van Morrison) e som.

quinta-feira, março 17, 2022

FRESH



Tem sido interessante ver o quanto as cineastas mulheres têm se apropriado de subgêneros do terror que anteriormente eram, com muito mais frequência, dirigidos por homens. Alguns desses filmes, inclusive, pareciam ter uma carga, ainda que leve, de misoginia. Não sei o quanto isso faz sentido ou se estou fazendo algum tipo de presunção indevida, mas sigamos.

De uma forma ou de outra, acho interessante pensar que FRESH (2022), longa-metragem de estreia de Mimi Cave, é uma obra com um grau de militância bem evidente, principalmente no modo como apresenta a amizade e a sororidade das personagens, seja em situações de alegria, seja em situações de horror e desespero.

Falando em horror, é bom deixar claro que este texto conterá alguns spoilers e que FRESH é o tipo de filme que deve ser visto sabendo-se o menos possível, dada a quantidade generosa de surpresas, a começar pela própria pegadinha do prólogo/primeiro ato, que passa a falsa impressão de que o filme seria uma comédia romântica ou algo parecido.

Na trama, Daisy Edgar-Jones (jovem atriz muito querida por quem viu a série NORMAL PEOPLE) é Noa, uma moça adepta dos encontros por aplicativos, ainda que esteja em um momento de desesperança e de cansaço desse ritual de iniciação e tentativa de namoro. Sem falar que, como dá para perceber em um de seus encontros, a chance de dar errado é muito maior.

Até o dia em que ela conhece no supermercado um cara bonito e simpático (Sebastian Stan) que parece ser o homem dos seus sonhos. E embora ela saiba muito pouco desse homem de nome Steve, ela resolve cair de cabeça nessa nova relação, por mais que sua melhor amiga suspeite do fato de ela não saber muita coisa a respeito do sujeito.

E chega o momento da grande revelação. Os créditos de abertura com o título do filme aparecem apenas após esses trinta minutos iniciais, dividindo e apresentando o que seria, a seguir, um filme de horror tão assustador e absurdo quanto próximo de algo realista. Steve, que havia se apresentado como um cirurgião plástico que não comia carne, é na verdade um sádico sequestrador de mulheres. E o que ele faz com elas é de gelar o sangue.

Ainda que seja uma obra que não use tanto gore quando se poderia esperar de um filme desse subgênero, o terror e o suspense estão mais na expectativa, e no modo como a narrativa nos coloca no lugar da protagonista, numa situação de vítima totalmente indefesa, à espera não apenas da morte, mas da pior das mortes. Afinal, ter partes de seu corpo cortadas para vender para uma elite formada por canibais é de deixar qualquer pessoa pirada.

Além disso, o filme se beneficia bastante dos momentos em que Noa conversa com Steve enquanto está presa, na esperança de conseguir conquistar sua confiança e, quem sabe, fugir. E FRESH guarda algumas cenas muito interessantes e até sofisticadas, como aquela em que ela, sob domínio dele, mas já tentando seduzi-lo, dança com o psicopata na sala de jantar. A cena tem uma beleza visual muito interessante, e faz isso tendo que lidar com sentimentos perturbadores da protagonista e da audiência. Eis um filme que vem crescendo em minha memória afetiva, por mais que eu tenha achado a conclusão menos interessante do que o restante da narrativa.

+ DOIS FILMES

AS BODAS DE SATÃ (The Devil Rides Out)

Uma aposta da Hammer em um tempo em que o mercado já estava saturado dos filmes de Drácula e Frankenstein foi dirigido justamente pelo principal cineasta da companhia, e muito provavelmente o melhor deles. Há tempos que eu me devia ver AS BODAS DE SATÃ (1968), de Terence Fisher, e só agora peguei para assistir. Fiquei com um pouco de decepção, mas há também um charme e algo de especial nesta produção. A começar pela ótima performance de Christopher Lee, que aqui faz o papel de um herói, um mago que tenta salvar um de seus melhores amigos de se juntar a um culto de adoradores do demônio. A produção veio à luz por conta do crescente interesse dos jovens e da cultura pop por temas relacionados a esoterismo e satanismo naquela época. E assim os romances de Dennis Wheatley acabaram sendo aproveitados em algumas poucas produções da companhia. O problema foi que AS BODAS DE SATÃ foi mal nas bilheterias americanas e a Hammer foi perdendo um de seus aliados mais fortes, os Estados Unidos. Tem algo neste filme que já parece um pouco antiquado para a época. E nem falo dos efeitos especiais, que realmente não são bons, mas do espírito da época, que estava mudando. Mas não deixa de ter sido uma coragem do Fisher de mostrar explicitamente certas imagens, como o demônio-bode ou o anjo da morte.

A JAULA

Refilmagem do argentino 4X4, de Mariano Cohn, este suspense bastante tenso tem o grande mérito de conseguir se manter interessante do início ao fim, mesmo tendo a metade de sua metragem em um único e apertado lugar, um carro. Na trama de A JAULA (2022), Chay Suede (excelente!) é um ladrão de carros que cai na armadilha de um "cidadão de bem" (Alexandre Nero), que, cansado de ter seus carros roubados, resolve punir de maneira cruel o rapaz. Como não vi o filme original, acredito que houve muitas adaptações para a situação brasileira - há citações muito próprias do momento sócio-político em que vivemos atualmente. Inclusive, dependendo do espectador, há quem vá torcer pela pessoa errada no filme, por mais que os roteiristas se esforcem para deixar clara sua posição e o aspecto mais caricaturesco de certos personagens de extrema direita. O filme de João Wainer também sabe o momento certo para fazer a virada para o terceiro ato. Deveria ser mais visto. Não apenas por causa das questões políticas, mas por ser um ótimo filme de gênero.

domingo, março 13, 2022

A HISTÓRIA COMEÇOU À NOITE (History Is Made at Night)



A descoberta de Frank Borzage, a partir de ESTRELA DITOSA (1929), me deixou bastante desnorteado. Cheguei a começar a ler um texto mais aprofundado sobre ele no site Senses of Cinema, mas percebi que seria preciso conhecer mais seus trabalhos para que esse texto passasse a fazer mais sentido para mim. Não que eu precise conhecer todos os seus trabalhos – pelo menos não por enquanto, e nem sei se isso é possível –, mas acredito que seja necessário um bom apanhado para que sua poética começasse a se fazer mais perceptível para mim.

É novamente do box Melodrama no Cinema que entro em contato com outro de seus trabalhos, o desconcertante A HISTÓRIA COMEÇOU À NOITE (1937), uma obra que está mais em sintonia com a década de 1930, já que foi a partir dessa década que as comédias sofisticadas e com ênfase na fala começaram a se fazer presentes. E não sei o quanto isso influenciou os melodramas, de modo que eles deixassem de ser tão carregados como eram na década de 1920. 

