domingo, junho 26, 2022
AO CAIR DA NOITE (Moonrise)
Ultimamente tenho me entusiasmado mais com filmes antigos do que os novos, que, em sua maioria, têm me trazido desapontamentos ou insatisfação. Pode ser apenas uma fase, mas também há o fato de que, quando vemos um filme antigo, em geral já vemos uma obra que sobreviveu ao tempo, que se tornou um clássico ou continua sendo citado ou faz parte de uma curadoria ou tentativa de resgate de alguém atento ao cinema. Logo, as chances de esse filme ser mais apreciado são muito maiores.
Um dia desses, com a vontade de ver um filme antigo, peguei um dos boxes de filme noir da Versátil e, para minha surpresa, percebi que havia um filme dirigido por Frank Borzage, um cineasta que só passei a entrar em contato neste ano, justamente por causa da Versátil, que colocou duas obras-primas suas no box Melodrama no Cinema. Os dois filmes já foram objetos de reflexão aqui no blog. Por enquanto, ESTRELA DITOSA (1929) continua imbatível, mas adoro também A HISTÓRIA COMEÇOU À NOITE (1937). Já sabendo que o auge de Borzage foi nas décadas de 1920 e 30, já fiquei curioso como ele se sairia na era do cinismo e do pessimismo, os anos 1940 que pariam o filme noir.
Daí AO CAIR DA NOITE (1948) ser uma obra tão particular dentro do cinema que se praticava na época. Já que o próprio Borzage não gostava e nem se identificava com os rumos que sua arte passava naquele período, certamente sua incursão em uma história de assassinato seria no mínimo muito distinta. Aqui vemos a história de um homem que passou a vida inteira sofrendo bullying pelo fato de seu pai ter sido condenado à forca pela morte de um homem. Se sofrer bullying por qualquer motivo que seja já é cruel, imagina o quão cruel é lembrar e escarnecer de uma criança pelo modo como seu pai morreu!
E eis que vemos um pouco da infância de Danny (Dane Clark), mas logo somos levados a sua vida adulta, em que ele segue sendo alvo de agressões pelos demais rapazes da sua idade, e isso vem muito do fato de ele ser mais pobre, de não fazer parte do grupo de filhos de empresários também. Numa das brigas com um rapaz por causa de uma garota (Gail Russell), ele o mata acidentalmente. Com um soco, a cabeça do rapaz bate em uma pedra. Desesperado, ele esconde o corpo do rapaz e tenta seguir com a culpa, mas também imaginando que a qualquer momento pode ser descoberto. Enquanto isso, ele passa a se aproximar mais da moça por quem é apaixonado, a já citada Gilly (Russell), uma professora do ensino infantil.
O mestre do melodrama Borzage nos convida a compartilhar da angústia desse homem. Ainda que a morte tenha sido acidental, à medida que ele vai escondendo o fato de todos, inclusive da mulher que ama, a situação vai se tornando cada vez mais insuportável. Há algumas cenas que são assustadoras, assombrosas, como a que o protagonista dirige o carro em alta velocidade e vê a imagem do homem que acabara de matar.
Também é vertiginosa a cena da montanha-russa. O que torna AO CAIR DA NOITE menos amargo é que seu diretor é um homem que procura caminhos de paz, é um cineasta de linha espiritual e que sofre com seus personagens, sejam eles heróis puros ou homens maculados e confusos. A cena final se distingue bastante dos tons amargos predominantes no cinema da época, quando a redenção chega e até a expressão no rosto de Danny muda pela primeira vez no filme inteiro, assim como a iluminação do ambiente. De arrepiar.
Título visto no box Filme Noir Vol. 11.
+ DOIS FILMES
A SUSPEITA
Até que para um diretor com o currículo em telenovelas, Pedro Peregrino tem um interesse em fazer algo que fuja um pouco do que se convenciona trazer para as salas de shopping. Certamente é a presença de Gloria Pires que chama a atenção para o filme, e ela é a melhor coisa de A SUSPEITA (2021), uma espécie de variação em torno de AMNÉSIA (do Nolan) e MEU PAI (Zeller). Ou seja, é um filme que procura nos deixar quase tão desnorteados quanto a personagem com Alzheimer vivida pela atriz. O roteiro assinado em oito mãos podia ter sido melhor pensado para que a trama parecesse um pouco mais envolvente e também com mais verossimilhança - afinal, a polícia deixar que alguém com problema grave de saúde continue a trabalhar é caso de polícia. Mas talvez eu não esteja em condições de opinar, pois meus vários cochilos durante a sessão (culpo a alergia, principalmente, e o cansaço) fizeram com que a experiência do filme para mim guardasse semelhança com a experiência da heroína.
O DESTINO DE HAFFMANN (Adieu Monsieur Haffmann)
Um filme bastante envolvente, mas que vai perdendo a força em seus momentos finais quando se torna uma espécie de suspense barato à Supercine, mas sem ter a intenção de sê-lo (eis o problema). Ainda assim, temos em O DESTINO DE HAFFMANN (2021), de Fred Cavavé, uma trinca de atores que defendem muito bem seus papéis. Daniel Auteuil é o judeu que precisa fugir da França - os alemães começaram a prender e deportar os judeus. Gilles Lellouche é o sujeito que aceita fazer um negócio com o empresário rico vivido por Auteuil, em troca de desfazer o negócio ao fim da guerra. Sara Giraudeu faz a minha personagem preferida, a mulher de Lellouche que aceita uma proposta indecente do marido. Aliás, é com essa proposta que o filme vai se tornando mais interessante. Pena que deixe quase tudo a perder em seus instantes finais e no excesso de vilania de um dos personagens.
sábado, junho 25, 2022
THE DARK AND THE WICKED
Como o horror é um dos meus gêneros preferidos, sempre fico muito interessado em saber o que de melhor vem sendo produzido. Infelizmente as distribuidoras brasileiras não têm trazido todos os grandes títulos e por isso mesmo é interessante conseguir alguns dos filmes que nos interessam, aqueles que a gente sabe que há poucas chances de chegar ao nosso circuito, através de meios alternativos. Alguns furam a fila quando um amigo ou amiga chamam a nossa atenção. No caso, a amiga, crítica, professora e estudiosa do gênero Laura Cánepa destacou o caráter assustador de THE DARK AND THE WICKED (2020), o mais recente trabalho de Bryan Bertino, diretor do ótimo OS ESTRANHOS (2008) – infelizmente os outros dois trabalhos do cineasta, eu ainda não cheguei a ver.
E o que mais me deixou impressionado com THE DARK AND THE WICKED foi o fato de que é um filme que não apenas assusta, atordoa e arrepia por uma série de elementos muito bem conjugados, mas também por ter um tom extremamente pessimista com relação ao combate às forças do mal. Desse modo, nem é um filme apropriado a pessoas que estejam com o espírito um pouco mais depressivo.
