domingo, novembro 27, 2022

ATÉ OS OSSOS (Bones and All)



Luca Guadagnino tem uma carreira no mínimo interessante. Apesar de ele ter ficado conhecido mundialmente pelo seu belo retrato do desabrochar juvenil de ME CHAME PELO SEU NOME (2017), o diretor italiano já possui 32 títulos em seu currículo, entre curtas e longas, entre ficção e documentário. Percebe-se que ele tem um interesse em experimentar. Gosta de histórias de amor, mas também tem um interesse forte no cinema de horror, como deu para notar quando optou por fazer uma reinvenção de um clássico de Dario Argento em SUSPÍRIA – A DANÇA DO MEDO (2018). Não podemos esquecer que um de seus primeiros filmes a estrear em grande circuito foi 100 ESCOVADAS ANTES DE DORMIR (2005), que, pelo que me lembro, foi tão polêmico quanto massacrado pela crítica na época de seu lançamento. Por algum motivo, acabei não vendo. Agora, passados alguns anos e com uma filmografia mais sólida como autor, me deu vontade de conferir esse título.

ATÉ OS OSSOS (2022) une o coming of age de ME CHAME PELO SEU NOME com o horror de SUSPÍRIA – A DANÇA DO MEDO, trazendo a história de uma garota de 18 anos (Taylor Russell) que se vê numa situação difícil quando o pai a larga à própria sorte depois de um evento já aguardado: a menina tem compulsão por carne humana. Agora ela tem a tarefa de encontrar um meio de se adaptar ao mundo, um mundo de cidades fantasmas da América profunda dos anos 1980. Sua tarefa, agora que o pai a deixou com uma gravação numa fitinha cassete explicativa, é encontrar a mãe. No meio disso, porém, ela acaba encontrando dois personagens que também possuem esses traços canibais, um homem mais velho vivido por Mark Rylance e um jovem interpretado por Timothée Chalamet.

Como eu gosto muito de ser surpreendido, ATÉ OS OSSOS foi um filme que me ganhou em muitos aspectos. Guadagnino mistura gêneros para falar de amor, desejo e necessidade de maneira muito crua e que pode incomodar espectadores mais sensíveis. Na sessão em que estive, algumas pessoas deixaram a sala na cena em que a garota e o canibal velho se alimentam do corpo de uma senhora idosa. Há detalhes que ajudam a enfatizar o aspecto mais perturbador da condição desses personagens, embora seja fácil ver essa condição muito parecida com a de dependentes químicos que precisam de uma droga para seguir com suas vidas. A diferença aqui é que esse “esporte” envolve matar pessoas, e é isso que deixa a personagem de Taylor Russell bastante incomodada. Ela é como o novo vampiro Louis, de ENTREVISTA COM O VAMPIRO: sabe de sua condição especial, mas acredita que precisa evitar ao máximo o sacrifício de pessoas inocentes.

Entre as várias surpresas que ATÉ OS OSSOS traz há uma participação muito especial de Chloë Sevigny como a mãe da protagonista. Aliás, quem viu a atriz em AMERICAN HORROR STORY – ASYLUM sabe que ela não tem problema nenhum em fazer personagens bem fora do comum. Isso vale para outros papéis bem desafiadores feitos por ela, como KIDS, HIT & MISS, THE BROWN BUNNY e DESEJO PROIBIDO. Abrir esses parênteses para falar de Sevigny pode ter sido desnecessário, mas acho importante chamar a atenção para a coragem da atriz de se entregar a diferentes personagens.

Outra coisa desconcertante de ATÉ OS OSSOS é a trilha sonora muitas vezes romântica de Trent Reznor e Atticus Ross (dupla geralmente parceira de David Fincher). Essa trilha, que enfatiza a história de amor de Maren (Russell) e Lee (Chalamet), parece por vezes destoar das passagens sangrentas que surgem ao longo do filme, mas por isso mesmo achei muito interessante, por mais que eu não tenha me comovido com o amor dos dois. O que mais me interessa acaba sendo essa história fora do comum e o tempero venenoso usado nas cenas de horror (não podemos esquecer o momento do filme com a participação perturbadora de Michael Stuhlbarg e David Gordon Green), sendo que muitas delas ficarão em minha memória por muito tempo, acredito eu.

A adaptação do romance juvenil de Camille DeAngelis caiu como uma luva no cinema de Guadagnino, tão interessado nos prazeres da juventude e em suas dores e angústias. O interesse do diretor pela juventude também será foco de seu próximo trabalho, CHALLENGERS, estrelado por Zendaya, a ser lançado em 2023.

