terça-feira, fevereiro 21, 2023
HOMEM-FORMIGA E A VESPA – QUANTUMANIA (Ant-Man and the Wasp – Quantumania)
Engraçado como a nossa recepção com os filmes tem muito a ver com nossa expectativa. Fui olhar as produções da chamada quarta fase da Marvel e os títulos que mais criaram expectativas foram HOMEM-ARANHA – SEM VOLTA PARA CASA, de Jon Watts, e DOUTOR ESTRANHO NO MULTIVERSO DA LOUCURA, de Sam Raimi. E de fato são filmes que guardam alguns momentos memoráveis, mas que não demora para ficarem nublados em nossa memória afetiva. Por outro lado, dois títulos um bocado apedrejados apedrejados, como THOR – AMOR E TROVÃO, de Taika Waititi, e PANTERA NEGRA – WAKANDA PARA SEMPRE, de Ryan Coogler, já me agradaram em mais aspectos. E olha que não gostei dos filmes anteriores do Thor e do Pantera, mas, por algum motivo, enxerguei qualidades ou pelo menos muita diversão nesses filmes.
E muita diversão era o mínimo que poderia se esperar de HOMEM-FORMIGA E A VESPA – QUANTUMANIA (2023), de Peyton Reed, filme que abre a quinta fase da Marvel no cinema (e na televisão). Os dois primeiros títulos do Homem-Formiga são bem divertidos, ambos dirigidos também por Reed, que havia saído de interessantes comédias no início da carreira e que acabou “se vendendo” para a Marvel. Ele tem no currículo títulos muito legais, como ABAIXO O AMOR (2003), SEPARADOS PELO CASAMENTO (2006) e SIM SENHOR (2008). A partir de HOMEM-FORMIGA (2015) não se soube de outros trabalhos dele que não fossem da corporação Marvel/Disney. Acho isso uma pena, e é pior ainda quando a essência do seu humor se apresenta totalmente perdida no novo filme.
Neste terceiro título do Homem-Formiga (e da Vespa, sendo que a Vespa é a personagem da família menos importante na história!), talvez por ter a obrigação e o engessamento de ser um filme para abrir a nova fase e introduzir de maneira mais definitiva o super-vilão da vez, Kang, o Conquistador (Jonathan Majors), que já havia sido visto, mas sem ter seu nome citado, na primeira temporada de LOKI. Se na série do deus da mentira essa ideia de universos alternativos foi muito bem trabalhada, neste filme a ideia da pluralidade a partir da probabilidade se apresenta pelo menos em dois momentos. E o próprio universo quântico aparece como sendo um espaço muito plural e com referências a filmes de ficção científica dos anos 1950 e ao universo de Star Wars. Aliás, quando começa, eu até me animo com o filme. Infelizmente a trama não tem força e há um momento que deveria trazer pelo menos um pouco de entusiasmo para a plateia, que é o momento da revolução do povo de lá contra Kang, a partir da ajuda da “família formiga”.
Na trama, Cassie (Kathryn Newton), filha de Scott Lang (Paul Rudd), descobre uma maneira de se comunicar com o universo quântico. Acontece que isso foi um erro terrível, já que Janet (Michelle Pfeiffer) havia estado presa nesse universo por 30 anos e não contou os perigos que lá existem. O que é um erro do roteiro, talvez, mas que eu relevo em função da trama. Assim, esse universo acaba sugando os cinco membros da família, incluindo também Hope (Evangeline Lilly) e o Dr. Hank Pym (Michael Douglas), para lá.
Enquanto Michelle Pfeiffer ganha o status de protagonista na primeira metade da narrativa, já que ela é a pessoa que mais conhece aquele universo, dita as regras e apresenta os amigos e inimigos, o próprio Paul Rudd fica muito apagado. Além do mais, ver o filme inteiro se passando em cenários de fundo verde cansa um bocado. É quase como a experiência de AVATAR – O CAMINHO DA ÁGUA, só que em 3D muito vagabundo e efeitos menos sofisticados. Bom, pelo menos não é insuportável de ver quanto o filme de Cameron. O elenco carismático ajuda um pouco a tornar a jornada um pouco mais satisfatória. Enquanto isso, uma música genérica (Christophe Beck é o compositor) torna a experiência ainda menos interessante.
Ao final da sessão, com a falta de entusiasmo do público (que batia palmas até para os filmes mais fracos da Marvel), já fica claro o cansaço dessas produções construídas em esquema industrial e sem o interesse no principal: criar um bom filme, independente de estar ou não atrelado a um universo compartilhado. Para este ano temos mais dois títulos: GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3, de James Gunn, e THE MARVELS, de Nia DaCosta. Mais uma vez, não espero nada deles.
+ DOIS FILMES
M3GAN
Talvez não seja regra, mas é bom ficar com um pé atrás quando um filme for "apenas" produzido por James Wan, e não dirigido por ele. Há exceções, mas não creio que M3GAN (2022), de Gerard Johnstone, esteja entre elas, ainda que seja, sim, um filme que se assiste com interesse e que lida com o velho tema do homem (no caso, uma mulher) que brinca de deus, ao criar uma inteligência artificial super evoluída, e que acaba causando uma série de problemas. M3GAN é ficção científica com terror, mas com muitos momentos de humor bizarro. E talvez esse humor, que parece ser um indicativo de que seus criadores não o levam tão a sério, seja seu maior trunfo. Tanto que o sucesso de público já garantiu uma continuação.
PINÓQUIO POR GUILLERMO DEL TORO (Guillermo del Toro's Pinocchio)
Acho que meu problema com o filme foi a dificuldade de me envolver com o drama dos personagens, o que com frequência acontece com animações mais infantis, embora esta esteja também muito interessada em agradar aos adultos. O interessante desta nova versão é que há várias mudanças na história original, ou nas histórias que são frequentemente contadas em outros filmes. Justamente a parte que me deixou assombrado, quando criança, ficou de fora dessa versão, que parece trazer uma espécie de racionalidade para a magia da madeira que ganha vida. Mas acredito que há uma coisa de que eu gostei e comprei no final, que foi o fato de Pinóquio passar a ser amado pelo que ele é e sair do estigma de moleque que vive entrando em encrenca para desespero do pai. A animação em stop motion de PINÓQUIO POR GUILLERMO DEL TORO (2022), assinada por del Toro e Mark Gustafson, dá um ar bonito de imperfeição e a criação do Pinóquio foi muito feliz em aproveitar as características da madeira.
sábado, fevereiro 18, 2023
TEUS OLHOS MEUS
Acho que preciso lidar melhor com questões relativas à exposição para os outros. No meu ambiente virtual, no blog, em geral eu costumo falar aquilo que penso, embora de uns anos para cá tenha me policiado para filtrar algumas coisas que poderia pensar. São novos tempos e tempo também de repensarmos aquilo que deve ser falado. No caso, escrito. Pensei nisso agora pois ando preocupado com dois textos que preciso entregar para veículos importantes, textos de encomenda que julgo serem importantes, tanto por eu respeitar muito as pessoas que os pediram, quanto porque eles serão registrados em papel também e eu quero dar sempre o melhor, ficar esperando o dia mais inspirado etc, mesmo sabendo que nem tudo é inspiração. E é por causa disso que tenho tido menos tempo para escrever para o blog. Hoje, por acreditar que não será um dia tão produtivo assim, vou tentar escrever um texto sobre um filme relacionado a um dos textos de encomenda. Deixando claro que, “texto de encomenda” não quer dizer que não seja texto tão pessoal quanto os que escrevo para o blog.