O que me deixou muito impressionado com A HISTÓRIA COMEÇOU À NOITE foi a mistura de gêneros. Isso não acontece de maneira homogênea, mas pulando de um para outro, e de maneira muito fluida. O filme começa com um ar de filme noir e suspense, com a personagem de Jean Arthur, Irene, abandonando o casamento recente com o magnata dos navios Bruce Vail (Colin Clive), e partindo para Paris. O marido (ou ex-marido) fica indignado e, acreditando que Irene tem um amante, envia homens para, de alguma maneira, trazê-la de volta.

É aí que entra Paul, o personagem de Charles Boyer, um maître de um respeitado restaurante, que, vendo Irene ser atacada por um dos homens de Bruce, faz de conta que é um ladrão, dá um soco no sujeito, acende as luzes do apartamento, leva umas joias de Irene consigo e carrega-a em um carro. Ela, inclusive, acredita nesse teatrinho até o momento em que Paul lhe devolve as joias, demonstra ser um cavalheiro e a convida para jantar e tomar um champanhe. Ela aceita e os dois têm uma noite romântica inesquecível. Nesse momento, o filme assume toques de comédia romântica. Que logo será quebrada por uma chantagem pesada de Bruce.

Então, o filme passa a assumir o manto de melodrama, no sentido de que temos uma situação dramática de separação injusta de um casal que se ama. Um destaque interessante (e também muito triste) está no fato de que o ator Colin Clive, mais lembrado como o Victor Frankestein dos filmes de James Whale, estava muito doente durante as gravações e morreria no ano de lançamento do filme, por complicações da tuberculose e também por conta do alcoolismo. A partida de seu personagem no filme também é trágica, e acontece num momento em que o filme ganha ares de tragédia. 

O curioso é que Frank Borzage trafega por todos esses tons e gêneros de maneira muito natural, ainda que isso cause estranheza, mesmo aos olhos de hoje, quando estamos mais acostumados a ver mais experimentações. E ele faz isso em um filme de menos de 100 minutos de duração e de maneira muito dinâmica. Se alguém pensasse em algo parecido hoje certamente faria um filme de três ou quatro horas de duração. 

Acontece que A HISTÓRIA COMEÇOU À NOITE não foi uma obra pensada para ser assim desde o começo. Quando Borzage foi convidado para dirigir o projeto (pelo produtor Walter Wanger) não havia roteiro. O script foi sendo construído enquanto as cenas iam sendo rodadas. Achei isso incrível e mesmo assim o filme pode ser visto como um sucesso. Saber que a cena do navio foi pensada muito depois faz muito sentido. Apesar de completamente inesperada, a cena tem uma força incrível. A impressão que temos é que depois que a personagem de Arthur descobre que seu amado está em Nova York e não em Paris o filme estaria perto do fim, mas esse é uma especie de falso final. 

Uma das coisas observadas pelos estudiosos do filme e do cinema de Borzage e que se aplica muito bem em A HISTÓRIA COMEÇOU À NOITE é que não há em nenhum momento dúvida por parte do casal de amantes sobre seus sentimentos. Eles sabem que se amam como almas gêmeas. Em comparação com ESTRELA DITOSA (a única comparação que posso fazer no momento), há neste filme um ar mais espiritual e bem menos físico no que se refere ao amor dos dois. Porém, isso pode ser culpa do código Hays, que impôs regras duras para insinuações sexuais nos filmes a partir da década de 1930. Por isso, no momento em que o casal se encontra no restaurante, a transição um tanto brusca entre a conversa esclarecedora deles à noite e o café da manhã íntimo (e fora da cama, no fogão) é notada de maneira bem clara. Ou seja, talvez a fama de cineasta espiritual que Borzage ganhou tenha sido, em parte, causada por essa censura. Mas isso é algo que ainda preciso estudar para saber de fato. Além do mais, uma coisa não excluía a outra, não é verdade?

+ DOIS FILMES

CLÉO DAS 5 ÀS 7 (Cléo de 5 à 7)

Não é sempre que se tem o privilégio de ver esta obra-prima de Agnès Varda no cinema. Ainda mais em uma restauração tão linda e em uma sala tão boa (como a do Cinema do Dragão). Muitos detalhes me impressionaram durante a metragem, mas o que mais encanta é o quanto a trama (e o espírito do filme) parte de um presságio de morte para fazer uma celebração da vida nos mínimos detalhes, seja no ruído das ruas de Paris, seja nas conversas nos cafés, seja o momento mágico em que a protagonista (Corinne Marchand, linda) canta, seja na cena do ônibus. E ainda há explicitado o amor de Varda pelos gatos. Montes de gatos aparecem na casa de Cléo, tirando até um pouco de nossa concentração, e até da própria diretora, mas para um bem maior. CLÉO DAS 5 ÀS 7 (1962) é o tipo de filme que parece ganhar mais beleza a cada revisão.

ANNETTE

Acredito que se eu tivesse visto ANNETTE (2021) no cinema talvez a experiência fosse mais positiva para mim. Gosto muito do final, e gosto de muitas coisas no filme, embora tenha ficado aborrecido com outras, até porque nem toda cena musical parece funcionar, pois nem todas as canções são boas. Adoro o início, com "So May We Start", e o tema mais marcante, "We Love Each Other So Much", que antecipa algo da tragédia e horror que o filme oferece a partir de determinado ponto. Adam Driver funciona muito bem como homem tóxico e violento, seja por sua altura, seja pela lembrança de GIRLS. Marion Cotillard desperta o sentimento de amor com muita naturalidade. A estranheza que já é comum de se encontrar nas obras de Leos Carax aqui aparece de maneira mais forte, embora a história seja de fácil apreensão, se compararmos com HOLY MOTORS (2012), seu longa anterior. Como aqui não é ele que assina o roteiro, não vejo o projeto como totalmente dele, tanto quanto é dos roteiristas e compositores. Momentos impactantes: a tempestade, o assassinato premeditado e a visita de Annette no final.

sábado, março 12, 2022

A ILHA DE BERGMAN (Bergman Island)



Saber que Mia Hansen-Løve dirigiu seu A ILHA DE BERGMAN (2021) em duas etapas, em dois anos diferentes, ajuda a explicar um pouco a sensação de que há dois filmes em um. Isso aconteceu por causa de uma mudança no elenco. Quem ia interpretar a protagonista Chris era a Greta Gerwig, que resolveu abandonar o projeto para dirigir o seu ótimo ADORÁVEIS MULHERES. Aliás, é possível fazer paralelos entre os dois filmes dessas duas realizadoras. Ambos tratam de pensar a criação a partir da perspectiva feminina e também lidando com uma indignação frente ao fato de que a sociedade machista privilegia demasiado os homens e deixa a mulher sem espaço para a criação artística.