Na trama, dois irmãos, Michael (Michael Abbott Jr.) e Louise (Marin Ireland), chegam a uma casa afastada do interior para visitar os pais, depois que recebem a notícia que o pai está em estado muito debilitado depois de um derrame, enquanto a mãe está vivendo um tormento ainda não compreendido por eles.
Um dos trunfos do filme é também lidar com o terror da vida real, como dormir na mesma cama de um corpo moribundo, por mais que esse corpo seja de um ente querido. Além de também nos fazer pensar na morte iminente. Sem falar que a morte em si, uma morte em paz, por assim dizer, é uma bênção, se compararmos com o que o filme nos apresenta a seguir.
Há um trabalho de câmera com a janela scope que contribui muito para que as trevas sejam preenchidas até mesmo por coisas que apenas imaginamos ter visto. Além do mais, como lidar com o demoníaco já foi tão utilizado pelo cinema de horror por décadas, a ponto de se tornar um subgênero difícil de ser bem realizado, é uma dádiva ter uma obra que consiga ser tão arrepiante e tão desesperançada e dolorosa, indo muito além do jump scare e passando um bocadinho longe do que chamamos de diversão.
Não considero o último terço do filme tão bom quanto seus primeiros dois terços, pois há uma tendência em tornar cada vez mais explícito e mais convencional o drama e o horror, mas ainda assim é uma maneira honesta de dar um final digno ao filme. Inclusive, sem querer dar muito spoiler, a cena de Michael voltando para sua família não é apenas perturbadora, mas chega a acentuar ainda mais o sentimento de impotência daquela família diante das forças do mal.
E um dos aspectos de destaque desse mal presente em THE DARK AND THE WICKED é que não temos motivos, não temos uma historinha envolvendo algum fantasma que se sente perturbado por alguma situação passada. Aqui o que vemos é o mal demoníaco, algo já bastante usado em tantos outros filmes, especialmente a partir do sucesso de O EXORCISTA, de William Friedkin, com a diferença que Bryan Bertino tem um cuidado muito especial na condução da atmosfera e no modo como movimenta (ou deixa parada) sua câmera. Certos detalhes fazem uma diferença tremenda.
+ DOIS FILMES
ATÉ A MORTE - SOBREVIVER É A MELHOR VINGANÇA (Till Death)
Suspense próximo ao terror bem eficiente e inteligente no modo como lida com as resoluções da heroína frente à situação bizarra de estar algemada ao marido morto e ainda enfrentando novos desafios. A princípio, lembrei-me de JOGO PERIGOSO, de Mike Flanagan, mas aqui não há uma preocupação psicológica. O diretor S.K. Dale lida muito bem com a geografia do ambiente (a casa grande e os arredores) e com as cores, enfatizando o branco e o vermelho. Vendo ATÉ A MORTE – SOBREVIVER É A MELHOR VINGANÇA (2021), também lembrei-me de O TERCEIRO TIRO, de Alfred Hitchcock, pela maneira com que o cineasta usa um senso de humor sutil, ao tratar de um cadáver mudando de lugar, e também um pouco do primeiro JOGOS MORTAIS, de James Wan, pelo humor negro. A tensão não deixa o espectador gargalhar (pelo menos não deixou a mim), mas o humor está presente e é bem-vindo. Megan Fox está muito bem, como a mulher que usa a inteligência e a força física para sair de cada obstáculo à sua frente. Infelizmente (ou felizmente, não sei), larguei mão da sessão do filme na sala 1 do Iguatemi por problemas de projeção ruim e resolvi vê-lo em casa mesmo, com as cores vivas e nítidas que a obra merece.
JURASSIC WORLD – DOMÍNIO (Jurassic World – Dominion)
Se os primeiros dois títulos desta segunda trilogia dos dinossauros já haviam ficado no esquecimento, por mais eficientes que fossem na reciclagem do que Spielberg havia feito em 1993 e 1997, este último aqui, JURASSIC WORLD – DOMÍNIO (2022), dirigido por Colin Trevorrow, é lamentável em praticamente todos os aspectos. Mesmo trazendo de volta o trio de atores dos primeiros filmes (Laura Dern, Sam Neill e Jeff Goldblum) para se juntar aos novos personagens, isso só contribui para perceber que os produtores tinham muita coisa boa nas mãos e não souberam fazer nada que servisse. Nem a nostalgia, nem a sensação de perigo nas cenas de ação, nem o maravilhamento com os dinossauros, nem mesmo os efeitos especiais, que parecem os mais desleixados de todos os seis filmes. Até lembrei de produções dos anos 1950 que usaram a técnica da tela ao fundo de maneira muito mais eficiente. Não se trata de ser polícia de efeitos visuais, mas quando há milhões envolvidos, podemos sim reclamar. Em certo momento, durante as lutas para não dormir ao som da trilha sonora pouco inspirada de Michael Giacchino, eu fiquei torcendo para que algum dos sete heróis morresse, para me acordar do torpor que é essa aventura. E nem é spoiler dizer que isso não acontece. Uma coisa de que eu gostei: as cenas de perseguição dos dinos aos personagens de Chris Pratt (na moto) e Bryce Dallas Howard (no carro). Mas é muito pouco.
Há um trabalho de câmera com a janela scope que contribui muito para que as trevas sejam preenchidas até mesmo por coisas que apenas imaginamos ter visto. Além do mais, como lidar com o demoníaco já foi tão utilizado pelo cinema de horror por décadas, a ponto de se tornar um subgênero difícil de ser bem realizado, é uma dádiva ter uma obra que consiga ser tão arrepiante e tão desesperançada e dolorosa, indo muito além do jump scare e passando um bocadinho longe do que chamamos de diversão.
Não considero o último terço do filme tão bom quanto seus primeiros dois terços, pois há uma tendência em tornar cada vez mais explícito e mais convencional o drama e o horror, mas ainda assim é uma maneira honesta de dar um final digno ao filme. Inclusive, sem querer dar muito spoiler, a cena de Michael voltando para sua família não é apenas perturbadora, mas chega a acentuar ainda mais o sentimento de impotência daquela família diante das forças do mal.
E um dos aspectos de destaque desse mal presente em THE DARK AND THE WICKED é que não temos motivos, não temos uma historinha envolvendo algum fantasma que se sente perturbado por alguma situação passada. Aqui o que vemos é o mal demoníaco, algo já bastante usado em tantos outros filmes, especialmente a partir do sucesso de O EXORCISTA, de William Friedkin, com a diferença que Bryan Bertino tem um cuidado muito especial na condução da atmosfera e no modo como movimenta (ou deixa parada) sua câmera. Certos detalhes fazem uma diferença tremenda.