+ UM ANÚNCIO IMPORTANTE

17º FEST ARUANDA

O Fest Aruanda de 2022, festival tradicional de cinema brasileiro que acontece em João Pessoa – PB, que ocorrerá entre os dias 1 a 7 de dezembro, anuncia seus títulos selecionados. Para mais detalhes, veja a programação completa no site do festival. Seguem as listas das mostras principais:

Mostra Competitiva de Longas NACIONAL

ANDANÇA – OS ENCONTROS E AS MEMÓRIAS DE BETH CARVALHO (Doc, RJ), de Pedro Bronz
BIA (Fic, PE), de Taciano Valério
FAUSTO FAWCETT NA CABEÇA (Doc, RJ), de Victor Lopes
LUPICÍNIO RODRIGUES – CONFISSÕES DE UM SOFREDOR (Doc, SC), de Alfredo Manevy
PÉROLA (Fic, RJ), de Murilo Benício
PROPRIEDADE (Fic, CE), de Daniel Bandeira

Mostra Competitiva de Curtas NACIONAL

MERGULHO (Fic, SP), de Marton Olympio e Anderson Jesus
TIRO DE MISERICÓRDIA (Fic, MG), de Augusto Barros
CARTA PARA GLAUBER (Doc, RJ), de Gregory Baltz
DÉJÀ VU (Fic, PB), de Carlos Mosca
DESEJO E NECESSIDADE (Fic, PB), de Milso Roberto
SANGUE POR SANGUE (Fic, PB), de Ian Abé e Rodolpho de Barros
SAINDO COM ESTRANHOS DA INTERNET (Anim, SP), de Eduardo Wahrhaftig
QUARENTENA (Fic, PR), de Adriel Nizer e Nando Sturmer
ELES NÃO VÊM EM PAZ (Fic, SP), de Pedro Oranges e Victor Silva
SOCORRO (Doc, RJ), de Susanna Lira
FILME DE QUARTO (Fic, SP), de Raffaella Rosset
TEKOHA (Doc, SP), de Carlos Adriano

Mostra Competitiva de Longas SOB O CÉU NORDESTINO
 
CORDELINA (Doc, PB), de Jaime Guimarães
FIM DE SEMANA NO PARAÍSO SELVAGEM (Fic, PE), de Severino
MANGUEBIT (Doc, PE), de Jura Capela
PATERNO (Fic, PE), de Marcelo Lordello
PEQUENOS GUERREIROS (Fic, CE), de Bárbara Cariry

Mostra Competitiva de Curtas Paraibanos SOB O CÉU NORDESTINO

ARATU (Fic), de Firmino de Almeida
A PRAÇA DO JOÁS (Doc), de Gutenberg Pequeno
ANJOS CINGIDOS (Anim), de Laercio Filho e Maria Tereza Azevedo
A ESPERA (Doc), de Ana Célia Gomes
CALUNGA MAIOR (Fic), de Thiago Costa
ERA UMA NOITE DE SÃO JOÃO (Anim), de Bruna Velden
NÃO EXISTE PÔR DO SOL (Fic), de Janaína Lacerda
O REBANHO DE QUINCAS (Fic), de Hipólito Lucena e Rebeca Souza
RENDEIROS (Doc), de Romero Sousa

quinta-feira, novembro 24, 2022

OS ASSASSINOS (The Killers)



Cada vez eu ando mais confuso com relação aos filmes a que eu realmente assisti, principalmente quando não tenho um registro deles. Na minha cabeça, por exemplo, eu já vi OS ASSASSINOS (1946), de Robert Siodmak, seguido de seu remake homônimo feito para a televisão por Don Siegel em 1964. De todo modo, rever o clássico agora de Siodmak foi como se o visse pela primeira vez. Até porque há um detalhe muito importante, que foi o quanto eu me deixei enganar, assim como o protagonista, pela femme fatale de Ava Gardner, o quanto também caí como um patinho, enfeitiçado por sua beleza arrebatadora, quando tudo, no roteiro, nas falas e até na música do Miklós Rózsa, já deixavam claro que aquela mulher representava a ruína do personagem de Burt Lancaster, assassinado logo no início do filme, e que depois surge como uma espécie de fantasma, a partir dos flashbacks de terceiros. A estrutura desses flashbacks, aliás, faz lembrar CIDADÃO KANE, mas eles são embaralhados em sua ordem cronológica.