Com a saída de Gerwig do projeto, Hansen-Løve optou por filmar primeiramente o “filme dentro do filme” de A ILHA DE BERGMAN, ou seja, o filme imaginado pela personagem que passaria a ser interpretada por Vicky Krieps, que está tão bem que nem imagino outra atriz fazendo o papel, por mais que eu ame a Gerwig. Esse filme dentro do filme é “The White Dress”, que conta uma história breve sobre uma garota na ilha de Fårö (Mia Wasikowska) que reencontra o ex-namorado (Anders Danielsen Lie) após algum tempo distantes. Ambos estão presentes para o casamento de uma amiga em comum.

E essa história é encantadora, deixa um quentinho no coração ao mesmo tempo que também machuca. Mia Wasikowska está apaixonante e seu sentimento de amor pelo rapaz e sua vulnerabilidade são tocantes. Como esquecer a cena em que ela vai a uma festa que toca ABBA (“The Winner Takes It All”) e começa a dançar sendo guiada pelas vibrações agridoces da canção? E depois, quando o rapaz sai de cena, é como se sentíssemos o que ela sente. Como se algo naquele momento tocasse em algo por que também já atravessamos em nossas vidas. Acredito que é isso que ocorre. O nosso sentimento de empatia pela personagem naquele momento está muito relacionado ao nosso próprio histórico de sofrimento na vida amorosa.

Enfim, essa parte do filme, que ainda é um projeto de roteiro narrado por Chris é um trecho menor do projeto maior, que seria filmado no ano seguinte, com Tim Roth e Vicky Krieps, como um casal de cineastas viajando para a famosa ilha onde Ingmar Bergman trabalhou e viveu por muitos anos, onde fez vários de seus filmes a partir de ATRAVÉS DE UM ESPELHO. O curioso é que raramente a cineasta francesa tenta emular Bergman em seu filme, mas destaca bastante o quanto a ilha lida com a fama do cineasta e gira em torno de sua arte e sua história de vida.

A história principal de A ILHA DE BERGMAN estaria, portanto, um pouco mais próxima do meu filme favorito da realizadora, O QUE ESTÁ POR VIR (2016), dando ênfase tanto ao cotidiano quanto a processos mais interiores. E também mais íntimos, já que, diferente do citado filme de 2016, a solidão aqui é vivida a dois. E não há exatamente uma forte solidão, já que a personagem de Chris se permite uma aventura com um rapaz mais jovem na ilha, deixando o companheiro na mão no tal Safári Bergman. E embora a relação dos dois pareça ser tranquila, percebe-se um pouco de desgaste. Certas coisas ficam nas entrelinhas, como o fato de o companheiro não compartilhar com ela seus projetos pessoais e ela se sentir um pouco magoada com isso.

Para quem é cinéfilo (e praticamente todo cinéfilo obrigatoriamente precisa passar em algum momento por Bergman), o filme é um prato cheio. Principalmente para aqueles que já têm um pouco mais de intimidade com a obra do realizador sueco. Há uma cena que eu acho ótima, quando o casal está sozinho em uma espécie de cinemateca particular onde se pode escolher um entre vários filmes do Bergman para assistir em 35 mm. E eles demoram um pouco para escolher, já que muitos desses filmes já foram vistos por eles várias vezes. Acabam revendo o doloroso GRITOS E SUSSURROS.

Enfim, A ILHA DE BEGMAN é tão gostoso que até poderia se estender um pouco mais na duração que eu não reclamaria. Até por não se tratar exatamente de um filme tão preocupado com a trama. Mesmo a trama pensada/criada por Chris é uma trama sem um final e também mais interessada nos sentimentos borbulhantes da personagem de Mia Wasikowska do que em um plot. Ou seja, como a própria Hansen-Løve falou em entrevista ao The Playlist, seu cinema é muito mais intuitivo. E isso é muito perceptível quando se assiste a este seu mais recente trabalho.

+ DOIS FILMES

SELMA BLAIR – A BATALHA CONTRA A ESCLEROSE MÚLTIPLA (Introducing, Selma Blair)

Não sei por que motivo eu me atraio por esse tipo de documentário tão intrusivo. Este filme lembrou-me VAL, sobre o ator Val Kilmer, embora esteja longe de ser tão bom quanto. Em SELMA BLAIR – A BATALHA CONTRA A ESCLEROSE MÚLTIPLA (2021), de Rachel Fleit, acompanhamos a luta da atriz Selma Blair contra uma doença que prejudica os movimentos do corpo, a fala e os pensamentos. Um aspecto muito importante deste filme é que ele começou a ser feito antes do tratamento com células-tronco, que surge como uma esperança para que ela recupere a saúde perdida. O documentário, no entanto, joga na nossa cara um bocado de realidade, para o bem e para o mal. A atriz faz questão também de deixar bem clara sua relação conflituosa com a mãe, que segue presente até os momentos finais, por mais que se perceba o carinho entre as duas, mesmo que à distância, por telefone. Em alguns momentos, dá impressão de que Selma está tentado, com este documentário, ganhar um tipo de visibilidade que não conseguiu em sua carreira em Hollywood, o que é algo que a deixa frustrada, embora, frente à doença, isso se torne um problema muito menor.

A FELICIDADE DAS COISAS

Um filme que tem um traço maternal extremamente forte e por isso me ganhou tanto. Em A FELICIDADE DAS COISAS (2021), de Thaís Fujinaga, temos uma mulher grávida com seus dois filhos pequenos e sua mãe em uma casa de praia, se esforçando para conseguir instalar uma piscina, por mais que as finanças não ajudem. É interessante o modo como o filme lida com pequenas coisas e as torna imensas, como o gostoso momento da cena da chuva (senti uma alegria de estar vivo nesse momento, que vocês nem imaginam!), ou nas preocupações cotidianas com as crianças, tanto a menina, quanto o menino, ele já chegando na pré-adolescência e por isso muito mais disposto a se aventurar e a ficar mais distante da mãe. Como o filme tem essa postura de mãe, ele me contaminou com as preocupações da protagonista, ao mesmo tempo em que eu olhava com muita simpatia para a personagem da avó. A cena dos meninos, perto do final, possui algo de eletrizante que não vejo em muito filme de suspense produzido por aí.

quinta-feira, março 10, 2022

SEIS FILMES INDICADOS AO OSCAR 2022



Ultimamente meu tempo e energia para ver filmes andam um tanto em baixa. Por isso, a postagem de hoje reflete um pouco tanto esse cansaço quanto a falta de tempo/energia para ser dispendida com as coisas que amo. Como os filmes do Oscar não estão lá me empolgando tanto, vamos falar um pouco sobre seis deles.