+ DOIS FILMES
ATÉ A MORTE - SOBREVIVER É A MELHOR VINGANÇA (Till Death)
Suspense próximo ao terror bem eficiente e inteligente no modo como lida com as resoluções da heroína frente à situação bizarra de estar algemada ao marido morto e ainda enfrentando novos desafios. A princípio, lembrei-me de JOGO PERIGOSO, de Mike Flanagan, mas aqui não há uma preocupação psicológica. O diretor S.K. Dale lida muito bem com a geografia do ambiente (a casa grande e os arredores) e com as cores, enfatizando o branco e o vermelho. Vendo ATÉ A MORTE – SOBREVIVER É A MELHOR VINGANÇA (2021), também lembrei-me de O TERCEIRO TIRO, de Alfred Hitchcock, pela maneira com que o cineasta usa um senso de humor sutil, ao tratar de um cadáver mudando de lugar, e também um pouco do primeiro JOGOS MORTAIS, de James Wan, pelo humor negro. A tensão não deixa o espectador gargalhar (pelo menos não deixou a mim), mas o humor está presente e é bem-vindo. Megan Fox está muito bem, como a mulher que usa a inteligência e a força física para sair de cada obstáculo à sua frente. Infelizmente (ou felizmente, não sei), larguei mão da sessão do filme na sala 1 do Iguatemi por problemas de projeção ruim e resolvi vê-lo em casa mesmo, com as cores vivas e nítidas que a obra merece.
JURASSIC WORLD – DOMÍNIO (Jurassic World – Dominion)
Se os primeiros dois títulos desta segunda trilogia dos dinossauros já haviam ficado no esquecimento, por mais eficientes que fossem na reciclagem do que Spielberg havia feito em 1993 e 1997, este último aqui, JURASSIC WORLD – DOMÍNIO (2022), dirigido por Colin Trevorrow, é lamentável em praticamente todos os aspectos. Mesmo trazendo de volta o trio de atores dos primeiros filmes (Laura Dern, Sam Neill e Jeff Goldblum) para se juntar aos novos personagens, isso só contribui para perceber que os produtores tinham muita coisa boa nas mãos e não souberam fazer nada que servisse. Nem a nostalgia, nem a sensação de perigo nas cenas de ação, nem o maravilhamento com os dinossauros, nem mesmo os efeitos especiais, que parecem os mais desleixados de todos os seis filmes. Até lembrei de produções dos anos 1950 que usaram a técnica da tela ao fundo de maneira muito mais eficiente. Não se trata de ser polícia de efeitos visuais, mas quando há milhões envolvidos, podemos sim reclamar. Em certo momento, durante as lutas para não dormir ao som da trilha sonora pouco inspirada de Michael Giacchino, eu fiquei torcendo para que algum dos sete heróis morresse, para me acordar do torpor que é essa aventura. E nem é spoiler dizer que isso não acontece. Uma coisa de que eu gostei: as cenas de perseguição dos dinos aos personagens de Chris Pratt (na moto) e Bryce Dallas Howard (no carro). Mas é muito pouco.
domingo, junho 19, 2022
ACAMPAMENTO SINISTRO (Sleepaway Camp)
Interessante como certos filmes que não são necessariamente bons ficam em nossa memória por mais tempo do que aqueles que têm um maior cuidado visual e narrativo. É o caso deste ACAMPAMENTO SINISTRO (1983), de Robert Hiltzik, que vi há um par de dias e ainda ficou me assombrando até agora. Assombrando é modo de dizer, claro, mas não há como negar que o filme tem um dos finais mais chocantes e impactantes ever. É mais ou menos como você assistir a uma cerimônia do Oscar maçante e de repente o melhor filme anunciado não é de fato o melhor filme e os então vencedores têm que descer do palco para que os reais subam – aconteceu de verdade em 2017. (Poderia fazer uma comparação com um jogo de futebol também, mas não sou exatamente um entusiasta e não tenho nenhum jogo em mente, mas acredito que existam sim equivalentes.)
ACAMPAMENTO SINISTRO é uma obra até um tanto medíocre. Mas há algo de diferente que percebemos logo de cara, que é o uso de adolescentes de verdade interpretando adolescentes, algo não muito comum nas produções do gênero na época. E o acampamento de verão de crianças e adolescentes parece de fato um acampamento de verão, um espaço em que as crianças se sentem mais à vontade para brincarem sem tanta intervenção dos adultos, como na escola ou em casa.
O filme se tornou objeto de culto por algumas gerações de cinéfilos. E quando começou a ser esquecido, foi criado um site na internet para apresentá-lo às novas gerações. Só depois da cena final que eu percebi que realmente se trata de uma dessas obras que de fato merecem essa adoração. Ou ao menos o seu culto. O ideal é ver ACAMPAMENTO SINISTRO sem saber nada da história, ou pelo menos sem saber o final, já que me parece até um pouco comum sua trama – pessoas sendo mortas misteriosamente em um acampamento de verão para crianças e adolescentes. Por isso, eu recomendo que não leia este texto se não tiver visto o filme ainda.
Pois bem. O que há, então, de tão novo e de tão impactante no final deste título? É não apenas o plot twist, mas principalmente a imagem final, que de tão icônica e bizarra é acertadamente congelada e a última que fica na mente, já que os créditos logo sobem. O filme até se torna mais controverso nos dias de hoje, quando as questões de transfobia estão mais em voga. Mas eu acho complexo simplesmente taxar o filme de transfóbico. Até porque há pessoas trans que o cultuam também, valorizam-no. Além do mais, o que acontece com Angela pode, de certa forma, ser comparado, guardadas as devidas proporções, ao que vemos em A PELE QUE HABITO, de Pedro Almodóvar.
Ou seja, Angela, é na verdade Peter, que passou a ser vestido e tratado como uma menina pela tia que o/a cria, depois que um terrível acidente mata seu pai e sua irmã. Esse acidente é mostrado no prólogo. Ou seja, depois que o filme acaba podemos ver Angela também como uma criança que comete os assassinatos tanto por ser vítima constante de bullying, como por ter, de alguma maneira, ficado complexada com sua mudança imposta de gênero. Ou seja, até mesmo se pararmos para pensar nas questões psicológicas que o filme pode trazer, ACAMPAMENTO SINISTRO sai ganhando. E tudo graças a essa reviravolta final.
Como se trata de um filme com muitas mortes (afinal, é um slasher!) e um tanto de nudez (principalmente nudez masculina) imagino o quanto pode ter sido delicado lançá-lo na época – a classificação indicativa nos Estados Unidos foi a NC-17 (rated R). A jovem atriz de 13 anos Felissa Rose, que interpreta Angela, até teve que sair de uma escola depois do filme, pois começou a sofrer bullying por causa do papel e da sequência final.
ACAMPAMENTO SINISTRO é mais um desses títulos vistos graças à curadoria da Versátil. Está presente no box Slashers (o primeiro volume), que ainda traz um belo documentário de 45 minutos sobre a realização e o legado desse pequeno clássico.