Por causa do texto sobre CANASTRA SUJA (2016), filme cujo texto com as primeiras impressões pode ser lido aqui no blog em postagem de 2018, estou conhecendo um pouco mais sobre seu diretor, Caio Sóh. Não sabia quem ele era até então. CANASTRA SUJA já era seu quarto longa-metragem e foi lançado de maneira muito independente, apesar de ter no elenco astros de primeiro escalão num filme que parece até um pouco deslocado no tempo. Lembra muito as adaptações para o cinema de Nelson Rodrigues rodadas nos anos 1980. A impressão que tenho, aliás, é que hoje em dia as pessoas não estão mais preparadas para a porrada que é o texto do Nelson.
Pois bem. Cheguei então em TEUS OLHOS MEUS (2011), primeiro longa-metragem de Sóh. Uma coisa interessante é que o diretor não começou com um curta, como geralmente a maioria dos diretores preferem, mas logo com um longa. Em entrevista que vi recentemente no YouTube, ele conta que as pessoas diziam: puxa, por que você não começa com um curta? Ele dizia: porque a minha história é longa. Tem que ser um longa. E já começo admirando também o fato de que ele fez esse filme com um orçamento de apenas mil reais. Não sei se isso é lenda, mas acredito nisso. A câmera usada não é das melhores e a fotografia, pelo menos a disponibilizada na cópia para o YouTube não é uma das maiores preocupações. E, de certa forma, gosto disso. Gosto como seu interesse maior, a construção dos personagens e a busca por uma narrativa fluida e interessante, é afinal o que se destaca.
E também gosto como é bem a cara do primeiro filme de um jovem diretor, cheio de angústias, cheio de ideias, e esse conjunto de angústias e ideias se apresenta na figura do personagem de Emilio Dantas, chamado Gil. Ele é um jovem rebelde e que adora escrever nas paredes pensamentos que lhe surgem na cabeça, como se aquilo fosse uma necessidade tão grande quanto comer, beber ou fazer suas necessidades. Na entrevista, soube que Caio Sóh era (ou é?) esse sujeito que também tinha esse hábito de escrever nas paredes, até mesmo nas paredes das casas dos amigos. Não só em paredes, ele dizia, mas em qualquer papel que estivesse pelo caminho. Podia ser papel higiênico até. Aliás, sobre essa coisa de escrever nas paredes, acho que já devo ter contado por aqui que aprendi/descobri a ler escrevendo meu nome nas paredes da minha casa. Logo, houve um pouco de identificação com o personagem/autor nesse sentido.
Pois bem. Gil mora com os tios numa casa simples. Paloma Duarte é a tia carinhosa; Roberto Bomtempo é o tio que não tem muita paciência e não curte nada aquele sobrinho que chega bêbado e não estuda e nem trabalha. Gil mora com os tios pois a mãe dele morrera vários anos atrás. Mas a convivência não é muito boa. E temos o outro protagonista, Otávio (Remo Rocha, que aparece numa cena engraçada e tensa de CANASTRA SUJA), um homem mais velho que Gil e que mora com o namorado num apartamento luxuoso, mas que já está cansado das crises de ciúme do tal namorado. Numa discussão, ele sai de casa à noite e acaba encontrando Gil num barzinho. Gil não tinha dinheiro nem para uma dose de vodca, mas Otávio puxa conversa com ele (sobre o ato de compor músicas) e oferece uísque à vontade. É o começo de uma noite memorável entre os dois, uma amizade que nasce do respeito mútuo, e que se encaminha para um beijo na praia. Beijo problematizado por Gil: eu não sou viado, diz ele repetidamente, perturbado.
Uma das coisas que eu acho muito interessante nessas cenas da noite entre esses dois personagens que acabaram de se conhecer, e que geram um vínculo imediato, é que os diálogos são todos recortados com a edição. Diálogos recortados e uma câmera na mão bastante tremida para ressaltar um tipo de cinema mais próximo do realismo. E esse realismo obtido (não sei se de maneira deliberada) acaba se encontrando com um tom de fábula mitológica, quando o filme apresenta o seu final.
O final é outra coisa que se destaca no filme, pois foi alvo de crítica até mesmo na hora da distribuição. TEUS OLHOS MEUS não chegou nem a ser distribuído em circuito brasileiro, ficando apenas arquivado e depois exibido na televisão. E olha que o filme chegou a ganhar prêmios no Los Angeles Brazilian Film Festival, levando as estatuetas de melhor filme, roteiro (do próprio diretor), ator (Emilio Dantas), atriz coadjuvante (Paloma Duarte) e música – Maria Gadú, uma das autoras da trilha, participa na música e em pontas no filme.
Ou seja, o filme poderia ter se beneficiado de uma exposição maior, sendo visto por um público maior, e em vez disso ficou meio invisível. Ainda sobre o final, é interessante como, se compararmos com CANASTRA SUJA, Caio Sóh parece um daqueles roteiristas que se apresentam como um deus cruel e sádico nas histórias de suas criações. Por mais que pareça amar muito seus personagens também. Amando ou detestando TEUS OLHOS MEUS, é difícil desgrudar os olhos do filme. Isso por si só já é um mérito e tanto. Ainda mais levando em consideração que a experiência que o diretor havia tido era nos estúdios da Rede Globo, no tempo que auxiliava Jayme Monjardim em telenovelas. TEUS OLHOS MEUS surgiu da necessidade de criar algo seu, algo próprio. Nem que essa criação tivesse que nascer da forma mais barata possível e com a ajuda e a gentileza dos amigos.
+ DOIS FILMES
A VIDA SÃO DOIS DIAS
Uma das coisas admiráveis em Leonardo Mouramateus é que neste seu segundo longa-metragem ele não muda tanto assim, no que se refere à experimentação comumente adotada em seus curtas. Em A VIDA SÃO DOIS DIAS (2022), há uma história um pouco mais linear sobre um rapaz português que vem ao Brasil para uma coletiva de imprensa sobre um livro escrito pelo irmão gêmeo. Mais do que a história, o que conta é a ambientação que o diretor cria nessa sua comédia sobre criatividade, que talvez seja um meio de imprimir mais leveza para o modo como o público vê os seus filmes. Em vez de herméticos, eles podem ser vistos como divertidos. No caso deste filme, senti um problema de ritmo nos dois últimos capítulos (são cinco, bem demarcados e nomeados). Mesmo assim, acho que vou ficar pensando sobre o filme por uns dois dias, pelo menos.