APRESENTANDO OS RICARDOS (Being the Ricardos)

Até poucos anos atrás um dos motivos de eu gostar muito da temporada do Oscar vinha do fato que, pelo menos nessa época, os lançamentos nos cinemas ficavam mais voltados ao público adulto. De uns anos pra cá, com muitos desses filmes indicados saindo direto em streaming, eu percebi que muitos desses filmes são bem chatos e que, em casa, minha preguiça de vê-los aumenta bastante. É o caso deste APRESENTANDO OS RICARDOS (2021), de Aaron Sorkin, que mesmo contando com um par de atores de que gosto muito e tendo uma ideia muito interessante, é desses filmes para se ver com o olho no relógio e torcendo para acabar logo. O assunto abordado é interessante: os Estados Unidos da época do macarthismo e o quanto isso repercutiu na época em que Lucille Ball foi acusada de ser comunista. O filme se divide entre alguns poucos dias do ocorrido e flashbacks que documentam os primeiros momentos do casal Lucille e Desi. Como Javier Bardem é um grande ator e é uma simpatia, até dá para entender sua indicação, assim como a indicação da Nicole Kidman. Já a indicação do J.K. Simmons, por um papel tão pequeno e bem pouco brilhante, só se justifica por ele já ser um nome muito querido e famoso da indústria. Indicações: atriz (Nicole Kidman), ator (Javier Bardem), ator coadjuvante (J.K. Simmons).

OS OLHOS DE TAMMY FAYE (The Eyes of Tammy Faye)

Além da força da interpretação de Jessica Chastain, muito do mérito do filme está em conseguir incorporar o espírito brega e confuso de seus protagonistas. Isso faz com que OS OLHOS DE TAMMY FAYE (2021, foto), de Michael Showalter, consiga fugir um pouco do tradicional filme biográfico de pessoas famosas. Os retratados aqui são o casal de televangelistas americanos Jim Bakker e a personagem-título, sua esposa. Como são poucos os filmes que adentram os bastidores desse universo do evangelismo, não deixa de ser muito interessante acompanhar essa história regada a escândalos e muitas curiosidades. Andrew Garfiel quase compromete o filme com sua interpretação, mas Chastain equilibra, mesmo com toda a pesada maquiagem. Ou talvez por causa da maquiagem e das próteses, já que esse tipo de make-up que transforma as pessoas retratadas em criaturas de um mundo bizarro é essencial para a criação da obra como ela é. E da própria protagonista, que logo no começo do filme lembra muito uma drag queen, e lá pelo meio entenderemos sua relação com o mundo LGBT. Indicações: atriz e maquiagem e cabelos.

TICK, TICK…BOOM!

Um filme que eu não teria visto se não tivesse entrado em uma das categorias mais importantes do Oscar. No caso, a de melhor ator. E de fato, é louvável o desempenho de Andrew Garfield no papel do músico Jonathan Larson. Um ator que nem sequer cantava, mas que aceitou a tarefa com coragem. Na verdade, o que não me pegou em TICK, TICK…BOOM! (2021), de Lin-Manuel Miranda, e que me deixou um bocado aborrecido foram as canções. Não sei se é o caso de conhecê-las melhor para aprender a gostar delas (isso é muito comum em se tratando de música), mas não foi o caso de gostar de primeira vez. E a gente sabe que gostar das canções já é meio caminho andado para amar um musical do tipo, com um pé no clássico e outro no moderno. De todo modo, vale muito ver, até para conhecer um pouco da vida do compositor de Rent. Indicações: ator e montagem.

A TRAGÉDIA DE MACBETH (The Tragedy of Macbeth)

Talvez a preocupação excessiva com a parte plástica tenha prejudicado um pouco o andamento narrativo desta adaptação da peça clássica. Ainda assim, é difícil não haver momentos impressionantes, seja pelo próprio texto de Shakespeare, que já carrega uma aura de maldição desde o encontro de Macbeth e Banquo com as três bruxas, passando pelo pensamento venenoso de Lady Macbeth e pelos atos assassinos do protagonista. Mas mesmo os instantes de perturbação da mente do casal Macbeth vão perdendo a força à medida que o filme vai chegando à sua conclusão. Momento arrepiante de A TRAGÉDIA DE MACBETH (2021): Frances McDormand gemendo de horror quando está sonâmbula. Denzel Washington também está ótimo como o primeiro Macbeth negro da história do cinema americano (confere?). A fotografia marcante ficou a cargo de Bruno Delbonnel, o mesmo do excelente INSIDE LLEWYN DAVIS – BALADA DE UM HOMEM COMUM (2013), um dos melhores filmes dos irmãos Coen. Que os irmãos retornam. Juntos, eles são melhores. Indicações: ator, direção de arte e fotografia.

LICORIZE PIZZA

Muito provavelmente precisarei rever, pois assisti em uma sala com uma leve tremedeira na projeção, mas o suficiente para tirar o meu prazer de ver e me deixar com dor nos olhos ao final das mais de duas horas de exibição. Trata-se da terceira história de amor da carreira de Paul Thomas Anderson, e não dá para negar que LICORICE PIZZA (2021) é um filme cheio de momentos interessantes, de cenas memoráveis e que foge muito das convenções, em sua estranheza visual, narrativa e na construção dos personagens. Não sei se não senti uma maior conexão com a relação do casal de personagens por culpa da sala 7 zoada (nota mental: não pisar mais lá nos próximos dois anos) ou se é uma falta de sintonia entre mim e o cineasta no que se refere a questões amorosas – lembro que também não me senti "aceso" com EMBRIAGADO DE AMOR (2002) na época que o vi nos cinemas. Deixando um pouco a raiva de lado, impressionante como Bradley Cooper está bem e toda a sequência envolvendo o ator é muito boa. No mais, vou seguir ruminando o filme e quem sabe veja no futuro em outra sala que não me ofereça dor e aflição em vez de prazer. Indicações: filme, direção e roteiro original.