+ DOIS FILMES
INCUBUS (The Incubus)
Gosto quando sou surpreendido. Um filme estar presente em determinado box, de um subgênero muito específico, como é o caso do slasher, pode mexer com nossas expectativas. Na escolha da noite, os nomes de John Hough (A CASA DA NOITE ETERNA, 1973) e de John Cassavetes funcionaram como um belo atrativo em um filme que supostamente mostraria mais uma onda de mortes causadas por um psicopata. E de fato as mortes acontecem e de maneira seguida, sangrenta e crescente, mas o filme vai seguindo caminhos misteriosos e só entrega as revelações nos instantes finais. Na trama de INCUBUS (1981), Cassavetes é um médico de uma pequena cidade litorânea que tem um passado nebuloso e uma filha adolescente. Na cidade, começam a aparecer vítimas de estupro e assassinato e, ao que parece, o criminoso tem uma força incomum. Ao mesmo tempo, um rapaz começa a acreditar que as mortes estão associadas a sonhos que ele anda tendo. INCUBUS sobe de escala muito por causa da presença apaixonada de Cassavetes, que tem uma técnica muito particular como ator (além de ser um diretor fenomenal). Sem falar que ele gosta de filme de horror, a julgar por sua forte presença em O BEBÊ DE ROSEMARY, de Roman Polanski, e A FÚRIA, de Brian De Palma. O filme tem uma estranheza atraente, até mesmo na maneira como os personagens se comportam, como se não fosse apropriado, como se algo tivesse dado errado na transposição do roteiro para a direção, mas que, no entanto, acaba deixando tudo mais charmoso. Nos extras do box Slashers XI, há uma entrevista com John Hough e ele confunde os filmes. Cita Sophia Loren, sendo que ele dirigiu Loren e Cassavetes juntos antes, em O ALVO DE QUATRO ESTRELAS (1978), outro título que merece, acredito eu, a atenção de alguma distribuidora.
O MASSACRE (The Slumber Party Massacre)
Ando tão cansado que assisti a este filme em duas partes. Preciso ver o que está acontecendo de errado com o meu corpo. A ideia de ver um slasher seria justamente ver um filme que não precisasse pensar muito, mas não sei o quanto isso cabe, já que todo filme é objeto de reflexão, e portanto necessita de energia física e mental. No caso de O MASSACRE (1982), trata-se de uma obra que até hoje desafia as pessoas que procuram vê-lo como uma obra diferenciada justamente por ser um slasher dirigido por uma mulher. Um dos poucos do gênero. A diretora Amy Holden Jones teve que escolher entre trabalhar na edição de E.T. – O EXTRATERRESTRE ou estrear na direção deste filme de orçamento bem modesto. E é um trabalho que fez sucesso, rendeu continuações e se destaca dentro do subgênero, por mais simples que sejam a proposta, os diálogos e a trama. No enredo, grupo de moças resolve fazer uma espécie de festa do pijama com pizza e vinho quando os pais de uma delas deixam a casa para viajar. O assassino com uma arma explicitamente fálica aparece para matá-las, uma a uma, e também alguns poucos rapazes. O filme explora desde o começo a nudez na cena do banheiro, de uma maneira que mais parece a visão de um adolescente tarado. É como se a diretora, sabendo das convenções e do que faria sucesso para o público alvo, resolvesse escancarar, de certa forma, esse aspecto. O MASSACRE tem um tom agradavelmente amador e isso me atrai, traz algo de belo, e o elenco feminino é bom o suficiente para ganhar a simpatia do espectador. Presente no box Slashers II.
sábado, junho 18, 2022
VERÃO VIOLENTO (Estate Violenta)
O nome de Valerio Zurlini me faz lembrar demais Carlão Reichenbach, que idolatrava seus melodramas e tinha como seu filme favorito DOIS DESTINOS (1962), cuja apreciação eu continuo me devendo. Com a partida de Jean-Louis Trintignant ontem, no dia 17, o escolhido para eu ver em homenagem ao grande ator foi o lindíssimo VERÃO VIOLENTO (1959), cuja história se passa durante a Segunda Guerra Mundial, mais exatamente no ano de 1943, e narra uma história de amor entre um rapaz rico que vive fugindo das convocações do exército e uma viúva (Eleonora Rossi Drago), uma bela mulher mais velha do que ele – pelo visto, para a sociedade daquela época, essa diferença na faixa etária era uma espécie de tabu, quase um escândalo.
A história de amor é tratada com certa simplicidade do ponto de vista da trama, mas com muita sofisticação da direção e da fotografia. A cena da dança que culmina com o beijo dos dois é das coisas mais lindas que eu já vi na vida. E tudo é muito bem preparado para que essa cena seja mágica, inclusive a iluminação e o cenário. A música de Mario Nascimbene é maravilhosa e ajuda a conduzir com paixão a história de amor, desejo e proibição do romance em um contexto histórico em que as emoções se tornam ainda mais intensas.
Gostaria de deixar registrados um ou dois parágrafos a respeito dessa cena da dança, a mais importante do filme. Ela acontece quando Carlo (Trintignant) e seus amigos, junto com Roberta (Drago) e sua prima Maddalena (Federica Ranchi), após uma diversão no circo, adentram a velha mansão do pai de Carlo. O lugar tem uma aura pesada e Carlo resolve fazer uma experiência que se mostra muito interessante, que é apagar todas as luzes para que ele abra as portas da residência e a luz da noite adentre o recinto. Uma canção é escolhida, Carlo dança com a namorada Rosanna (Jacqueline Sassard), embora quisesse mesmo dançar com Roberta, mas isso se resolve quando algo chama a atenção do lado de fora da casa: as luzes de bombardeios atingindo uma cidade próxima.
Depois que todos olham para as luzes com um sentimento misto de maravilhamento e horror, acontece uma troca de casais que beneficiará Roberta e Carlo. Os dois começam a dançar tão juntinhos que a câmera passa a se esquecer dos outros ao redor. Por alguns poucos minutos, os corpos dos dois enamorados se aproximam de tal maneira e com tanto amor que nada mais parece existir. Pelo menos até Roberta acordar um pouco do transe e correr para fora da casa. Carlo a segue e ocorre um beijo. A opção de Zurlini de filmar o beijo inicialmente à distância faz toda a diferença, dando-nos um olhar voyeurístico para aquele gesto tão íntimo dos dois, embora depois aconteça o corte para os dois mais próximos.
A direção de fotografia de VERÃO VIOLENTO é de Tino Santoni, que repetiria a parceria com Zurlini em A MOÇA COM A VALISE (1961). As imagens em preto e branco fornecem um apelo ainda mais expressivo para os sentimentos de tintas dramáticas dos personagens. Se por um lado Carlo parece ser mais contido em seus sentimentos, Roberta deixa claro o quanto está impressionada com o fato de nunca ter sentido tanto amor assim em sua vida, na cena em que os dois acordam deitados na areia da praia, depois de uma noite juntos.
É impressionante como Zurlini ainda não tem o reconhecimento devido nos cânones que elevam os principais nomes do cinema mundial. No livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer, por exemplo, não há nenhum filme dele em destaque. Nem mesmo aquele que é talvez o mais famoso, A PRIMEIRA NOITE DE TRANQUILIDADE (1972), que eu lembro de ser destaque da revista SET em seus áureos tempos.