O CLUBE DOS ANJOS
Antes de mais nada, já chama a atenção o incrível elenco masculino (sim, pois praticamente o filme é um clube do Bolinha, mas isso tem tudo a ver com o espírito do próprio clube do título). Otávio Müller, Matheus Nachtergaele, Paulo Miklos, Marco Ricca, Augusto Madeira e André Abujamra já são nomes que justificam a espiada neste que parece ser o nosso A COMILANÇA (quem nunca viu o filme de Marco Ferreri?). Depois, há o aspecto mais sombrio da trama, envolvendo um cozinheiro enigmático (Nachtergaele) que começa a fazer refeições divinas para o clube dos 7 e, aos poucos, um por um, eles vão morrendo após o jantar do mês. Baseado em obra de Luís Fernando Veríssimo, O CLUBE DOS ANJOS, de Angelo Defanti, ganha contornos de filme de horror perto de seu final, embora eu veja o final como um dos pontos menos interessantes da história. Sobre esse aspecto de horror enfatizado por fotografia, iluminação, maquiagem, é sensacional uma cena em que Miklos aparece com uma expressão cadavérica. Um desses filmes que pouca gente sabe da existência, mas que faria muito sucesso se passasse na televisão aberta, por exemplo.
domingo, fevereiro 12, 2023
TRÊS MÉDIAS E DEZ CURTAS
A BBS E A NOVA HOLLYWOOD (BBStory - An American Film Renaissance)
Documentário em média-metragem (47 minutos) presente no box O Cinema da Nova Hollywood 3. É muito bom poder ouvir das pessoas envolvidas sobre o momento e as circunstâncias que levaram à criação de alguns dos filmes mais importantes da Nova Hollywood, a partir do sucesso de SEM DESTINO (1967) e da recepção menos calorosa de OS MONKEES SOLTOS (1968). Em A BBS E A NOVA HOLLYWOOD (2010), de Greg Carson, percebi o quanto Jack Nicholson foi importante não apenas como ator, mas como criador, diretor, roteirista e até montador nos filmes da companhia BBS Productions, fundada por Bob Rafelson, Bert Schneider e Stephen Blauner. O documentário destaca principalmente CADA UM VIVE COMO QUER (1970) e A ÚLTIMA SESSÃO DE CINEMA (1971), mas há destaque também para O DIA DOS LOUCOS (1972) e para os menos lembrados O AMANHÃ CHEGA CEDO DEMAIS (1971) e REFÚGIO SEGURO (1972). Entre os entrevistados, gosto muito dos depoimentos do próprio Nicholson, de Ellen Burstyn e de Bob Rafelson, com sua história divertida sobre Nicholson não querer chorar numa cena-chave de CADA UM VIVE COMO QUER.
LE FRANC
O que mais me deixou impressionado com LE FRANC (1994), de Djibril Diop Mambéty, foi minha ignorância em perceber o quanto havia países ainda vivendo num grau tão grande de miséria em plenos anos 1990. O diretor do clássico TOUKI BOUKI – A VIAGEM DA HIENA conta neste seu média-metragem a história de pessoas que moram numa espécie de grande favela próxima a um lixão, que por sua vez é também próximo do mar. O personagem principal é um homem que deve o aluguel da casa e aposta um dinheiro que encontrou num bilhete de loteria. O filme é tão envolvente que me peguei com raiva do personagem, pela falta de inteligência em lidar com as situações, mesmo quando a sorte parece finalmente bater à sua porta. Mas o mais bonito (e triste) é que seu sonho é também muito modesto: fazer sucesso tocando o instrumento musical daquele lugar do Senegal que é muito simples, uma espécie de caixa que funciona tanto como instrumento que simula cordas quanto de percussão. O final me deixou na dúvida se o simbolismo foi crítico ou não às intenções do protagonista.
A PEQUENA VENDEDORA DE SOL (La Petite Vendeuse de Soleil)
Lindo filme sobre garota com deficiência física que resolve trabalhar como vendedora do Soleil, o jornal do governo senegalês. A PEQUENA VENDEDORA DE SOL (1999, foto acima) funciona como um contraponto interessante de LE FRANC. Talvez seja uma obra mais otimista, embora se veja também a maldade humana muito presente, principalmente nos garotos que insistem em maltratar os personagens deficientes, casos da garotinha protagonista e de um jovem cadeirante que ganha uns trocados tocando no seu rádio as FMs que lhe pedem para ele tocar. É interessante como esses filmes lidam com aquilo que é mais urgente nessa sociedade, o dinheiro, para que se possa sobreviver com um pouco mais de dignidade, e por isso mesmo parecem tão tocantes. Há momentos de dor e de ternura neste último trabalho na direção de Djibril Diop Mambéty. Memorável a cena da garotinha na delegacia.
AFRIQUE SUR SEINE
Pode-se considerar este filme como um exemplar da pré-história do cinema africano, já que a produção é totalmente francesa e se passa em Paris, mostrando imigrantes africanos morando na capital francesa. O texto em AFRIQUE SUR SEINE (1955), de Mamadou Sarr e Paulin Vieyra, exalta a riqueza e a beleza de Paris, mas é bem possível perceber que há ali um pouco de ironia por parte do narrador, levando em consideração que as riquezas desse país ainda vinham da exploração de suas colônias. Ainda assim, achei o filme pouco rico do ponto de vista cinematográfico, funcionando mais como um registro histórico importante de cineastas que posteriormente fariam filmes (como diretores ou como atores) em seus países de origem.
EU TE AMO É NO SOL
Retrato aparentemente simples de uma relação entre duas jovens mulheres, que traz mais coisas enriquecedoras nas entrelinhas. Na história de EU TE AMO É NO SOL (2022), de Yasmin Guimarães, jovem reencontra sua namorada, que agora mora num lugar distante e frio (o filme nunca diz que lugar é esse), e passam a morar juntas. É interessante notar as escolhas da diretora nesse pequeno espaço de tempo de 15 minutos de metragem. Por vezes, a diretora prefere mostrar uma ou outra das moças sozinha, em uma situação mais de solidão, do que as duas juntas, embora haja também momentos delas juntas em celebração e intimidade. Talvez a força do filme esteja justamente nesses pequenos detalhes que são de escolhas inusitadas, como mostrar uma delas olhando as flores em uma tomada rápida, a cena do copo quebrado, ou a cena final da janela do apartamento, cujo significado ainda permanece um mistério para mim.
FANTASMA NEON
Musical que nos apresenta a um rapaz que faz entregas por aplicativo em sua bicicleta e sonha em ter uma moto. Há belas coreografias, canções diversificadas, um trabalho de direção de arte caprichado (destacando sempre a cor vermelha) e momentos revoltantes, com frequência. A melancolia preenche o filme do início ao fim, como se não houvesse uma solução para essa vida, pelo menos num futuro próximo. FANTASMA NEON (2021), de Leonardo Martinelli, estreou mundialmente no Festival de Locarno, tendo ganhado o Leopardo de Ouro de melhor curta-metragem. Aliás, isso é outra coisa revoltante: mesmo sendo um filme premiado, dificilmente este trabalho será visto por um grande público. Algo precisa ser feito para que os curtas ganhem maior visibilidade.