Vale lembrar que o filme adaptou o conto de Ernest Hemingway e o fato de o escritor americano ter tirado a própria vida aos 61 anos pode trazer luz para o personagem do Sueco (Lancaster), o cara que, sabendo que está prestes a ser assassinado, fica esperando a morte chegar sem tentar se defender. Ou seja, logo de cara vemos que o filme é sobre desencanto, sobre desistir da vida. E imagino que isso já transpareça no conto de Hemingway. O que os roteiristas (um deles, John Huston, não creditado) tiveram que fazer após a morte do personagem Sueco foi usar muita criatividade para pensar em um grande motivo para esse desencanto do protagonista.

Quando vemos Ava Gardner, porém, tão cheia de beleza, no esplendor dos seus 23 anos, debutando finalmente como estrela em Hollywood, é fácil perceber os motivos desse homem ter caído em desgraça. Claro que não apenas pela beleza pura e simples da mulher, mas, como veremos ao longo dos flashbacks, pelo seu jogo duplo, pela falsidade, crueldade e egoísmo dela (a última cena com a personagem deixa bem claro esse aspecto de sua personalidade).

Interessante que o homem encarregado de investigar o caso, o corretor vivido por Edmond O'Brien, terceiro creditado, acaba tendo muito mais tempo de tela que Gardner e talvez até mais do que Lancaster, mas dá para entender que Lancaster é o protagonista, o dono da história, por assim dizer, ainda que um herói triste, enquanto O’Brien representa uma espécie de um quase espectador, entusiasmado por estar vivendo dentro de uma aventura noir investigativa.

Quanto aos 15 minutos iniciais do filme, que foi o que realmente esteve presente na obra literária de Hemingway, esses instantes são tão impressionantes que tudo o mais que viria a seguir parece menor. A cena é tensa e sufocante, as imagens têm uma beleza plástica de encher os olhos, desde os instantes iniciais, com apenas a sombra dos assassinos se aproximando do estabelecimento, ao som da música que antecipa o tom de ameaça. A cena é tão boa que inspirou o famoso quadro Nighthawks, de Edward Hopper. Além do mais, é importante lembrar que o grande Andrei Tarkóvski fez um curta-metragem no início de sua carreira inspirado no conto de Hemingway também.

Essencial para o ciclo dos filmes noir, OS ASSASSINOS já impressiona pelo preto e branco extremamente contrastante e expressionista e pela já citada trilha sonora carregada de violência e inspiração. Nem todo momento me pegou – acho que a segunda metade do filme tem um problema de ritmo –, mas quando o filme brilha é impressionante. Adoro o momento do encontro de Lancaster com Gardner, da conversa na prisão, do retorno para um novo e perigoso golpe, e de uma das últimas sequências, a do restaurante, que parece um último ato de uma ópera, e é quando o diretor brinca mais com os movimentos de câmera.

Quanto a Robert Siodmak (SILÊNCIO NAS TREVAS, 1946), o homem que é praticamente sinônimo de film noir, trata-se de um dos diretores alemães que fugiram da Europa durante a ascensão do nazismo. A lista de cineastas talentosos vindos da Alemanha nessa época traz nomes de peso como Billy Wilder, Ernst Lubitsch, Max Ophüls e Fritz Lang, e todos contribuíram para esse momento todo especial, para essa nova sensibilidade surgida em Hollywood, advinda tanto do espírito da época, de um mundo mais sombrio devido à eclosão da Segunda Guerra Mundial, quanto da influência do expressionismo alemão na plasticidade da fotografia dos filmes.

OS ASSASSINOS está presente no box Filme Noir Vol. 11, com alguns extras muito bons. Destaque para o que trata da música de Miklós Rózsa. Ver esse pequeno documentário me ajudou a valorizar ainda mais tanto o trabalho do músico quanto o filme em si. O grande cinema é uma arte que deve ser consumida não como fast food, mas como algo a ser degustado e apreciado com atenção, carinho e estudo.