Mas falemos um pouco do ator homenageado que nos deixou. Jean-Louis Trintignant (1930-2022) talvez tenha chamado primeiramente minha atenção com o excelente A FRATERNIDADE É VERMELHA (1994), o último longa de Krzysztof Kieslowski, visto nos primeiros anos de minha cinefilia. Talvez eu já tivesse visto o thriller político Z (1969), de Constantin Costa-Gavras em VHS, mas não tenho certeza disso. Outros dois filmes maravilhosos protagonizados por Trintingnant e que vi em casa foram o western O VINGADOR SILENCIOSO (1968), de Sergio Corbucci, e a comédia dramática MINHA NOITE COM ELA (1969), de Éric Rohmer. No fim da carreira, o ator ganharia muito destaque no impactante AMOR (2012), de Michael Haneke. O último filme dele que vi no cinema foi OS MELHORES ANOS DE UMA VIDA (2019), uma das continuações do clássico UM HOMEM, UMA MULHER (1966), de Claude Lelouch. Há vários outros filmes com a presença deste grande ator que ainda não tive a oportunidade de ver, mas com o tempo conhecerei ao menos parte deles.
+ DOIS FILMES
TRIUNFOS DE MULHER (Night Nurse)
Cada vez tenho gostado mais das produções americanas dos anos 1930. A estranheza ocasionada pelo som ainda incipiente na indústria me dá uma sensação muito gostosa, assim como o estilo de atuação. Sem falar que é como entrar numa máquina do tempo que nos leva a momentos e a comportamentos um pouco mais diferentes do que estamos acostumados a ver em filmes hollywoodianos. Este TRIUNFOS DE MULHER (1931) me atraiu pela direção de William A. Wellman e pela presença de Barbara Stanwyck, que considero uma das atrizes mais brilhantes do cinema americano. Aqui ela está novinha, com vinte e poucos anos, e no papel de uma jovem que busca a profissão de enfermeira. A primeira meia hora do filme a apresenta na rotina de trabalhar como enfermeira noturna em um hospital. O restante do filme, curtinho, a torna heroína de uma trama envolvendo um gângster simpático e um chofer malvado numa situação de uma família problemática e crianças doentes. Clark Gable aparece em papel que antecipa um pouco o jeito machão de seus filmes mais famosos. O final é empolgante e divertido.
GREAT FREEDOM (Große Freiheit)
Este filme dirigido por Sebastian Meise trata de uma situação que renderia diversos outros títulos, que é a questão da criminalização da homossexualidade, que na Inglaterra também era crime passível de cadeia até 1967. Na Alemanha (Ocidental), onde se passa a história, essa lei continuou por ainda mais tempo, e é nesse período, que vai de 1945 até o início dos anos 1970, que se passa a trama de GREAT FREEDOM (2021), documentando a trajetória de idas e vindas ao cárcere de Hans Hoffmann, vivido por Franz Rogowski. Aliás, que bela interpretação a desse ator, que inclusive emagrece bastante para viver o personagem em momento imediatamente posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial. Como a trama não é contada de maneira tão linear, alguns eventos só são conhecidos à medida que vamos nos adaptando àquele ambiente sujo e opressivo. Há até um ou outro momento de ternura, mas no geral é um filme bem seco. Até a fotografia evita cores mais vivas e abraça a vida não vivida, apenas sobrevivida.
quinta-feira, junho 16, 2022
AMOR À FLOR DA PELE / IN THE MOOD FOR LOVE (Fa Yeung Nin Wah)
É muito curioso o fato de que o último texto que escrevi para o blog (já faz mais de um semana. :/) tenha sido sobre MURIEL, de Alain Resnais, e agora seja sobre AMOR À FLOR DA PELE (2000), de Wong Kar-Wai, revisto depois de mais de 20 anos. A primeira vez foi em película no dia 14 de julho de 2001, no Cinema do Dragão, que ainda se chamava Espaço Unibanco Dragão do Mar. Na época, não foi um filme que me deixou apaixonado. Talvez por eu não ter entendido muito bem, talvez por ser um período da minha vida em que ainda não tinha me restabelecido completamente do fim de um relacionamento estável. E o filme de Kar-Wai demanda atenção, demanda percepção e um olhar tão racional quanto sensível às imagens e aos sentimentos dos personagens. Agora, revendo numa cópia DCP 4K remasterizada lindona, pude perceber muito mais sua beleza e sua importância justíssima na história do cinema.
Agora eu vejo que muito da graça do filme está em não ser tão fácil de compreender, em não sabermos detalhes que o próprio Kar-Wai esconde do espectador, como a dúvida que fica sobre se o casal de protagonistas faz ou não faz sexo. Ou a decisão de nunca mostrar seus cônjuges, tornando a narrativa mais misteriosa. O fato de Kar-Wai mudar diversas vezes o figurino da personagem de Maggie Cheung também desnorteia um pouco. Mais ou menos como fez Resnais em seu MURIEL, quando mudou mobílias de lugar na mesma cena.
Acredito que ver os filmes anteriores do cineasta chinês ajude mais a compreender AMOR À FLOR DA PELE – há personagens em comum, por exemplo, com DIAS SELVAGENS (1990). Saber um pouco mais da história de Hong Kong também pode ajudar. O território passou mais de 150 anos sob domínio britânico e só foi devolvido à China em 1997. E no meio disso tudo houve a dominação japonesa nos anos da Segunda Guerra. Nesse ínterim, Hong Kong criou sua própria identidade, identificando-se tanto com o ocidente quanto com a China, presente de modo mitológico em tantos filmes de kung fu produzidos durante a primeira geração de cineastas do território.
O próprio personagem de Tony Leung, o sr. Chow, está trabalhando na confecção de um roteiro para um filme de artes marciais. (Ou seria um romance? Não lembro mais.) Curiosamente, quem mais vai ao cinema é a sra. Chan de Maggie Cheung. O sr. Chow apenas diz: eu já fui muito ao cinema antes. Sabendo que seus cônjuges estão os traindo, eles começam a se aproximar e a relação dos dois ganha um contexto de possível caso amoroso, embora nunca fique muito claro até que ponto a aproximação dos dois foi consumada. Isso se aproxima um pouco do sentimento de proibição que estava no ar naquela Hong Kong ainda muito tradicionalista e moralista dos anos 1960. E isso deixa claro o quanto o território ainda não estava tão atrelado assim às modernidades da contracultura do mundo ocidental, pelo menos no que se refere aos relacionamentos.
Há uma cena que diz muito disso. A sra. Chan entra escondida no quarto do sr. Chow e ela acaba tendo que ficar mais de um dia lá, já que seus quartos eram conjugados e uma senhora iria passar a noite inteira jogando com seus amigos. O espaço onde eles vivem é como uma pensão familiar e, portanto, sem privacidade.