INFANTARIA
Quando vemos as primeiras imagens de INFANTARIA (2022), de Laís Santos Araújo, já percebemos que se trata de um filme diferente. As cores se destacam, em especial cores que remetem à feminilidade infantil. Temos basicamente quatro personagens. Uma mãe (1) que está preparando o aniversário da filha (2) de dez anos de idade e que também lida com o filho (3) um pouco mais velho e com o surgimento de uma jovem de 16 anos (4) que aparece para resolver um problema que lhe aflige. O filme garante sua força no modo como trata a situação da adolescente e o distanciamento que há entre os universos masculino e feminino. Mais do que um filme que trata do amadurecimento de jovens meninas, "Infantaria" lida com o patrulhamento masculino em relação ao corpo feminino. E faz isso de maneira muito sensível e inteligente.
XAR - SUENO DE OBSIDIANA
A sinopse diz o seguinte: "Ao despertar de um sonho de obsidiana, o jovem Maya Edgar Calel realiza um ritual artístico na Bienal de São Paulo. Entre aspirações e memórias, seu percurso espiritual vai conduzi-lo para ser incorporado ao seu animal de poder". Costumo às vezes buscar as sinopses de modo a compreender um pouco melhor a obra, quando ela me foge um pouco à compreensão ou necessita de uma revisão. O que ficou na primeira impressão de XAR - SUENO DE OBSIDIANA (2022), de Edgar Calel e Fernando Pereira dos Santos, curta falado em outra língua (maia?) é que há um embate entre o espírito da natureza próprio do indígena, único personagem presente, e aquela arquitetura enorme e totalmente artificial onde ele está ao mesmo tempo abrigado (da chuva) e aprisionado. Suas palavras, em voice-over, são tristes e poéticas e as imagens são bem pensadas pelos dois diretores.
MUTIRÃO: O FILME
Gosto quando certos projetos originais como este são ao mesmo tempo simples e fáceis de serem realizados. Claro que a menina que narra as imagens tem uma graça toda própria, mas o filme em si é sobre a percepção dela das imagens de um mutirão nos anos 1980 que resultará na construção da casa onde ela mora. E uma coisa que ela percebe, e que ela percebe que os adultos não percebem, é a presença de crianças nas fotos. Então, o filme não seria o mesmo, obviamente, se fosse narrado por um adulto. Até porque as fotos não têm nada de muito especial, a não ser para as pessoas que ali moram ou que conhecem quem está retratado. MUTIRÃO: O FILME (2022), de Lincoln Péricles, é um filme que chama à reflexão para o nosso momento presente como resultado de ações do passado; de como certas ações precisam ser feitas sem permissão do estado; e de como pensar nas crianças é extremamente importante.
MEIO ANO-LUZ
Gosto de estar acompanhando a carreira de Leonardo Mouramateus desde MAURO EM CAIENA (2012) e perceber o quanto seus filmes têm sensibilidades tão singulares quanto distintas, à medida que ele vai criando e pensando novas situações. Apesar de já ter dois longas em sua carreira, ANTONIO UM DOIS TRÊS (2017) e o novo A VIDA SÃO DOIS DIAS (2022), o curta-metragem parece ser o espaço mais adequado para suas experimentações, por causa da maior liberdade que lhe é característica. Na trama de MEIO ANO-LUZ (2021), o próprio Mouramateus encontra uma carteira no chão e, conversando com o amigo Mauro, procura decifrar a identidade da dona da tal carteira, ao mesmo tempo que refletem sobre as origens dos nomes das ruas onde estão e possibilidades que parecem saídas de filmes de ficção científica. O barato do filme é que passa uma paz muito boa ver as imagens das pessoas andando pela rua, enquanto ouvimos a conversa dos dois.
SOLMATALUA
Um filme que dói ver, por mais que algumas imagens sejam cifradas para quem não conhece suas origens, afinal, não se trata de um vídeo didático, mas uma obra que prima pela liberdade. Liberdade, uma palavra importante. A liberdade que é tirada de um dos narradores, outrora rei na África, e agora escravizado numa terra estrangeira e hostil. Do mesmo diretor, Rodrigo Ribeiro-Andrade, do celebrado A MORTE BRANCA DO FEITICEIRO NEGRO (2020), SOLMATALUA (2022) também trabalha imagens que encantam e atordoam. Ora imagens do passado, ora imagens criadas para enfatizar uma beleza plástica da natureza que encontra consonância com os poemas e as canções pretas.
NÃO VIM NO MUNDO PARA SER PEDRA
Que lindo este filme em homenagem a Grande Otelo, um dos nossos maiores atores. A opção do diretor por trazer à tona entrevistas que o ator deu a programas de televisão importantes ajuda bastante a pensarmos seus gestos e suas respostas, que unem a simplicidade e a grandeza. A pergunta que costumavam fazer era talvez complicada de ser respondida, sobre uma possível identificação com Macunaíma, o chamado herói sem nenhum caráter, e a sua comparação com o povo brasileiro. NÃO VIM NO MUNDO PARA SER PEDRA (2022), de Fabio Rodrigues Filho, vai fundo nessa questão e apresenta, em recortes, vídeos e trechos de filmes que, sem dar respostas prontas, cutucam nosso espírito e a história racista de nosso país. Muito bonitas as cenas em silêncio e de arrepiar a música escolhida para encerrar o filme.
MANHÃ DE DOMINGO
O filme já chama a atenção pelo plano fixo que vemos, que denuncia claramente que a atriz é uma pianista de fato (Raquel Paixão). Uma mulher preta toca Chopin e na parede vemos um cartaz da Nina Simone. Seu gato preto permanece quietinho em cima do piano. Uma imagem linda de ver e de ouvir. Depois vemos que ela tem um espectador, mas talvez isso não seja tão importante assim, a não ser para nos apresentar a sua intimidade e a suas preocupações a respeito de uma apresentação futura. MANHÃ DE DOMINGO (2022, foto acima), de Bruno Ribeiro, premiado com o Urso de Prata em Berlim, tem uma sofisticação visual que se percebe desde o primeiro plano e que assim permanece até o último. Não é um filme de muitos diálogos, é mais de observação e apreciação visual, mas é claramente um filme de resistência e luta que passa longe de ser panfletário. Não que isso fosse um problema.
sexta-feira, fevereiro 10, 2023
OS BANSHEES DE INISHERIN (The Banshees of Inisherin)
Uma das recordações mais bonitas que guardo é a do funeral do meu avô. Como ele foi uma pessoa muito querida, notava-se no ar o carinho que todas aquelas pessoas presentes em sua despedida nutriam por ele, por sua história de vida, pelo seu bom humor. Eu costumava dizer que gostava mais de meu avô que de meu pai, por exemplo, embora a comparação possa ser injusta. Afinal, as pessoas são diferentes. Mas ver aquelas pessoas batendo palmas para o meu avô enquanto os homens finalizavam sua sepultura me deixou muito comovido e acreditando que sua passagem pela Terra foi para trazer luz, bondade e um exemplo a ser seguido, que valia a pena ser bom, fazer o bem. Meu avô não era letrado e não deixou nada escrito. Nenhum poema, conto ou canção (embora ele adorasse tocar violão). Mas isso faz de sua passagem por esse mundo menos importante? De um ponto de vista mais frio, e analisando as obras deixadas para a posteridade, talvez sim. Esse é um dos pontos que OS BANSHEES DE INISHERIN (2022), quarto (e melhor) longa-metragem de Martin McDonagh, traz.