+ DOIS FILMES

OS ANFITRIÕES (American Gothic)

Que filme estranho e assustador este! Que bom que não tinha lido nada a respeito ou visto o trailer (os trailers antigos são ainda mais cheios de spoilers). OS ANFITRIÕES (1987) começa com um grupo de jovens (três casais), cujo avião dá pane e eles acabam ficando presos em uma ilha. A "salvação" é representada por uma velha casa habitada por um casal de idosos e seus estranhos filhos. Um dos grandes méritos do filme é conseguir surpreender mesmo quando já havia mostrado cenas tão bizarras e incômodas. John Hough é um diretor que merece mais atenção. Neste ano vi o seu INCUBUS (1981), um slasher bem diferente. Este aqui, apesar de ser mais "faca na carne", tem um tom de pesadelo muito forte. Tanto que a protagonista é recém-saída de um hospital psiquiátrico e isso acaba fazendo toda a diferença no direcionamento para a conclusão. Rod Steiger e Yvonne De Carlo estão muito bem como esse casal idoso, e até me fizeram lembrar o recente X – A MARCA DA MORTE, de Ti West, ainda que as propostas dos dois filmes sejam bem distintas. Visto no box Slashers VIII.

O MILAGRE (The Wonder)

Eis um filme que tem uma ligação maior, dentro da filmografia de Sebastián Lelio, com DESOBEDIÊNCIA (2017). Ambos lidam com questões morais e com uma visão crítica das religiões que impedem a felicidade das pessoas. Mas O MILAGRE (2022) traz mais mistério em sua trama, que envolve uma menina de nove anos que está, supostamente, há quatro meses sem comer nada e, corre o boato, seria uma espécie de santa da comunidade, numa vila do interior da Irlanda, nos anos 1860. Florence Pugh é a enfermeira contratada para vigiar e prestar eventuais socorres à menina. Uma das forças do filme está nas imagens, seja pela movimentação estilizada da câmera, principalmente nas cenas externas, seja pela expressividade de Pugh, uma das mais talentosas atrizes de sua geração. A direção de fotografia é de Ari Wegner, a mesma responsável pelas lindas imagens de LADY MACBETH (2016), o filme que revelou Pugh para o grande público. O belo uso do azul no figurino da personagem é um elemento em comum em ambos os filmes.

domingo, novembro 20, 2022

ANJO NEGRO (L’Ange Noir)



Talvez ANJO NEGRO (1994) seja o filme mais diferente da carreira de Jean-Claude Brisseau. Por diferente, digo, diferente do que ele havia realizado até então. E do que realizaria nos anos seguintes, embora já antecipasse um tipo de erotismo de imagens e fetiches que estariam presentes a partir de COISAS SECRETAS (2002). ANJO NEGRO quebrou minhas expectativas por ser, pelo menos de maneira superficial, um filme de crime e investigação. Mas também me surpreendeu por ser uma homenagem explícita a UM CORPO QUE CAI.

Aliás, vale lembrar o quanto alguns ótimos diretores já buscaram o clássico de Alfred Hitchcock para fazer tributos ou quase atualizações. Brian De Palma, com TRÁGICA OBSESSÃO; Paul Verhoeven, com INSTINTO SELVAGEM; David Lynch, com CIDADE DOS SONHOS; Christian Petzold, com PHOENIX. Certamente há mais exemplos que por enquanto desconheço, mas acho lindo quando grandes cineastas se veem na posição de saudar o grande mestre a partir de sua própria poética. A mitologia do mestre do suspense a serviço de novas poéticas.

ANJO NEGRO começa com uma cena impactante: uma mulher loira (a cantora Sylvie Vartan) descarrega a arma em um homem e o mata. Depois disso, uma outra mulher entra em cena para rasgar a roupa da mulher loira, meter-lhe uns tapas e quebrar vários móveis do quarto. Fica claro que a intenção ali é simular uma tentativa de estupro. À medida que a trama vai se desenrolando (e se enrolando também), o advogado vivido por Tchéky Karyo, Paul Delorme, vai descobrindo mais coisas sobre essa mulher por quem ele é apaixonado.

Tudo isso ao som da música poderosa de Jean Musy, colaborador frequente de Brisseau, ao detalhe do coque no cabelo que faz lembrar instantaneamente o citado filme do Hitch, a uma paleta de cores que enfatiza um vermelho lindíssimo, a muitas tomadas externas do carro do advogado que age como detetive, e a uma mulher que esconde sua verdadeira identidade. Ou seja, a inspiração hitchcockiana parece óbvia.

Stephane, a personagem de Vartan, é uma mulher de passado desconhecido. Casada com um juiz respeitado (Michel Piccoli, em participação pequena, mas luxuosa), ela tem como principais figuras em sua casa uma governanta (María Luísa García, a montadora e atriz de vários filmes do diretor) e a jovem filha Cécile (Alexandra Winisky), ambas mulheres que possuem segredos a ser revelados ao longo do filme. Não deve ser à toa que Brisseau usa as principais figuras femininas como dotadas de um grande mistério, na mesma medida que possuem um incrível fascínio e sex appeal. Aliás, há imagens eróticas, de mulheres nuas, que aparecem ao longo da investigação do advogado que surgem como se fossem figuras etéreas. Brisseau, mesmo em uma obra que parece ser mais devedora do cinema de gênero, segue sendo o cineasta que lida com a espiritualidade e a carnalidade com a mesma intensidade.