Kar-Wai esbanja elegância e sensualidade, especialmente nas vezes que vemos Maggie Cheung caminhando pela cidade ou pelos becos em slow motion e ao som da trilha de Michael Galasso (AMORES EXPRESSOS, 1994) e Shigeru Umebayashi (2046 – OS SEGREDOS DO AMOR, 2004). A trilha é carregada de uma melancolia bem pesada e as canções em espanhol cantadas por Nat King Cole também enfatizam o sentimento de estarmos vivendo em um passado quase remoto.
O sentimento de abandono é tão forte, especialmente do ponto de vista da personagem de Maggie Cheung, que a relação amorosa (ou de amizade) que ela passa a estabelecer com o personagem de Leung passa a ser menor. De certa forma é compreensível que Leung ame mais Cheung do que ela a ele. A própria câmera namora o balançado do corpo da mulher, sempre vestida com roupas que fazem jus à sua exuberância.
Como o estilo de Kar-Wai se sobrepõe ao sentimento dos amantes abandonados, não fiz a mesma torcida pelo casal como fiz com outra produção de Hong Kong, COMPANHEIROS – QUASE UMA HISTÓRIA DE AMOR, também estrelada por Cheung e mais próxima de uma comédia romântica convencional, se comparada com o impacto visual e narrativo do filme de Kar-Wai. Mesmo assim, e apesar de meu corpo ainda não estar suficientemente favorecendo as apreciações fílmicas, rever AMOR À FLOR DA PELE foi bom demais. E acredito que tenderá a crescer mais ainda nas futuras revisões. Quem sabe um dia eu volto aqui para escrever um texto mais decente sobre o filme. De todo modo, há toneladas desses textos mais aprofundados na internet, que só provam que escrever sobre esta obra parece ser sempre insuficiente, seja pelo que percebemos (especialmente na forma), seja pelo que ainda precisamos aprender ou notar.
+ DOIS FILMES
TRE PIANI
Um filme que traz imenso prazer em seu terço inicial, principalmente, mas que infelizmente vai perdendo a força à medida que avança em sua estrutura narrativa. Como nenhuma das três histórias é exatamente excelente, talvez a opção de amarrá-las em um único filme tenha sido uma alternativa interessante. E com alguma frequência TRE PIANI (2021), de Nanni Moretti, funciona, embora na maioria das vezes não faça muita diferença esse link. A história liderada por Ricardo Scarmacio, que sofre com um evento envolvendo a filha e depois com uma situação com uma jovem, talvez seja a que mais apresenta elementos dramáticos mais densos. Ainda assim, é a história liderada por Alba Rohrwacher que tem mais potencial trágico, levando em consideração a doença e a solidão da protagonista. Enquanto isso, Margherita Buy, a atriz de MIA MADRE (2015), é a que lidera o mais representativo dos temas que Moretti tem abordado nas últimas duas décadas, como a dor da ausência do filho. As outras histórias também tratam de temas caros ao diretor. Por mais que não tenha sido o sucesso que gostaríamos que fosse, é sempre bom acompanhar o trabalho de um diretor maduro e talentoso.
LAÇOS DE SANGUE (Hard, Fast and Beautiful)
E eis que, para minha surpresa, LAÇOS DE SANGUE (1951), o meu filme favorito da Ida Lupino na direção, não trata de nenhum tema trágico ou com uma carga de horror intensa. Trata-se de um lindo trabalho sobre ambição, carreira, escolhas, e mais um bocado de coisas que dão muito o que falar. Fiquei feliz de ter ido ver no Cineclube da Mostra “Ida Lupino - Subversão e Resiliência” anos atrás, em vez de ter deixado pra ver em casa. O debate também foi bastante enriquecedor. Na trama, uma jovem prodígio do tênis é forçada a escolher entre um romance e as ambições de sua mãe.
domingo, junho 05, 2022
MURIEL (Muriel ou le Temps d’um Retour)
Estava procurando alguma coisa no meu acervo de livros sobre MURIEL (1963) e acabei me deparando com esta quarta capa do livro Os Filmes da Minha Vida 4 – O Real e o Imaginário, organizado por Renata de Almeida. Há nesta quarta capa os dez mandamentos de um cinéfilo, criados por Leon Cakoff. Um deles me chamou a atenção e tem tudo a ver com a minha relação com o filme visto: “reconhecer a sua própria ignorância, pois ninguém nasce sabendo (quem não reconhecer a sua ignorância continuará ignorante)”. Um outro que pode valer também é “Na dúvida, ao final de um filme, não emitir opinião errada”. Como eu costumo escrever sempre pequenos textos (para o álbum do Facebook e para o Letterboxd) sobre minha relação com o filme recém-visto, então, relevem: são apenas impressões que podem mudar com o tempo, seja pela maneira como o filme permanecerá (ou não) em minha memória, seja através de estudos que me ajudam a abrir os olhos sobre a obra em questão.
O cinema de Alain Resnais não é sempre fácil. Mas, assim como apenas na terceira tentativa consegui ver (e adorar) 2001 – UMA ODISSEIA NO ESPAÇO, de Stanley Kubrick, também foi só na terceira vez que vi HIROSHIMA, MEU AMOR (1959), dessa vez no cinema, que eu percebi o quanto a poesia desse filme é mágica e impressionante. Por isso, por mais que a minha experiência com qualquer filme de Resnais não tenha sido das mais “agradáveis”, eles sempre serão encarados por mim com o maior respeito e reverência.
Por ocasião do centenário de Resnais (em 3 de junho), lá fui eu pegar uma de suas obras do box O Cinema de Alain Resnais, da Versátil. Escolhi o mais antigo, dentre os inéditos pra mim, e a escolha pode ter sido a mais difícil, para lembrar de um termo familiar nos dias de hoje. Talvez porque o cineasta tenha acabado de sair de O ANO PASSADO EM MARIENBAD (1961), sua experiência mais radical do ponto de vista formal e narrativa, e seguia querendo inovar, com seu cinema ainda bastante desafiador.
MURIEL é confuso, mas muitas vezes isso serve para nos fazer questionamentos (em vários momentos eu gesticulei para a televisão, como aquele meme do John Travolta) e por isso mesmo nos manter acesos. Muitas dessas dúvidas que me surgiram tiveram a ver com as motivações dos quatro personagens principais, todos misteriosos e sem muita certeza do que lembram e do que queriam no passado ou querem no presente, especialmente o casal mais velho, Hélène (Delphine Seyrig) e Alphonse (Jean-Pierre Kérien). O casal mais jovem vive um outro tipo de angústia, especialmente Bernard (Jean-Baptiste Thiérrée), atormentado por um passado recente na Guerra da Argélia, quando conheceu uma moça chamada Muriel. Já Françoise (Nita Klein) tem um tipo de relação pouco compreensível com os dois personagens masculinos.