Filmes sobre amizades foram se tornando frequentes ultimamente. Já havia um punhado na velha Hollywood (Howard Hawks explorava bastante, por exemplo), mas a partir da Nova Hollywood esses exemplares pareceram aumentar, já que o foco passou a ser mais nos personagens do que nas tramas. Mais recentemente, até criaram o termo bromance, para falar de amizades masculinas tão carinhosas que se aproximam de um romance. O que temos neste filme de McDonagh talvez possamos chamar de bromance tóxico. E eu jamais podia imaginar o quanto isso mexeria comigo. Acho que por eu valorizar muito minhas relativamente poucas amizades verdadeiras.
Na trama, Colin Farrell é Pádraic Súilleabháin, um sujeito que mantém uma amizade duradoura com um homem mais velho que ele, Colm Doherty, vivido por Brendan Gleeson. Acontece que, em determinado dia, Colm decide não falar mais com Pádraic. O rapaz, que trabalha como pastor de bois, não entende o motivo, acha que o amigo está com algum problema. Mas Colm acaba deixando claro que não quer mais a companhia de Pádraic, pois não aguenta mais jogar conversa fora com alguém que nada acrescenta em sua vida. Diferente da irmã Siobhán (Kerry Condon), também solteira, que vive na mesma casa que ele, Pádraic não possui hábitos de leitura e tampouco é famoso por sua sabedoria ou esperteza.
Essa situação é potencializada pelo fato de esses personagens morarem numa ilha pequena da Irlanda dos anos 1920, época de guerra civil no país. Logo, não há tantas opções de amizades naquele espaço desolado, por mais que a bela paisagem do local pareça algo que traz certo refrigério para o espírito. Mas de nada adianta a paisagem tão bem explorada pela linda fotografia de Ben Davis (TRÊS ANÚNCIOS PARA UM CRIME, 2017), pois Pádraic se sente não apenas abandonado pelo melhor amigo, mas também consciente do pouco respeito que o povoado tem por ele.
A situação do personagem de Colin Farrell, mesmo dolorosa, a princípio traz momentos de humor, graças ao roteiro tão bem construído e às interpretações inspiradas do excelente elenco (Farrell faz o papel da vida dele aqui). O personagem de Gleeson é também fascinante. Inclusive por levar suas decisões a consequências assustadoras. Tanto que, em certo momento, a história ganha contornos de cinema de horror, o que a torna ainda mais desconcertante.
Não é um filme com personagens que agem com prudência ou inteligência, mas justamente por isso gera um enredo tão cheio de intensidade, com direito a uma personagem idosa semelhante a uma bruxa e que justifica o título que remete a lendas do folclore irlandês. Adoro a personagem de Kerry Condon, que faz essa contraparte feminina, sensível e inteligente num mundo de homens brutos. O filme seguir num crescendo de angústia contribui para que provoque um aperto no coração. É tão belo quanto cruel, e um desses exemplares singulares que ficam nos assombrando por muito tempo.
+ DOIS FILMES
FALANDO SOBRE ÁRVORES (Talking about Trees)
E eis que um dos filmes mais bonitos sobre o amor pelo cinema que eu já tive o prazer de ver na vida vem do Sudão, um país que está longe de ter uma tradição (conhecida) em se tratando de cinema. Em FALANDO SOBRE ÁRVORES (2019), de Suhaib Gasmelbari, misto de documentário e encenação, quatro amigos diretores de cinema vivendo a terceira idade compartilham seu amor pelo cinema e têm o projeto de trazer de volta uma sala fechada e abandonada há décadas. Aos poucos, vamos conhecendo mais da triste história do Sudão e de como o fechamento dos cinemas no país teve razões políticas. O país passou por guerras civis e ditaduras entre momentos supostamente democráticos e o que sobrou para o cinema foi o abandono e o esquecimento das obras de seus realizadores. É difícil não sair da sessão com um aperto no peito (o que são aquelas cenas das latas de filme abandonadas?), mas também feliz de ter conhecido esses senhores. Feliz por eles terem compartilhado conosco esse amor mútuo.
UMA VEZ MAIS (Once More / Encore)
Com apenas dois filmes (da década de 1980) vistos de Paul Vecchiali (por mim), é possível notar um gosto pela tragédia, pela celebração do amor de forma dramática. Saio dos prostíbulos parisienses do lindo ROSA LA ROSE, GAROTA DE PROGRAMA (1986) e entro na vida proibida e ambientada em guetos dos grupos de homossexuais sacrificados pela epidemia da AIDS na década de 1980. Na trama de UMA VEZ MAIS (1988), Jean-Louis Rolland é um homem que se vê insatisfeito com o casamento que leva e com o fato de não amar a esposa. Resolve sair de casa e é desses homens facilmente amados por outras pessoas, inclusive um homem, por quem se apaixona. Para tornar as emoções ainda mais à flor da pele, a dramaticidade é acentuada e há espaço para belas canções. Curiosamente, costumo associar os musicais (hollywoodianos) à alegria, mas a minha experiência com o musical francês é associada com frequência à tristeza. Minha homenagem a Paul Vecchiali (1930-2023) foi conferir mais um filme desse realizador que merece um maior reconhecimento.
terça-feira, fevereiro 07, 2023
A PAIXÃO DE JOANA D'ARC / O MARTÍRIO DE JOANA D'ARC (La Passion de Jeanne d'Arc)
Em agosto de 2005 eu voltava da hoje infelizmente extinta Distrivídeo com dois DVDs de dois dos filmes mais importantes sobre Joana D’Arc, O PROCESSO DE JOANA D’ARC, de Robert Bresson, e este maravilhoso A PAIXÃO DE JOANA D’ARC (1928), também conhecido como O MARTÍRIO DE JOANA D’ARC, do mestre dinamarquês Carl Theodor Dreyer. Na época, embora tenha achado o filme incrível, não me envolvi totalmente, tanto que até preferi o do Bresson. Por isso sabia que a experiência de revê-lo na telona, numa cópia nova remasterizada, faria toda a diferença. Seria um desses momentos históricos de minha cinefilia.
Mas eu não tinha como saber que o filme chegaria ao meu topo de favoritos da vida, não sabia que se mostraria uma obra tão imensa e tão impactante, a ponto de eu não saber como explicar em palavras o que senti, o que aquelas imagens me disseram. O evento foi especial também por ter sido uma sessão de um filme mudo com música ao vivo. E muito do prazer de vê-lo veio do excelente trabalho dos músicos que acompanharam esta obra-prima, Clau Aniz, Marta Aurélia, Victor Cozilos e Rudriquix. A música usada foi mais moderna, com sintetizador, bateria, vocal e um instrumento de sopro (a identificar) e pra mim funcionou muito bem, tanto para atribuir ruídos deliberadamente incômodos nas primeiras horas de projeção, nos questionamentos dos inquisidores, quanto para subir em tom na catártica conclusão.