Se em um dos filmes anteriores do realizador, BODA BRANCA (1990), Brisseau havia explorado os mistérios de uma adolescente, o que dizer de uma mulher adulta, que tem uma história de vida maior? Então, as investigações de Paul e os bilhetes que ele recebe pelo caminho que o direcionam para pessoas que o ajudam a montar o quebra-cabeças têm a intenção de responder às perguntas: quem é Stéphane Feuvrier?, Quem é o homem que ela matou?, O que houve entre eles?, etc. A narrativa que o diretor constrói, herdeira do filme noir clássico americano, é também contaminada por uma câmera que parece ir por um caminho oposto ao da violência explicitada desde o começo.

Embora a violência surja com frequência nas obras de Brisseau, o amor e a espiritualidade acabam vencendo o mal. Em ANJO NEGRO, isso não parece ocorrer. O que permanece puro no filme é o amor dos dois homens por Stéphane, principalmente do marido, que sequer quer saber a verdade sobre ela. Quer apenas ir embora com ela, estar junto dela. Quase como uma sombra do personagem de Bruno Cremer em BODA BRANCA.

Quanto à juventude rebelde, tão comum nas obras de Brisseau, ela comparece sim aqui, mas principalmente perto do final, na figura de Cécile. ANJO NEGRO é provavelmente a produção mais cara do realizador, com direito a Piccoli e aos figurinos luxuosos da protagonista, criados por Christian Dior. No final, assim como acontece em BLACKOUT – SENTIU A MINHA FALTA?, de Abel Ferrara, é a partir de uma imagem em vídeo que o mistério será descortinado. Como se o velho tivesse que ser confrontado pelo novo para que encare, finalmente, a verdade.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

+ DOIS FILMES

I TOUCH A RED BUTTON

Ter um filme "novo" de David Lynch para ver é sempre motivo de alegria. Mesmo quando o filme novo em questão é na verdade um videoclipe. Acontece que Lynch não faz vídeos musicais tradicionais. Quando ele foi convidado para fazer um clipe para a banda Interpol da canção "Lights" talvez os caras da banda nem soubessem que ele entregaria uma animação tão básica e suja, mostrando apenas repetidamente um ser parecido com um monstro apertando um botão vermelho. O botão, aliás, é a única coisa colorida do vídeo. Tudo o mais em I TOUCH A RED BUTTON (2011) é preto, branco e cinza. A canção é muito boa - não conhecia - e tem uma guitarra que segue num crescendo que combina bem com a animação feita por Lynch.

HOLLYSHORTS GREETING

Outro curta especial de David Lynch, este aqui ele fez por ocasião de uma premiação, o Hollyshorts 2008 Visionary Award. Em HOLLYSHORTS GREETING (2008), o diretor apresenta a si mesmo em cenário em preto e branco, mas emulando a red room de TWIN PEAKS (1990-1991), inclusive com a imagem e o som sendo rodados ao contrário, como o anão da série fazia, com um misto de simpatia e horror. Não há muita novidade neste curta e também não creio que o diretor tenha tido a vontade de ser tão inventivo, mas para os fãs é agradável e familiar. E sempre tem algo que a se prestar atenção. Inclusive algo que pode ser a chave para compreender sua obra: quando ele mostra um donut e diz para que olhem para o donut e não para o buraco.

sábado, novembro 19, 2022

NADA É POR ACASO



É possível dizer que a onda de filmes espíritas, que começou forte na virada dos anos 2000-2010, especialmente com as duas melhores realizações, NOSSO LAR e CHICO XAVIER, já não parece mais tão forte, embora neste ano NADA É POR ACASO (2022) seja a segunda produção deste subgênero a entrar nos cinemas – o outro foi PREDESTINADO – ARIGÓ E O ESPÍRITO DO DR. FRITZ, que acabei não vendo. A grande maioria dessas produções peca por ter um ar quase amador, embora isso às vezes acabe sendo um aspecto charmoso e diferencial. O problema é que sabemos que, como eles não têm um diretor do porte de um Daniel Filho, que dirigiu CHICO XAVIER, acabam fazendo tudo na raça mesmo, por vezes conseguindo resultados bem decentes.