Resnais brinca com uma montagem que salta tão rapidamente que é preciso muita atenção. Na análise sobre o filme presente no box, soube que o diretor mudava o cenário no meio de uma cena, ou mudava a posição dos móveis com frequência. Além disso, percebi que os dias se confundem com as noites e a noção do tempo também se torna difusa. Por isso, de certa forma os dramas dos personagens afetam pouco a audiência, pelo menos de uma maneira mais convencional, já que há toda uma questão da narrativa fragmentada que faz com que a experiência de ver MURIEL seja um desafio do primeiro ao último minuto. Logo no começo, fiquei bastante incomodado com o fato de a casa ser próxima à praia (como Hélène informa) e demorarmos muito a ver a tal praia. Pode ser um incômodo banal, mas faz parte de um tipo de desconforto proposital que Resnais parece querer trazer.
A própria escolha da locação, a cidade costeira de Boulogne-sur-Mer, é deliberada, já que é uma cidade cuja área foi 85% comprometida com as explosões na época da Segunda Guerra. Ou seja, é uma cidade que convive com prédios reconstruídos e uma parte antiga, ainda de pé. Ambas as partes da cidade são mostradas e também contribuem com a sensação de deslocamento. A própria casa de Hélène é um antiquário e sempre aparece diferente, já que ela trabalha vendendo vários móveis antigos. Assim como a cidade e a casa de Hélène, a vida dos quatro personagens principais também está em processo de reconstrução. E muitas vezes de perda da memória.
Outra sensação de estar perdido vendo MURIEL está nos diálogos. Como os personagens evitam se comunicar, ou falar a verdade, ficamos sem compreender certas ações. Em certo momento, Françoise conversa com um dos personagens e reclama com o fato de ele não conseguir completar uma frase. Essa cena é bastante representativa da nossa relação com a obra, mas também do quanto Resnais intenciona nos colocar um pouco na posição confusa daqueles seres humanos deslocados e sensíveis. Assim, o passado parece ao mesmo tempo distante e imaginário, principalmente para os personagens mais velhos (Hélène e Alphonse), que foram namorados durante a juventude e o fato de terem rompido é algo que se tornou uma espécie de trauma para os dois.
A personagem-título é uma mulher que nunca aparece e que seria a namorada de Bernard. De acordo com o que vemos nas cartas do rapaz e em um relato narrado, a moça teria sido alguém que fora torturada e morta na guerra da Argélia, acusada de sabotagem. Bernard diz ter uma namorada com esse nome, mas Hélène, por exemplo, nunca a viu. Seria Muriel uma criação da mente de Bernard para afastar um possível sentimento de culpa? Aliás, a guerra da Argélia (1954-1962) era um assunto que rendia censura na época, como foi o caso de O PEQUENO SOLDADO, de Jean-Luc Godard, que só foi liberado pela censura após o fim da guerra. MURIEL foi provavelmente liberado pois a guerra já havia acabado em 1963.
Quando Alphonse surge na casa de Hélène, ele chega acompanhado de uma mulher mais jovem, que diz ser sua sobrinha, embora na verdade eles tenham sido amantes. Françoise, por sua vez, procura se aproximar de Bernard, o que não é fácil, já que ele é um rapaz de comunicação complicada. Lá pelo final do filme, inclusive, vemos uma outra moça que seria a namorada de Bernard, uma jovem com um visual andrógeno, que, por conta da montagem cada vez mais fragmentada, é uma personagem de que pouco sabemos.
MURIEL não é um filme de travellings. Em vez do uso da movimentação de câmera, Resnais prefere os cortes rápidos. Mesmo quando usa o campo/contracampo, isso é às vezes mostrado de maneira distinta do que estamos acostumados. Como o diretor se declarava fã de quadrinhos, também usou com bastante frequência falas vindas de uma cena anterior na cena seguinte. Não chega a ser um recurso tão complicado, mas talvez tenha causado um pouco de incompreensão na época. Imagino que isso seja não apenas um recurso mais moderno de narração, mas uma adição para o sentimento de deslocamento mental e às vezes completa incompreensão do que está acontecendo. E quando achei que o filme já nos deixou suficientemente confuso, eis que o final me deixa sem chão. De todo modo, adoraria ter a chance de rever MURIEL no cinema. Seria incrível.
+ DOIS FILMES
O TETO (Il Tetto)
Um filme como este, que deixa um calorzinho no coração, se faz necessário nos dias de hoje. Me fez lembrar O PÃO NOSSO, de King Vidor, no que se refere ao espírito coletivo em prol de uma ação nobre, mas é muito mais humilde. Quando vemos o casal de O TETO (1956), vivido por Gabriela Pallotti e Giorgio Listuzzi, se casando e depois partindo para morar na casa pobre e já cheia de gente da família do noivo, do quanto aquilo tudo é desconfortável, tenso e carente de privacidade, isso é só o começo para nos prepararmos para a jornada do casal por um espaço para morar, quatro paredes e um teto, tendo muito pouco dinheiro no bolso e tentando burlar as leis municipais para conseguir o seu sonho. O grau de humanidade deste filme de Vittorio De Sica o coloca, pra mim, como um de seus melhores trabalhos. O roteiro é de Cesare Zavattini, parceiro de outros grandes trabalhos do diretor, como LADRÕES DE BICICLETA (1948), DUAS MULHERES (1960), entre outros. De dar gosto. Filme presente no box O Cinema de Vittorio De Sica.
NÃO AMARÁS (Krótki Film o Milosci)
A vantagem de a memória nos ser falha é que vemos alguns filmes como se fosse a primeira vez. Os filmes do Krzysztof Kieslowski têm esse poder de se tornarem melhores ainda na revisão, de haver sempre detalhes a serem percebidos. NÃO AMARÁS (1988) é até um dos mais acessíveis em sua narrativa muito clara sobre a paixão/obsessão de um rapaz por uma mulher. Ele a espia todos os dias com uma luneta, até que começa a querer se aproximar fisicamente dela. É o JANELA INDISCRETA do Kieslowski. Há um pouco de suspense, mas o que há mesmo é um manancial de emoções. E o que é aquele final, meu Deus?! É como se o filme (aquilo que é assistido) olhasse para o espectador e percebesse a beleza da imaginação. Que coisa linda!
sábado, junho 04, 2022
IRMA VEP
Antes de mais nada, queria deixar registrado o meu agradecimento a Olivier Assayas e ao filme IRMA VEP (1996), em particular, por ter conseguido me manter ligado e tranquilo do início ao fim. Pode parecer bobagem dizer isso, levando em consideração que o filme não tem nem 100 minutos, mas ultimamente ando exausto, suspeitando que estou com esgotamento físico, burnout, ou talvez até sintoma da chamada Covid prolongada. Ou talvez apenas seja consequência do cansaço físico e mental que o retorno às aulas presenciais, em particular em uma das escolas, me provocou. Ou talvez o problema não seja necessariamente da escola, mas do momento, do pós-pandemia. Aliás, nem é pós-pandemia, pois o vírus anda circulando e matando ainda. Enfim, deixando a culpa de lado, o fato é que revi IRMA VEP com uma sensação muito agradável de estar bem e feliz diante desta pequena obra-prima.