Houve um probleminha técnico, com a ausência de legendas em português, mas depois nem senti falta, já que a força das imagens do Dreyer é coisa de outro mundo. Tanto Maria Falconetti, que interpreta Joana, quanto os atores que vivem os homens da inquisição estão excelentes, com uma expressividade que os transforma em fantasmas ou espíritos bizarros – um deles parece até possuir chifres. A quase completa falta de cenários ao fundo é proposital: as paredes do cenário foram pintadas de cor-de-rosa para remoção do brilho, de modo que não houvesse interferência no rosto de Falconetti. O cenógrafo do filme, Herman Warm, havia trabalhado em O GABINETE DO DR. CALIGARI, de Robert Wiene, obra essencial para quem quiser entender o expressionismo alemão.
Os momentos em que Joana prefere ir para a fogueira do que ficar na prisão para o resto da vida traduzem uma espiritualidade poucas vezes vista no cinema (talvez só o próprio Dreyer tenha conseguido algo parecido com seu A PALAVRA, 1955). Difícil conter as lágrimas nos instantes finais, com aquelas tomadas da fogueira, dos pássaros, das pessoas que assistem ao crime (muitas delas em prantos), das crianças (uma delas mamando). Sem dúvida alguma, um dos maiores filmes de todos os tempos, visto junto a uma experiência sonora que faz questão de marcar seu lugar em nosso tempo presente.
Sobre Joana d’Arc, ela é possivelmente uma das figuras femininas mais importantes da História – só consigo me lembrar de outras duas tão celebradas: Maria, mãe de Jesus, e Cleópatra. E justamente por isso, sua história já foi contada em inúmeros filmes. Lá na aurora do cinema, em 1900, George Méliès já havia feito um filme sobre ela (disponível no YouTube). Na Hollywood dos anos 1910, Cecil B. De Mille fez o épico JOANA D’ARC, A DONZELA DE ORLÉANS, que consta no box Joana d’Arc no Cinema, lançado pela Versátil.
No mesmo box, há JOANA NA FOGUEIRA, de Roberto Rosselini, com Ingrid Bergman (que já havia interpretado Joana em Hollywood em 1948, em filme de Victor Fleming); SANTA JOANA D’ARC, de Gustav Ucicky; o já citado filme de Bresson; e os filmes de Jacques Rivette JOANA, A VIRGEM I – AS BATALHAS e JOANA, A VIRGEM II – AS PRISÕES. Além do mais, todos devem lembrar de JOANA D’ARC, de Luc Besson, e talvez até da minissérie para a televisão estrelada por Leelee Sobieski. Há ainda SANTA JOANA, de Otto Preminger, e o mais recente JOANA D’ARC, de Bruno Dumont. Enfim, há ainda muitos, mas talvez eu tenha listado os mais importantes ou mais famosos.
Na história incrível de Joana, ela é uma jovem que diz ter visões do Arcanjo Miguel, de Santa Catarina e de Santa Margarida. Ao 16 anos, ela resolve se alistar e tomar parte na guerra (dos cem anos), de modo a ajudar a França a enfrentar a Inglaterra e diminuir a miséria, a fome e as doenças que o conflito estava trazendo. Depois de conseguir liderar exércitos e vencer várias batalhas (outra coisa incrível é imaginar o Rei Carlos VII ter aceitado essa proposta de Joana), a jovem foi capturada pelos borguinhões durante a batalha de Compiègne e vendida para os ingleses. Não demorou para ela ser acusada como bruxa pela inquisição.
Na época do lançamento de A PAIXÃO DE JOANA D’ARC, a Igreja Católica havia há pouco tempo canonizado Joana (em 1920, pelo Papa Bento XV). O filme é a única obra de Dreyer que não é baseada em um escrito literário, mas nos registros do processo.
+ DOIS FILMES
CARTA DA SIBÉRIA (Lettre de Sibérie)
Antes de trabalhar em outros filmes-ensaio mais famosos, como A SEXTA FACE DO PENTÁGONO (1968) e SEM SOL (1983), Chris Marker já fazia na década de 1950 esse tipo de documentário muito ligado à espirituosidade do texto e com um olhar antropológico apaixonado. Em CARTA DA SIBÉRIA (1958), vemos o diretor olhando para os habitantes de uma das regiões mais frias do planeta, seus costumes, suas heranças políticas (vindas da União Soviética e da China), sua geografia, suas vestimentas, a relação com os animais (por vezes cruel, segundo o pensamento do narrador), a extração do ouro etc. O filme faz parte de uma série de trabalhos dedicados à União Soviética num momento em que o regime socialista ainda seguia forte, inclusive tendo seu cinema premiado em festivais internacionais. Acontece que Marker não entrega, pelo menos não neste filme, a União Soviética como uma espécie de salvadora daquele povo. Tanto que CARTA DA SIBÉRIA não agradou nem à direita nem à esquerda.
MANDABI
Uma oportunidade e tanto essa que o cinéfilo de Fortaleza está tendo de ver no cinema alguns, ainda que poucos, clássicos do cinema africano, infelizmente invisibilizado pela dominação europeia e hollywoodiana. Poder ver MANDABI (1968), de Ousmane Sembène, em cópia remasterizada é uma beleza, tanto para termos acesso a uma estética nova quanto pelo seu valor antropológico. O filme acompanha a jornada de um homem casado com duas mulheres e que mora numa área extremamente pobre de Dakar, Senegal. Ele recebe uma ordem de pagamento pelo correio endereçada a seu nome de um sobrinho que está trabalhando na França. Aquilo parece ser uma alegria para ele e para as esposas, mas é também o começo de várias situações que parecem saídas de O Processo, de Kafka. A diferença é que o personagem é alguém despido de documentação básica e também de instrução, o que torna sua jornada para conseguir o dinheiro no mínimo complicada. MANDABI também tem um valor histórico: foi o primeiro filme feito numa língua africana, no caso, o uólofe.
domingo, fevereiro 05, 2023
BATEM À PORTA (Knock at the Cabin)
M. Night Shyamalan é um dos cineastas mais singulares em atividade. E é impressionante como ele também se tornou controverso no meio cinéfilo já desde seu segundo sucesso, CORPO FECHADO (2000), talvez por entregar algo diferente do celebrado O SEXTO SENTIDO (1999) e ter se tornado desde então um mestre dos plot twists, embora nem sempre ele tenha usado esse recurso em seus trabalhos posteriores. Mas é impressionante o quanto as opiniões sobre seus filmes variam, o quanto o amor e o ódio pelo diretor seguem em intensidade, embora hoje em dia o cineasta tenha recuperado, com alguns filmes recentes, o respeito de certos cinéfilos que o tinham já colocado na lista negra.