A FILHA PERDIDA (The Lost Daughter)

Uma bela estreia na direção de longa-metragem de Maggie Gyllenhaal. E uma escolha bastante arriscada adaptar o romance de Elena Ferrante, tão cheio de nuances e de complexidades no que se refere a questões envolvendo a maternidade, a carências afetivas e a sentimentos ambíguos. Em A FILHA PERDIDA (2021), temos Olivia Colman como uma professora de literatura comparada que está passando as férias na Grécia e situações de seu passado, feridas abertas, começam a vir à tona com muita força a partir do momento que ela se enxerga no lugar de uma jovem mulher na praia, com sua filha pequena. Ainda acho que o filme sofre um pouco no andamento e minha relação com a protagonista foi de distanciamento - talvez por eu não ser mãe, quem sabe. Por outro lado, já tive uma compreensão maior nos flashbacks da personagem, vivida por Jessie Buckley. Aliás, essa atriz deveria estar recebendo mais atenção. Eu diria, mais até do que a própria Colman. Ela foi o melhor elemento de ESTOU PENSANDO EM ACABAR COM TUDO, de Charlie Kaufman, e me fez prestar mais atenção ainda nela neste A FILHA PERDIDA. Em tempo, Dakota Johnson também está muito bem. Indicações: atriz (Olivia Colman), atriz coadjuvante (Jessie Buckley) e roteiro adaptado.

domingo, março 06, 2022

ESTRELA DITOSA (Lucky Star)



A ideia de que a arte é uma forma de imortalização da vida parece equivocada quando lembramos que até nosso planeta tem data de validade. E, por causa dos próprios humanos, uma data de validade que pode ser antecipada para bem mais próximo do que gostaríamos. Mesmo assim, pensar na arte como o mais próximo da imortalidade que temos nos traz um pouco de alento. Afinal, foi basicamente por isso que Shakespeare fez todos os seus sonetos de amor. E é para isso que muitos dos melhores filmes sobrevivem e seguem sendo vistos e revistos por diferentes gerações. Há alguns que são redescobertos. E há aqueles que renascem das cinzas.

Até já falei neste espaço de alguns filmes de Fritz Lang que foram dados como perdidos e encontrados muitas décadas depois em cinematecas de diferentes lugares do mundo (casos de DEPOIS DA TEMPESTADE e CORAÇÕES EM LUTA) e de vez em quando vêm à tona a possibilidade e a esperança de que possamos encontrar em algum lugar (talvez até no Brasil) a versão original sem cortes de SOBERBA, de Orson Welles. Também podemos lembrar de coisas que nunca mais serão vistas, mas é melhor não falar sobre isso para não ficarmos tristes.

Em vez disso, falemos de uma obra que foi reencontrada para nossa felicidade. ESTRELA DITOSA (1929), de Frank Borzage, é um caso bem singular. Por conta da Grande Depressão de 29, pela transição para o cinema falado e pela má distribuição do filme na época, essa maravilha se deu por perdida por muitas décadas. Só foi redescoberta no início dos anos 1990, depois de encontrada uma cópia (da versão silenciosa) em Amsterdã. Os novos intertítulos em inglês foram refeitos com base no roteiro original. Além do mais, dizem que a versão silenciosa é bem melhor que a sonora, a distribuída nos cinemas dos Estados Unidos - essa continua perdida. Borzage fez uma versão sonora com poucos diálogos e alguns efeitos sonoros, a pedido dos produtores, já que os espectadores americanos não queriam mais ver filmes mudos naquele momento de transição.

Claro que seria ótimo se tivéssemos as duas versões disponíveis, mas já fiquei muito feliz de poder ver essa versão linda. Até fui checar no livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer se o filme estava incluso, mas infelizmente não está (só há três filmes de 1929 e um deles nem é mudo – trata-se do primeiro sonoro do Hitchcock). De todo modo, é possível compreender que talvez seja necessário ainda algum tempo para que ESTRELA DITOSA entre com mais força nos cânones. Eu mesmo nem sabia de sua existência e por isso sou muito grato à curadoria da Versátil, que incluiu este e outro trabalho de Frank Borzage no box Melodrama no Cinema (espero que este box renda continuações). Confesso que, ao perceber que o filme era silencioso, fiquei um pouco desanimado, já que tenho por hábito ficar disperso em filmes sem diálogos. No entanto, isso mudou imediatamente assim que eu dei play e vi as primeiras imagens.

É impressionante quando a gente dá de cara com uma obra-prima. A gente já percebe nos instantes iniciais que está diante de um filme muito especial. O visual majestoso salta aos olhos e faz lembrar AURORA, de F.W. Murnau. Logo esse, que é talvez o mais alto que o cinema feito em Hollywood chegou na era silenciosa. Como se não bastasse, há a presença em ambos os filmes de Janet Gaynor, que em ESTRELA DITOSA está apaixonante como a jovem que conhece dois homens que trabalham em instalação de eletricidade em uma cidadezinha da Nova Inglaterra.

Esses dois homens funcionam como figuras opostas. Enquanto o preguiçoso e mulherengo Martin (Guinn Williams) se mostra cada vez mais de caráter duvidoso, seu subordinado Tim (Charles Farrell) é capaz de tomar o partido de Mary, a personagem adolescente de Gaynor, por causa da briga que ela estava tendo com Martin. Mas também é capaz de dar-lhe umas palmadas em seu bumbum quando descobre que ela enganara Martin com uma moeda – ela estava vendendo leite para os trabalhadores.

No poste de luz, ambos os rapazes descobrem que os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial e ambos vão para o front, ainda que por razões distintas. Martin vai à guerra por causa da fama das mulheres francesas, enquanto Tim tem motivos mais nobres. É patriota, acredita que é seu dever lutar por seu país. O problema é que a guerra lhe toma sua capacidade de andar e depois de dois anos ele volta para seu vilarejo, agora ficando o tempo todo dentro de casa, em sua cadeira de rodas. É nesse retorno que sua relação de proximidade com Mary volta a acontecer.

A relação de amizade vai se estreitando e se transformando em atração e amor. Principalmente a partir do momento em que Tim lava o cabelo dela (com ovos) e nota que ela é loira por debaixo de tanta sujeira, e quer também dar-lhe um banho, já que ela precisa de uns esfregões. No entanto, ao começar a tirar seu vestido, ele percebe que ela já tem um corpo de mulher e acha melhor que ela mesma tome o banho. A imagem dela se despindo é vista de maneira nebulosa, à distância, em segundo plano, e todo esse momento pode ser encarado como erótico e fetichista. Ao que parece, o fetichismo é algo presente na obra de Borzage, a julgar por alguns poucos textos que li a respeito do cineasta, e isso meio que me deixou mais interessado em seu trabalho.

Mas ainda que a história do casal, seja de maneira simbólica ou quase explícita, tenha esse conteúdo mais físico e do desejo, é uma história que também tem um conteúdo espiritual muito forte. Afinal, não deixa de ser a história de um milagre; a história de um amor que é capaz de curar corpo e alma, como os dois dizem na emocionante cena final, com aquela imagem fantástica de Mary agarrada às pernas de Tim. Antes disso, porém, há aquela sequência de Tim lutando contra a fraqueza das pernas para conseguir chegar até Mary, no meio da tempestade de neve, quando ela estava indo embora para se casar com Martin. E, no meio disso tudo, todos os momentos em que os dois se encontram são mágicos. ESTRELA DITOSA é pura poesia visual. 