NADA É POR ACASO, de Márcio Trigo, se beneficia de ter na produção alguns atores profissionais muito bons, como Giovanna Lancellotti (INCOMPATÍVEL), Fernando Alves Pinto (PARA MINHA AMADA MORTA) e Werner Schünemann (BENS CONFISCADOS). Então, esse pessoal segura muitas vezes o filme e ajuda a valorizar uma obra que se equilibra como numa gangorra entre acertos e desacertos. Senti falta também de ajustes nos diálogos e uma direção mais bem cuidada. Se tem uma coisa que não fica legal, por que não procurar alternativas para melhorá-la, como boa parte das cenas de abordagem do personagem de Rafael Cardoso (O RASTRO) à jovem vivida por Lancellotti? Ou seja, ao mesmo tempo que ficava incomodado com a dramaturgia, me pegava pensando se veria tanto defeito assim se estivesse assistindo a um filme português ou de outra nacionalidade, que prefere um outro tipo de registro, que não o do naturalismo.

A trama cheia de mistério, herdada do romance (psicografado) de Zibia Gasparetto, é um trunfo do filme, que começa com Marina (Lancellotti) recebendo um carro importado e uma transferência bancária de 5 milhões de reais. Isso é o suficiente para ajudar sua família (a mãe e o irmão mais novo) e fazer com que ela passe a ter o seu próprio escritório de advocacia. De onde veio esse dinheiro, segue sendo um mistério até os instantes finais do filme. Inclusive, ela não quer falar na tal viagem à Inglaterra sempre que o namorado Rafael (Cardoso) toca no assunto.

A trama paralela envolve a outra protagonista (Mika Guluzian), uma mulher que também guarda um segredo, e que sofre por ter traído o marido em determinado momento de sua vida, e a figura desse adultério aparece para assombrá-la. Aliás, acho o personagem masculino que faz chantagem muito ruim, muito mal desenvolvido, por mais que sirva à trama. E fiquei me perguntando se não é um problema do próprio romance de Gasparetto, e isso me fez questionar sobre a qualidade literária dessas obras psicografadas. Porém, como sou um desconhecedor dessa literatura diferenciada, deixo apenas meus questionamentos mesmo.

No mais, há algo que muito me interessa, que é a questão espiritual relativa ao nosso papel no mundo, à nossa missão. E até podemos ver essa questão da religião espírita quase como um calcanhar de Aquiles em alguns momentos também, por causa do tom panfletário e por vezes moralista. Além disso, há um direcionamento muito explicadinho para tudo, embora, no fim das contas, eu tenha gostado do tom didático usado para explicar a conexão entre as duas personagens femininas, principalmente.

Enfim, é um filme que me causou sentimentos conflituosos, mas que me ganhou especialmente na última cena. Então, fica meu respeito, claro. Até porque eu sou muito sensível ao tema da maternidade, e aqui em especial há uma situação que é muito dolorosa para uma das personagens, mas que é abraçada ao final como uma missão muito bonita, como um segredo a ser guardado com um misto de dor e alegria. Por isso acredito que a cena final, entre as duas protagonistas do filme, pode ter sido feita com muita emoção pelas atrizes. E por isso funciona tão bem.

+ DOIS FILMES

LE NOM DU FEU

Um rapaz chega a um consultório médico e é atendido por uma jovem médica, que diz que até caso de homem grávido já recebeu. Ele diz que o caso dele é especial, que ele é um lobisomem. LE NOM DU FEU (2002) é um divertidíssimo e tocante pequeno filme de Eugène Green, que usa muito a influência de Robert Bresson na atuação mais despojada e até com simplicidade do campo/contracampo para dar dinamismo à conversa dos dois personagens. Há passagens lindas depois dessa conversa inicial, seja na cena noturna, que prova que não precisa de efeito especial em filme de lobisomem; seja na conversa que eles têm depois, que é lindíssima. "Eu gostaria de ser o seu remédio", diz ela. De arrepiar. Um dos melhores filmes que eu vi neste ano tem menos de 20 minutos, vejam só.