No meu caso, sempre gostei muito de seu trabalho e procuro acompanhar até mesmo as séries de televisão que ele cria ou dirige, como foi o caso de WAYWARD PINES (2015-2016) e a atual SERVANT (2019-2023). Diria, inclusive, que o formato de séries combina muito com suas ideias. Enquanto via seu novo trabalho, BATEM À PORTA (2023), por exemplo, fiquei imaginando como o filme se beneficiaria no formato de série, trazendo, além dos flashbacks da família feita de refém, flashbacks também dos chamados “quatro cavaleiros do apocalipse”, por mais que a estrutura pudesse ficar parecido com a de LOST.
Lendo, porém, uma entrevista de Shymalan para o site Collider, ele menciona que, para chegar ao resultado final de BATEM À PORTA, ele enxugou ao máximo as cenas, de modo que nada ficasse sobrando. Não sei se ele foi tão bem-sucedido assim, mas também não tenho muito do que reclamar. Afinal, o interesse do filme, que já é instigante desde o primeiro diálogo de Leonard, o personagem de Dave Bautista, com a menininha Wen (Kristen Cui), permanece assim até os instantes finais. Dave Bautista é uma surpresa e tanto com sua atuação amorosa, fazendo um contraponto com seu físico gigantesco. É dele a melhor atuação do filme.
Ver BATEM À PORTA nos ajuda a valorizar ainda mais a obra de Shyamalan. Isso porque temos um filme que dialoga muito bem com pelo menos duas obras suas, FIM DOS TEMPOS (2008) e TEMPO (2021). Assim como os filmes citados, há no novo a questão do fim (do mundo ou do mundo a partir da morte, de um ponto de vista mais subjetivo), ainda que visto de uma maneira mais desesperada pelo casal.
Como o diretor usa de um requinte visual que salta aos olhos, esse poder da imagem está presente na própria maneira como vemos "os quatro cavaleiros do apocalipse", usando o que eles chamam de ferramentas (não são, para eles, armas, como a garotinha diz). O ponto de partida é tão genial quanto o de TEMPO (ambos são adaptações: o anterior de uma graphic novel, este de um romance) e a gente torce para que desta vez o filme se mantenha muito bom até o fim. Felizmente este aqui é o caso e o último ato é tão bonito quanto emocionante. Mais uma vez, Shyamalan trata no mesmo filme de família, amor e a aproximação da morte, com um misto de horror e ternura.
É bom deixar claro que não temos em BATEM À PORTA um trabalho de terror próximo do sadismo, como em VIOLÊNCIA GRATUITA, de Michael Haneke, e nem uma cena como a do “jogo” parecida com a de O SACRIFÍCIO DO CERVO SAGRADO, de Yorgos Lanthimos. Aliás, muito curioso eu trazer lembranças de filmes dirigidos por cineastas costumeiramente tidos como polêmicos. Shyamalan, mesmo sendo um mestre da condução do suspense e do horror, tem um estilo muito mais terno, muito mais próximo de um cinema cristão – SINAIS (2002) é um filme sobre a perda da fé, se não me engano.
Agora, sobre acreditar ou não nos homens que trazem a notícia do apocalipse e sua solução ao mesmo tempo simples (de um ponto de vista mais frio e prático) e extremamente difícil, isso pode incomodar um pouco, pode não ser visto com bons olhos em tempos de pós-verdade, e é justamente onde se enquadra BATE À PORTA, que inclusive podemos dizer se tratar do filme de pandemia do cineasta.
Ainda assim, sinto uma necessidade de revê-lo, de preferência numa sala de cinema melhor, para não apenas perceber melhor a beleza das imagens (a fotografia é assinada por dois profissionais e há o uso preferencial de luz natural), como também para repensar os simbolismos e o jogo de cena que o cineasta tão habilmente elabora, com seus close-ups, campo/contracampo e outras opções visuais.
+ DOIS FILMES
RESURRECTION
Achando bem curioso este caminho que o cinema está tomando, especialmente dentro do cinema de gênero, para lidar com os traumas que as mulheres enfrentam de homens abusadores, das mais diversas maneiras. Neste ano tivemos MEN – FACES DO MEDO, de Alex Garland; WATCHER, de Chole Okuno; e podemos incluir, ampliando o espectro, até mesmo SPENCER, de Pablo Larraín. Muito da força de RESURRECTION (2022), de Andrew Semans, está na performance intensa e vibrante de Rebecca Hall. Muito bom vê-la participando de filmes de horror para ajudar a valorizar o gênero - sem ela, o filme talvez não tivesse o mesmo sucesso. Aqui ela é uma mãe solteira com uma filha prestes a completar 18 anos que volta a ser assombrada pela presença do homem que a abusou na juventude. Há várias cenas que irritam, pois logo queremos uma ação imediata dela contra aquele homem, mas dentro da estratégia de construção do monstro, do vilão, Tim Roth em cena transmite uma carga bem maligna. Pena que o final, eu tenha achado um pouco previsível, embora haja muito o que pensar sobre o que o filme diz e o que ele apenas deixa implícito.
SPEAK NO EVIL (Gæsterne)
Se você quer um filme que vai deixá-lo com um quentinho no coração, definitivamente é melhor passar longe de SPEAK NO EVIL (2022), de Christian Tafdrup. O clima de algo ameaçador é antecipado pela trilha sonora e isso dá ao espectador uma sensação de certa superioridade ao saber mais do que os personagens principais, ou seja, os dinamarqueses que aceitam a estadia de um casal de neerlandeses para visitá-los em uma casa na área rural dos Países Baixos. A habilidade da direção de saber como ampliar gradativamente a tensão dentro da casa é admirável. O ideal é ver o filme sem saber muito coisa, ou até mesmo nada. Não sei se SPEAK NO EVIL passará nos cinemas brasileiros, mas quem sabe o fato de ser falado majoritariamente em inglês ajude. Mesmo assim, o silêncio das distribuidoras para filmes já bastante populares entre cinéfilos é desanimador. Ver este filme no cinema, por exemplo, ajudaria bastante, pois é uma obra que traz várias cenas em planos gerais, melhor visualizadas numa tela grande.
quinta-feira, fevereiro 02, 2023
NOITES DE PARIS (Les Passagers de la Nuit)
Chega fevereiro e eu estou com um pouco de desânimo no espírito, embora esteja sem compreender direito o motivo. De todo modo, o cinema ainda segue sendo o espaço de refrigério. Encontrar os amigos no Cinema do Dragão, por exemplo, quase uma segunda casa pra mim, é uma alegria. Na terça-feira, saí de casa para a Mostra Retroexpectativa para ver dois filmes inéditos (pra mim): NOITES DE PARIS (2022), de Mikhaël Hers, e A VIDA SÃO DOIS DIAS, de Leonardo Mouramateus. Antes disso, encontro o amigo Murilo, que estava na sessão de MOONAGE DAYDREAM e que me presenteia com um box de CDs do Lou Reed e conversamos um pouco antes da sessão no café Santa Clara sobre vida e arte. Em seguidas, ainda conversamos sobre os filmes da mostra com o Luiz e o Messias. A alegria de estar naquela sala, naquela tarde, é até um pouco difícil de descrever.