O filme foi a primeira obra de Assayas que vi, graças ao meu amigo Renato Doho, que o gravou em uma fita VHS no início dos anos 2000. Até é possível ler um pequeno comentário meu escrito no blog em 2003. Esse período, o início do milênio foi muito importante pra mim, como um momento de descoberta e de compreensão de que o mundo do cinema era muito maior, empolgante e inesgotável do que eu imaginava.
O primeiro filme de Assayas a ser exibido em circuito local foi CLEAN (2004), para se ter uma ideia – posso estar enganado e algum anterior ter sido exibido discretamente, mas acho bem pouco provável. Certos títulos dos anos 2000 do cineasta, só pude vê-los em seus lançamentos em DVD, como ESPIONAGEM NA REDE (2002) e TRAIÇÃO EM HONG KONG (2007). Ou seja, apesar de Assayas ser um diretor cultuado, demorou a ser um cineasta com forte presença nas telonas da minha cidade.
Com IRMA VEP, Assayas constrói um filme tão saboroso que dá vontade de viver dentro dele. Destaco principalmente a cena do jantar, com a câmera passeando por diversos lugares da casa (adoro também a personagem de Nathalie Richard), mas também aquela cena fantástica do sonho (?), que começa ao som de Sonic Youth, e depois vemos Maggie Cheung na tentativa de roubar um colar – uma prova de que Assayas também dominaria um filme de gênero tranquilamente, como faria posteriormente com PERSONAL SHOPPER (2016).
E há aquela cena de Maggie dando uma entrevista para um repórter fã de John Woo, que desperta ao mesmo tempo riso e raiva do tal sujeito – mais adiante, com ACIMA DAS NUVENS (2014), veríamos uma discussão acalorada sobre a questão cinema americano comercial vs. cinema francês de autor. Outro acerto de Assayas é escalar uma atriz e nos deixar tão apaixonados por ela quanto o próprio diretor. O filme brilha com a beleza de Maggie Cheung e seu jeito, ao mesmo tempo tranquila e tímida, diante daquele mundo novo. E quando achamos que o filme não nos surpreenderia, vêm aquelas imagens finais fantásticas e que hoje, com o digital imperando, parecem ser ainda mais tributárias do cinema, como uma arte quase palpável na era analógica.
Assayas tem como uma de suas marcas esse abraçar a cultura pop, o rock, o cinema americano, embora deixe bem claro que o tipo de cinema que realiza é mais aproximado mesmo do cinema francês, embora com um viés mais moderno, por assim dizer. Daí essas discussões, essas piscadelas, esses atritos, acontecerem com certa frequência. No caso de IRMA VEP, há uma ligação forte com o seriado para cinema OS VAMPIROS (1915). É desse seriado que vem a personagem título, que no clássico de Louis Feuillade é interpretado pela lendária Musidora, atriz extremamente carismática e expressiva que também se aventuraria pela direção.
O diretor de IRMA VEP, René Vidal, vivido por outro ator lendário, Jean-Pierre Léaud, mais conhecido por suas colaborações com François Truffaut (mas não apenas), traz Maggie Cheung, vivendo “a si mesma”, saindo de Hong Kong para Paris para ser a nova Irma Vep nesse projeto de um diretor com pinta de gênio. Vidal havia visto Cheung em algumas fitas de ação, como HEROIC TRIO, de Johnnie To, e não consegue tirar da cabeça que ela seria a Irma Vep perfeita. A atriz aceita, com muita simpatia e generosidade, ser a protagonista do filme. O problema é que as filmagens já começam de maneira muito tumultuada, com o cineasta entrando em uma espécie de colapso nervoso. Enquanto isso, Maggie fica sabendo que é desejada pela assistente Zoé (Nathalie Richard). É Zoé quem adequa o figurino de látex ao corpo de Maggie. Um tipo de figurino, aliás, muito próximo de uma fantasia de sadomasoquismo, algo que parece ser uma obsessão de Assayas, vide ESPIONAGEM NA REDE.
O crítico Franck Le Gac, em texto para a coluna "Great Directors", do site Senses of Cinema, diz sobre Assayas:
Seu foco tende a ser mais nos momentos íntimos, aparentemente insignificantes e banais da vida cotidiana, sua fisicalidade e materialidade humildes – e como muitas vezes elas dão visibilidade a dilemas morais e sentimentos equívocos de modo melhor do que os diálogos ou, obviamente, do que os códigos de atuação. (tradução minha)
Ou seja, quando vemos uma cena como a de Maggie e Zoé no táxi, a caminho de uma rave, e depois a conversa das duas, ou a já citada sequência do jantar, percebemos o quanto esses momentos aparentemente insignificantes se tornam grandes e extremamente importantes dentro do filme. E também vemos o quanto de herança Assayas recebeu dos vários cineastas da Nouvelle Vague. E o quanto ele amplia a influência do globalismo na sociedade francesa – isso, inclusive, é tema de outros de seus trabalhos posteriores, seja como debate, seja como parte orgânica da narrativa.
+ DOIS FILMES
A IGUALDADE É BRANCA (Trois Couleurs: Blanc)
É interessante ver um Krzysztof Kieslowski mais leve, fazendo uma comédia no meio de dois filmes bem dramáticos da trilogia das cores. A IGUALDADE É BRANCA (1994) é geralmente o menos querido dos três, e eu diria o mesmo, mas é uma obra que merece mais carinho. É uma espécie de versão leve da história do homem que tenta algo muito louco para recuperar a mulher amada, algo visto em tom mais sombrio na obra-prima NÃO AMARÁS (1988). É também um filme que respira muito bem, especialmente quando o protagonista retorna à Polônia, local da maior parte da narrativa. Há também uma bonita história de amizade no meio de tudo.
A FRATERNIDADE É VERMELHA (Trois Couleurs: Rouge)
É ser muito afortunado poder ver no cinema, em um espaço de dois dias (isso foi em 2020), duas obras-primas de Krzysztof Kieslowski estreladas pela lindíssima Irène Jacob – o outro foi A DUPLA VIDA DE VÉRONIQUE (1991). Em A FRATERNIDADE É VERMELHA (1994), a atriz traz uma carga de sensibilidade, de bondade e de fragilidade tão fortes que, a cada vez que ela é confrontada com a figura do velho amargurado vivido por Trintignant, é como se estivéssemos prestes a ver um copo de cristal se quebrar. No entanto, ela fica e tenta entender aquele homem, os seus atos. Mais uma vez, o cineasta lida com o cruzamento de destinos e também com um tipo de amor universal de uma maneira mais leve do que em A LIBERDADE É AZUL (1993). Além do mais, em vez de um choro em meio a uma conclusão quase feliz, o que temos é um sorriso após uma tragédia.
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