A CHUVA ACALENTA A DOR

Tem sido interessante acompanhar a obra de Leonardo Mouramateus. O primeiro filme que vi dele foi o curta MAURO EM CAIENA (2012), que chamou bastante a atenção entre os críticos, quando de sua exibição no Cine Ceará. A CHUVA ACALENTA A DOR (2020), curta rodado em Portugal, já traz um estilo que lembra mais os realizadores de lá. O que já havia de experimental acaba parecendo mais estranho, mas uma estranheza europeia. Terminou o filme e eu fiquei sem compreender muita coisa, embora tenha gostado bastante da segunda parte, com a Isabél Zuaa (que atriz fantástica!) tentando trazer de volta a virilidade ao marido pouco contente. Já a primeira parte tem relação próxima com a primeira ao lidar com a loucura e com um desejo de se expressar de maneira bem livre, como se fazendo e falando o que vem à cabeça.

sexta-feira, novembro 18, 2022

O MATADOR (The Gunfighter)



É curioso como alguns cineastas importantes da Velha Hollywood acabam não ganhando o mesmo status e a mesma glória de outros tantos. Fui olhar no livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer se achava algum do Henry King e nada. Nem O MATADOR (1950), que é o que eu esperava encontrar. Noutro livro de minha coleção imaginei que ele estaria: O Cinema Americano dos Anos Cinquenta, de Olivier-René Veillon, e lá também o cineasta também não é citado – estará no livro dos anos 1930, já que sua carreira remonta desde o cinema silencioso? Soube que em 2007 o Festival de San Sebastián prestou uma homenagem ao realizador, dedicando-lhe uma retrospectiva. Jacques Lourcelles, no texto “Henry King, o Admirável”, tenta explicar esse pouco louvor ao diretor com o fato de King não ter cunhado “nenhum símbolo pelo qual pôde apanhar a imaginação do público”. Ou seja, é possível que tenha passado batido entre os jovens críticos franceses, em parte por isso, embora eu esteja fazendo uma simplificação.

De todo modo, meus questionamentos vêm do fato de que fiquei particularmente impressionado com O MATADOR. Não conhecia outros filmes de King, a não ser JESSE JAMES (1939), western que só vi por anteceder O RETORNO DE FRANK JAMES, de Fritz Lang, e funcionava como pré-requisito para o primeiro western dirigido pelo cineasta vienense. Ah, vi também o filme em segmentos PÁGINAS DA VIDA (1952), mas por causa principalmente do segmento de Howard Hawks. Ou seja, o preconceito parte de mim, mas porque fui influenciado pelos críticos que ditam quem são os autores que merecem mais a nossa atenção.

Por sorte, a Versátil tem feito um trabalho fantástico atualmente, que é a confecção de livros de cerca de 100 páginas contendo ensaios sobre filmes de uma coleção específica da distribuidora. No livro sobre Cinema Faroeste, que eu tive a honra de comparecer com uma análise sobre CONSCIÊNCIAS MORTAS, de William A. Wellman, O MATADOR foi selecionado pelos curadores da empresa como um dos dez filmes essenciais da coleção. E isso é dizer muito, se pensarmos que muitos filmes de altíssimo nível ficaram de fora.

O MATADOR é uma espécie de anti-western com bem pouca ação e um sentimentalismo apaixonante. Na trama, Gregory Peck é Jimmy Ringo, o pistoleiro mais rápido do oeste. Sua fama agora é mais um obstáculo do que uma ajuda, pois ele vive sendo desafiado por jovens pistoleiros que querem ficar famosos às suas custas, tentando lhe tirar a vida. Sua missão de vida atualmente é conseguir falar com a ex-esposa, que não vê há muitos anos, e mudar de rumo. O aspecto de Peck, seu cansaço, fica logo evidente nas primeiras cenas, mas também sua honradez e sua elegância. Como não conhecemos o jovem pistoleiro selvagem que ele foi, o que temos contato é este homem mais maduro e disposto a esquecer o passado e a viver uma vida tranquila com a mulher amada (Helen Westcott).

Algo impressionante no filme, aliás, é o quanto nos envolvemos e nos solidarizamos com o herói, tendo o conhecido tão pouco e em uma obra de apenas 84 minutos de duração. Com facilidade nos afeiçoamos a Ringo e também ao xerife (Millard Mitchell), um velho amigo que ele encontra por sorte na pequena cidade. Outra coisa que chama a atenção é o quanto King e os roteiristas nos deixam em estado de suspense naqueles instantes em que o herói passa quase o tempo todo naquele saloon, aguardando. Ao mesmo tempo, nossas expectativas são constantemente quebradas. Esse suspense também tem a ver com o uso das horas de maneira que antecipa MATAR OU MORRER, de Fred Zinnemann, lançado dois anos depois.