+ DOIS FILMES

O MORRO DOS VENTOS UIVANTES (Wuthering Heights)

Há tempos me devia ver esta versão de Andrea Arnold para o clássico de Emily Brontë, até para ter o prazer de apreciar a beleza de Kaya Scodelario. E talvez até tenha achado melhor do que a versão de William Wyler. Neste O MORRO DOS VENTOS UIVANTES (2011) temos atores negros no papel de Heathcliff, e não um branco pintado com tinta escura. Além desses detalhes, há a força na direção de Arnold, que valoriza a sensualidade e o aspecto sensorial da natureza. Como não li o romance e faz tempo que vi o Wyler, não me lembrava do quanto o personagem enlouquece no final pela amada. Adorei. Um exemplar do ultrarromantismo mostrado de maneira áspera. Fiquei interessado em ver os filmes que ainda não vi de Arnold. Pena que são poucos.

O ÚLTIMO DUELO (The Last Duel)

Um dos melhores filmes de Ridley Scott dos últimos oito-dez anos, este O ÚLTIMO DUELO (2021) tem um recurso narrativo semelhante ao de RASHOMON, de Akira Kurosawa, apresentando a história por três diferentes pontos de vista: a história de uma mulher que é estuprada e desafia uma sociedade acostumada a silenciar esse tipo de violência. A mulher é vivida por uma Jodie Comer que parece ter despontado para o estrelato aqui, de tão magnética que está em cena. A duração do filme, cerca de duas horas e meia, passa até bem rápido e a cena final da batalha é de deixar o público nervoso. Há também o luxo de uma produção cara como essa, que nos leva para a França do século XIV. No mais, por mais que Matt Damon e Ben Affleck não sejam tão bons atores, Adam Driver compensa com seu brilhantismo de sempre.

sábado, março 05, 2022

BATMAN (The Batman)



Diferente de O ESQUADRÃO SUICIDA, o filme de James Gunn que parece ter adotado o artigo definido no título como forma de dizer que aquele sim é o esquadrão que conta e de se desprender do filme anterior de David Ayer, que foi muito mal recebido por público e crítica, usar o artigo definido “the” antes do nome do herói em The Batman pode remeter à primeira aparição do Homem-Morcego na HQ Detective Comics #27 de maio de 1939, quando ele apareceu como “o Batman”. Faz muito sentido que o novo BATMAN (2022), de Matt Reeves, faça essa alusão não apenas às origens do personagem, mas também ao momento extremamente pesado que se acercava o mundo às vésperas da Segunda Guerra Mundial e à consequente febre dos chamados filmes noir, que invadiram Hollywood na década de 1940 e que é fonte bebida nesta nova obra. 

Além do mais, nada mais lógico que seja a Warner a companhia que comprou os direitos da DC Comics, a companhia que cresceu e se tornou famosa a partir do sucesso dos filmes de gângster dos anos 1930, muitos deles estrelados por gente como James Cagney, Edward G. Robinson e Humphrey Bogart. Além do mais, como um herói de natureza mais urbana e escura, e vivendo em uma cidade corrupta e cheia de criminosos, algumas das melhores histórias do vigilante encapuzado se passam dentro desse universo dos gângsteres. Eis que Matt Reeves, que já havia feito os dois melhores filmes da trilogia Planeta dos Macacos (2014, 2017), e, diga-se de passagem, filmes bastante sombrios, resolve abraçar ainda mais a penumbra nesta nova releitura de um dos super-heróis mais populares e queridos de todos os tempos.

E o que aconteceria se, além de utilizar todo esse background, Reeves ainda se inspirasse na excelente HQ Batman - Ano Um, de Frank Miller e David Mazzucchelli, e ousasse trazer o o luto prolongado de Bruce Wayne de forma ainda mais depressiva, a ponto, inclusive, de usar uma canção do Nirvana (“Something in the Way”) como principal tema? Logo o Nirvana, uma banda que ficou marcada pelo suicídio de seu líder, Kurt Cobain. E assim é o Bruce Wayne/Batman de Reeves, encarnado por um Robert Pattinson que nunca sorri.

Tudo isso pode até parecer um detalhe, mas não é. Trata-se do próprio espírito adotado pelo realizador para a construção de sua nova Gotham City e de sua nova versão do herói atormentado. Inclusive, há até uma licença poética de Reeves e do corroteirista Peter Craig no que se refere às origens de Martha Wayne e sua passagem por clínicas psiquiátricas. Ou seja, o novo BATMAN é definitivamente um filme sobre depressão, esquizofrenia e outros problemas mentais. Até acho que esse clima de depressão e de opressão chega a contaminar a audiência e faz com que BATMAN seja um filme que passe muito longe de ser um feel-good movie. E aprecio e admiro a coragem tanto do realizador quanto da própria Warner, por ter dado carta branca para Reeves fazer um filme que pode desagradar uma audiência que esteja muito acostumada a filmes de super-heróis bastante divertidos e movimentados.

Sim, há a questão do andamento narrativo lento e da duração longa. Além de ser um filme que lembra mais as produções da Nova Hollywood dos anos 1970 em certos aspectos, BATMAN, se não fosse um PG-13 (classificação 14 anos no Brasil), seria ainda mais pesado e gráfico na violência. Como não pode ser muito gráfico, essa violência e esse clima denso fica no ar de maneira mais enviesada, mas nem por isso menos eficiente e incômoda.

Do ponto de vista da produção, Matt Reeves faz um trabalho quase artesanal em sua visão de uma Gotham City ainda mais suja, corrupta e deprimente do que já havíamos visto em quaisquer outros filmes do super-herói vigilante (até a fotografia adota esse tom sujo). E há escolhas muito bem feitas, como o detalhe da tinta preta sobre os olhos de Wayne de modo a tornar sua persona mascarada mais opressora para os bandidos. A utilização de uma voice-over que remete ao filme noir clássico também é acertada, até por não ser usada em demasia. Funciona mais para acentuar o tom triste de Batman/Wayne e o fato de que sua única razão para viver é vingar-se de criminosos, como aqueles responsáveis pela morte de seus pais.