E ver NOITES DE PARIS, com seu pacote de alegrias e tristezas, quase na mesma proporção, funciona como um consolo. É um filme que começa com uma alegria muito parecida com a que vivemos no dia 30 de outubro passado, com a eleição de Lula. A história começa em 10 maio de 1981, quando François Mitterrand é eleito e acaba passando 14 anos como presidente do país. Foi o primeiro presidente socialista a vencer as eleições na França e por isso as alas mais progressistas festejaram tanto nas ruas. Enquanto isso, Elisabeth (Charlotte Gainsbourg) chora, pois seu marido a abandonou. O motivo do choro é menos pelo amor pelo agora ex-esposo e mais pelo fato de o sujeito não dar as caras e não pagar a pensão. Ou seja, ela, que nunca trabalhou na vida em empresa, teria que procurar algum emprego para sustentar os dois filhos adolescentes.
Como o filme lida com a família, conhecemos um pouco dos filhos também. A filha mais velha, Judith (Megan Northam) tem interesse por política e é esse o caminho que ela pretende trilhar. O mais novo, Matthias (Quito Rayon-Richter), não sabe muito bem o que quer, mas uma professora percebe que ele tem jeito para ser poeta (ele parece algo próximo a um alter-ego do diretor). Uma quarta personagem jovem entra na história, a delicada Talulah (Noée Abita), que Elisabeth conhece na rádio noturna onde está trabalhando e lhe dá abrigo e amparo em sua casa. Já se percebe que NOITES DE PARIS (título, aliás, bem genérico e que nada diz do filme) é uma obra que tem um quê de maternal. E isso geralmente é um elemento que me ganha pelo coração. Tanto que pouco me importei com as irregularidades do enredo, montagem ou coisa do tipo. Pra mim, tudo funcionou muito bem, do jeito que ficou.
Considero NOITES DE PARIS um filme agridoce que aquece os corações, até tendo um efeito muito mais forte em mim do que o mais celebrado AMANDA (2018), o anterior do realizador francês. E isso se dá muito provavelmente por causa das dificuldades da personagem de Gainsbourg. Solidarizei-me com a personagem, ficando triste com suas dificuldades e feliz com suas vitórias. Adorei ver o rosto de alegria dela ao ser aceita na rádio, depois de ter sido demitida de outra empresa. Da mesma maneira, é de lamentar o fora que ela recebe do colega de trabalho, mas depois a vemos feliz com um novo namorado. Ou seja, é como se a vida estivesse ensinando a pessoa (a gente, aliás) a valorizar os momentos de alegria, ao ter experienciado as situações difíceis antes.
O filme também explora muito bem o personagem do filho, Mattias, que acaba se apaixonando pela jovem Talulah, e é com ela que ele tem sua primeira relação sexual, por quem se apaixona e por quem sofre. Ou seja, mais uma vez o filme evoca a vida, no que ela traz de gostoso e de doloroso. E Hers ainda deixa um presentinho para os cinéfilos, na cena em que os três jovens, entram de fininho numa sessão dum filme de Éric Rohmer (NOITES DE LUA CHEIA). E o filme mexe com os personagens. Talulah muito bem diz que alguns filmes são devidamente apreciados com o passar do tempo, quando ele cresce mais na memória afetiva.
Não sei se esse é o caso de NOITES DE PARIS, mas deixar registradas as cenas que mais me emocionaram pode me ajudar: a cena do jantar, ao som de “Jodie” (Les Innocents); e a cena dos presentes. No mais, o filme é um triunfo visual, como uma obra que se conecta muito bem com a década de 1980, com uma fotografia que usa diferentes bitolas em película (8 mm, 16 mm, 35 mm) e obtém uma imagem com uma textura muito aproximada da que vemos em filmes de Rohmer desse período, por exemplo.
+ DOIS FILMES
A METAMORFOSE DOS PÁSSAROS
A vontade que tive, assim que terminei de ver A METAMORFOSE DOS PÁSSAROS (2020), foi de revê-lo imediatamente. Mas, ao mesmo tempo, vê-lo em casa, na Netflix (aliás, quase um milagre encontrar obra tão refinada nesse serviço de streaming!), senti dificuldade de me concentrar em todos os momentos - em casa é tão mais fácil nos dispersarmos. Além do mais, há vários personagens-narradores e o filme trata de três (ou mais gerações) da família da diretora Catarina Vasconcelos. Mas todas as cenas que me pegaram, elas me pegaram forte, como quando o filme aborda as questões da morte do avô ou da mãe, especialmente da mãe. Fica tudo impregnado de tristeza, mas a diretora trata tudo de forma tão poética (adoro as escolhas das palavras e o tom de sua voz) que é tão bom abraçar essa tristeza, que além de tudo ainda vem numa "embalagem" linda, com imagens tão bem pensadas e tão em consonância com a narrativa oral. Há um momento, da conversa da mãe morta com a filha, que me lembrou o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago, e me fez pensar no jeito singular que possivelmente os portugueses têm de lidar com a morte. Também fiquei pensando mais uma vez nas razões de tantos filmes que se voltam para as memórias da família estarem surgindo, se isso é sinal de um mundo mais preparado para a compreensão de si ou se é uma maneira quase desesperada de registrar algo da maneira mais bonita possível, antes que isso tudo seja esquecido pelo tempo e pela morte. No mais, há tantas cenas tão inteligentes (a tomada na parede, o voo dos pássaros, os nomes de "mãe" em várias línguas) que o filme mereceria uma investigação mais aprofundada em revisões posteriores. Um privilégio poder ver A METAMORFOSE DOS PÁSSAROS.
A ÚLTIMA FESTA
Matheus Souza tem se especializado nessas comédias dramáticas acerca das dores e das alegrias dos jovens dos dias de hoje, inclusive com um uso muito eficiente da comunicação pela internet. Nos dois anteriores, ANA E VITÓRIA (2018) e ME SINTO BEM COM VOCÊ (2021), isso já se mostrava muito presente, principalmente no filme da pandemia, quando a internet passou a ser ainda mais presente em nossas vidas. Em A ÚLTIMA FESTA (2023), acompanhamos quatro amigos que compõem um grupo de whatsapp chamado "Bobas para a Idade". São unidos e o filme quase consegue explorar suficientemente bem cada um dos quatro, além dos agregados (namorados ou interesses amorosos), que surgem na festa. A personagem mais carismática é a de Giulia Gayoso, em sua missão de tirar a virgindade com o namorado em algum lugar do castelo português onde se passa a festa. Ora trabalhando com um tipo de humor que desperta risos, ora lidando com um humor mais amargo, Souza segue fazendo seus trabalhos bem pessoais num esquema que me faz lembrar o que fazia Domingos Oliveira e seus filmes de conversa, inclusive pelos personagens mais abastados. Nem sempre os diálogos se materializam tão bem na boca dos atores, mas isso faz parte do risco de ser um diretor cujo texto bem-humorado está em primeiro lugar na lista de prioridades.
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