Mas eis que o filme traz até uma problematização muito interessante para essa questão. E isso vem do principal vilão, o Charada (Paul Dano). Ele, que também é órfão, mas pobre, passa na cara de Wayne/Batman o fato de que o herói, por ser milionário, não sofreu tanto quanto aqueles órfãos desamparados que vivem em situação sub-humana, e que muito disso é responsabilidade do governo e da sociedade. Ou seja, temos um vilão que, por mais louco e malvado que seja (às vezes lembra o Jigsaw da franquia Jogos Mortais), é um vilão que tem consciência de classe e uma vontade compreensível de se vingar dessa sociedade que feriu a si e a muitos. E falando em uma cena específica, que baita cena aquela em que Dano, agora sem sua máscara de terrorista, fala repetidamente “Bruce Wayne” em conversa com Batman. Eis um exemplo de cena em tom over que é ótima justamente pelo tom, mas também, claro, pela excelente performance de Dano.

E há outros dois super-vilões clássicos do Batman presentes no filme. Colin Farrell está soterrado de maquiagem e irreconhecível como o Pinguim, um gângster clássico e que tem a intenção de comandar o crime organizado da cidade. E há Selina, a Mulher-Gato, vivida com beleza e naturalidade por Zoë Kravitz. Ela, além de tudo, é também o mais próximo de um interesse amoroso de Batman, por mais que o aspecto sempre depressivo do herói o deixe para baixo para se animar para relações amorosas – para tristeza de Alfred (Andy Serkis), que vê no suposto interesse de Wayne por Selina um bom sinal. Talvez o momento mais animador do casal seja na cena em que Batman consegue ver pelos olhos de Selina, através de uma câmera instalada em lentes de contato nos olhos dela. Os dois trabalham juntos para encontrar uma amiga (e também amante?) de Selina, raptada pela máfia.

Diria que BATMAN é um filme que cresce com o passar do tempo na memória afetiva, cresce ao pensarmos nele como obra cheia de coragem para abraçar o novo. Ao mesmo tempo, em um instante em que o mundo vive sob ameaça de uma nova guerra mundial, essa revisitação do clima pesado dos anos 1940 pode ser um sinal de que há um artista – e os artistas costumam funcionar como antenas – percebendo, ainda que inconscientemente, que há algo diferente no ar.

+ DOIS FILMES

OS MORTOS ESTÃO VIVOS! (L'Etrusco Uccide Ancora)

Confesso que meu interesse por este OS MORTOS ESTÃO VIVOS! (1972), de Armando Crispino, assim que peguei o box Giallo Vol. 11 se deu pela possibilidade de se tratar de um giallo com elementos sobrenaturais, talvez até mesmo com mortos-vivos, como dá a entender o cartaz americano, que parece que queria mesmo vender gato por lebre em sessões duplas que apresentavam filmes menores como este com outros um pouco mais conhecidos ou melhor produzidos. Ainda assim, por mais que eu tenha retomado a apreciação após meia hora, já que estava achando a trama meio confusa, gostei na retomada. Trata-se de um dos poucos gialli que vi em que a maior parte da trama se passa durante o dia. Há uma valorização da luz natural e da geografia do lugar (pequenas cidades italianas foram usadas como locação). Mas é sim um autêntico giallo, com assassino misterioso, novas vítimas surgindo ao longo da trama e aquela coisa de tentarmos adivinhar o responsável pelas mortes (eu adivinhei rapidinho). Das boas cenas, a que mais me agradou, e que achei brilhantemente dirigida, foi a da perseguição de carros em ruas muito estreitas. O detalhe é que o carro do protagonista (o americano Alex Cord) é um fusquinha todo batido, sujo e velho. Quanto à trama, ela segue a tradição de apresentar assassinos com complexos de Édipo. E do ponto de vista da exploração sexual, há apenas uma cena de nudez, com uma loira belíssima, Christiane Von Blank, que apareceria em um filme de Jesús Franco no ano seguinte.

CRIATURAS DA NOITE (Don't Be Afraid of the Dark)

Antes de falar um pouco de CRIATURAS DA NOITE (1973), de John Newland, quero deixar registrada a ótima qualidade de imagem deste telefilme na cópia da Versátil. Está tão boa a restauração que não parece nem filme para televisão antigo e as cores estão tão vivas que nem parece DVD. No mais, trata-se de um pequeno clássico que até já teve uma refilmagem em 2010 estrelada por Katie Holmes, que aqui ganhou o título de NÃO TENHA MEDO DO ESCURO. Este horror dos anos 1970 é mais arriscado ao mostrar as criaturas que atormentam e matam os moradores da casa, já que os efeitos técnicos do filme não são tão bons. Mas a atmosfera é tão bem administrada que isso pode ser relevado. Na trama, um casal compra uma casa velha, faz a reforma, mas depois eles veem que ali moram criaturas pequenas e muito perigosas, que passam a atormentar a mulher - é clichê sempre ter alguém que sofre e outras pessoas que não acreditam nela, mas é um clichê que até hoje é usado e funciona bem. Filme presente no box Obras-Primas do Terror 16.

terça-feira, março 01, 2022

EUPHORIA – SEGUNDA TEMPORADA (Euphoria – Season Two)



Nas últimas semanas estive meio doente. Acho que já contei por aqui. Suspeita de Covid e tal – cujos testes deram negativos. Talvez tenha sido “apenas” mais uma crise alérgica terrível e uma necessidade de o corpo descansar e recuperar a energia na marra, mas o fato é que nesse período quase tudo que eu assistia de filmes e séries me parecia sem graça. Acho que a única coisa que eu curtia de verdade era ler histórias em quadrinhos – de preferência de super-heróis – deitado na cama. É como se o meu eu-criança parecesse ainda mais presente e mais carente de afeto. Mas um afeto um pouco mais distante, já que não estava sendo a mais simpática das criaturas do planeta.

Pois bem. O meu respeito por esta segunda temporada de EUPHORIA (2022) é que, mesmo com meu corpo cansado, e tudo mais, eu fiquei muito entusiasmado com o final da temporada. Só depois que eu vi as várias críticas negativas que muitos fizeram à série e até passei a questionar minha capacidade crítica. Que, aliás, sempre foi de gosto duvidoso para muitas pessoas de natureza mais cerebral. A minha sorte é que em gêneros mais “derramados”, como o melodrama ou os filmes de horror mais pesados, eu posso me esbaldar nos sentimentos carregados sem medo de ser mal visto.

Mas o fato é que a minha relação com EUPHORIA mudou muito nesta segunda temporada. Quando vi aquele episódio magnífico de retorno, “Trying to Get Heaven Before They Close the Door”, que se passa quase que totalmente em uma festa que reúne boa parte dos personagens da série, eu percebi que estava, até então, focando minhas atenções apenas no romance entre Rue (Zendaya) e Jules (Hunter Schafer). E dois personagens passam a ser os queridos da audiência logo neste episódio: o traficante de drogas Fezco (Angus Cloud) e a personagem mais quieta e observadora da turma Lexi (Maude Apatow, filha do cineasta Judd Apatow com a atriz Leslie Mann). Os dois conversam e se descobrem no sofá da sala, de maneira muito sutil, mas de fazer brilhar os olhos. E talvez essa minha relação com a Lexi seja de identificação, seja pelo aspecto de espectadora dela, seja por ela apostar em um amor impossível.

Enquanto isso, a protagonista da série, Rue, havia caído de novo nas drogas depois que sua amada namorada Jules foi embora. Mas acontece tanta coisa neste primeiro episódio e a câmera passeia de maneira quase bêbada por aquele espaço, que não dá nem muito tempo de ficarmos torcendo pelo retorno das duas. Além do mais, do ponto de vista técnico, há algo que salta aos olhos nesta nova temporada, que é seu visual. Seu criador, Sam Levinson, que dirigiu todos os episódios, optou por usar um tipo de película que já não estava mais disponível no mercado desde 2013, a Kodak Ektachrome 35MM. Levinson entrou em contato com a Kodak para saber se havia filme suficiente para usar em todos os oito episódios da temporada. O resultado é essa lindeza de grão, de textura e de cor muito especial. Coisa que se espera de quem geralmente costuma fazer cinema e não televisão.

Mas o que mais me conquistou em EUPHORIA foi mesmo o quanto Levinson conseguiu materializar uma enorme ferida em carne viva em uma obra de arte pop. Mais do que nunca, a série é sobre a dor de viver. E é difícil medir a dor alheia e talvez seja fácil ver a dor de Rue muito maior do que a dos demais – Zendaya está gigante neste que deve ser o papel de sua vida. Porém, como Rue passa boa parte da série sob efeito de drogas, talvez outras pessoas sintam mais a dor de viver do que ela. Nate, Fezco, Cal, Cassie (imagina o quanto essa menina sofre!), Jules, Maddy, a mãe de Rue (nunca devemos nos esquecer da dor das mães!).

E a temporada termina de maneira tão intensa que é preciso dividir o final em duas partes, criando suspense não apenas através das expectativas, mas através das idas e vindas no tempo, dos flashbacks e flashforwards. E a peça de teatro da Lexi é muito representativa dessa ferida aberta. A jovem observadora se desnuda a si e aos outros de tal forma que chega a causar uma sensação mista de empolgação com constrangimento. Especialmente no momento da tentativa de Cassie de barrar o espetáculo e brigar com a irmã pelo modo como ela a pinta em sua série. E com alguma razão. Afinal, a trajetória de Cassie, de alguém que é maltratada e vista como a gostosa que não merece respeito, que sofre no dia do aborto e agora sofre por estar apaixonada por um sujeito extremamente tóxico não é brincadeira. E Maddy ainda adianta para ela na cena do banheiro: “isso é só o começo”.

A tentação de falar mais dos episódios finais é maior pois eles estão mais frescos em minha mente, mas não dá para esquecer de alguns momentos bastante especiais da série, como o episódio “Ruminations: Big and Little Bullies”, que nos apresenta à juventude de Cal (Eric Dane), o pai de Nate (Jacob Elordi). Embalado pelo melhor do rock oitentista, ficamos sabendo da relação de amor e amizade que o jovem Cal teve e que foi interrompida por causa da gravidez da namorada, que fez com que ele abandonasse uma vida mais abertamente gay para se sujeitar a uma vida dupla sob a fachada de uma família normal.

Esse jogo da série com o tempo já aparece no primeiro episódio, que conta a história do jovem Fezco e sua difícil infância; depois também teremos episódios focados nos demais personagens. E há aquele episódio que pode trazer mais um Emmy para a Zendaya, "Stand Still Like the Hummingbird", em que sua personagem é confrontada pela família, que descobre seu uso diário de drogas e resolve fazer uma intervenção. A intervenção resulta em violência e fuga da personagem. Fuga da polícia, dos amigos, enquanto seu corpo passa pela máquina de moer a alma que é a crise de abstinência.

Enfim, esta segunda temporada pode não ser perfeita e minhas emoções podem ter nublado tudo, e, ao que parece, houve muitos problemas nos bastidores entre diretor e parte do elenco, mas acho que prefiro essa coisa mais caótica e cheia de pulsação do que os roteiros bem amarrados que resultam em obras frias. Pode ser uma desculpa, mas é uma desculpa sincera.

+ DOIS FILMES

BELLE (Ryû To Sobakasu No Hime)

Primeiro filme de Mamoru Hosoda que vejo e fiquei com sentimentos mistos, talvez por achar um pouco aborrecidas as cenas no universo virtual. Mas como gostei muito dos personagens, da temática e da excelência técnica, fica a impressão de ter sido um privilégio poder ver uma obra como essa, em sua língua original, no cinema. Na trama de BELLE (2021), garota muito tímida, com pouca autoconfiança e que sofre ainda com o luto da morte da mãe se vê como uma estrela da música ao adotar o avatar "Belle" na rede social U. É interessante que o diretor adota um tipo de desenho, mais tradicional, para as cenas no mundo real e outro, mais moderno, para o mundo virtual. Gosto do encaminhamento do filme, por mais que eu tenha achado aquele finalzinho parecido com teatrinho de escola infantil. De todo modo, imagino que o longa é mais destinado a um público mais jovem mesmo, embora sua sofisticação alcance públicos de todas as idades. Adorei a cena mais bem-humorada do filme, capaz de arrancar boas gargalhadas a partir da tradicional timidez do povo japonês, ainda mais sendo ele um adolescente.

THE BEATLES: GET BACK - O ÚLTIMO SHOW (The Beatles: Get Back - The Rooftop Concert)

Mesmo não sendo mais nenhuma novidade para quem já teve a experiência completa de THE BEATLES – GET BACK (2021), de Peter Jackson, esta versão para cinema entitulada THE BEATLES: GET BACK – O ÚLTIMO SHOW (2022), como o próprio nome diz, conta apenas com o show no telhado, mas intensifica o nosso amor por esse momento. Afinal, uma tela de cinema, ainda mais sendo IMAX, tem esse poder. E quando traz música boa, então, nem se fala. Ainda lamento que tenham sido poucas as canções tocadas no show, mas não tanto quanto na primeira vez que assisti. Na primeira vez que John canta "Don't let me down" quase choro, mas foi mais por estar me dando conta da união harmônica da banda naquele momento, apesar de todos os entraves e do fim próximo. "One After 909" segue sendo a canção mais animada e mais divertida, a guitarra de "I've Gotta a Feeling" ganha um peso monstruoso no cinema, e "Dig a Pony" sempre me emociona. Alem do mais, “Get Back" virou aquela canção que eu nem gostava, mas que passei a amar depois de ver o documentário.