Uma das curiosidades geralmente conhecidas de O MATADOR é que o projeto original não era de King. Surgiu de uma colaboração entre John Bowers e André De Toth, com John Wayne em mente para o papel do pistoleiro. De Toth teria ficado chateado com os rumos que sua criação estava tomando e saiu do projeto. Não gostava da ideia de Gregory Peck como o pistoleiro mais veloz do Oeste, já que Peck tinha um aspecto mais de intelectual, carecendo de uma suposta necessidade de ser mais selvagem para o papel. Porém, o que King fez em seu filme foi algo que transborda amor, um libelo contra a violência. Logo, muito compreensível um ator que passe esse sentimento. E isso Peck faz, certamente, assim como boa parte do elenco de apoio. 

King e Peck já haviam trabalhado juntos antes no drama de guerra ALMAS EM CHAMAS (1949) e, depois de O MATADOR, o diretor e o astro se reuniram de novo em filmes bem distintos: DAVID E BETSABÁ (1951), AS NEVES DE KILIMANJARO (1952), ESTIGMA DA CRUELDADE (1958) e O ÍDOLO DE CRISTAL (1959).

Filme visto no box Cinema Faroeste Vol. 11.

+ UM ANÚNCIO IMPORTANTE

16º FOR RAINBOW – FESTIVAL DE CINEMA E CULTURA DA DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO

De 14 a 21 de dezembro acontecerá um dos festivais mais tradicionais da cidade, o For Rainbow. Os filmes escolhidos pela curadoria para esta edição já foram divulgados. Segue a lista:

LONGAS-METRAGENS

A FILHA DO PALHAÇO (Brasil, 2022), de Pedro Diógenes
CORPOLÍTICA (Brasil, 2022), de Pedro Henrique França
EU SOU ALMA / I AM ALMA (Alemanha/Argentina, 2022), de Mariana Manuela Bellone
GERMINO PÉTALAS NO ASFALTO (Brasil, 2022), de Coraci Ruiz e Julio Matos
PETIT MAL (Colômbia, 2022), de Ruth Caudeli
PROJETO FANTASMA / POYECTO FANTASMA (Chile, 2022), de Roberto Doveris
UM PEDAÇO DO MUNDO (Brasil, 2022), de Tarcísio Rocha Filho, Victor Costa Lopes e Wislan Esmeraldo
UÝRA – A RETOMADA DA FLORESTA (Brasil/EUA, 2022), de Juliana Curi

CURTAS-METRAGENS

CABILUDA (Brasil, 2022), de aColetto e Dera Santos
CAPIM-NAVALHA (Brasil, 2021), de Michel Queiroz
COMER MAMÃO À BEIRA-MAR / EATING PAPAW ON THE SEASHORE (Guiana, 2022), de Rae Wiltshire e Nickose Layne
ELA É A PROTAGONISTA / SHE’S THE PROTAGONIST (Bélgica, 2021), de Sarah Carlot Jaber
ELUSÃO (Brasil, 2022), de Taís Augusto
ESTA TERRA NOBRE /THIS NOBLE LAND (Botswana, 2022), de Theo Silitshena
FANTASMA NEON (Brasil, 2021), de Leonardo Martinelli
LUAZUL (Brasil, 2022), de Letícia Batista e Vitória Liz
LUTE PELA SUA LIBERDADE / FIGHT FOR YOUR FREEDOM (Burkina Faso, 2022), de Canisius Avéko
MÍSSIL – PARTE 1 (Brasil, 2022), de Roberta Marques
NA ESTRADA SEM FIM HÁ LAMPEJOS DE ESPLENDOR (Brasil, 2021), de Liv Costa e Sunny Maia
NEM O MAR TEM TANTA ÁGUA (Brasil, 2022), de Mayara Valentim
NO CÉU / IN HEAVEN (Espanha, 2022), de Manuel Gomar
NÓS, OS OUTRES / WE, THE OTHERS (Chile, 2022), de Mato Ariel Torga
PEDRO FAZ CHOVER (Brasil, 2022), de Felipe César de Almeida
PENSADOR / OVERTHINKER (Argentina, 2022), de Matías Dinardo
POSSA PODER (Brasil, 2022), de Victor di Marco e Márcio Picoli
PRAZER / JOUISSANCE (Irã, 2022), de Sadeq Es-haqi
PROCURA-SE BIXAS PRETAS (Brasil, 2022), de Vinicius Elizário
PROMESSA DE UM AMOR SELVAGEM (Brasil, 2022), de Davi Mello
QUANDO CHEGAR A NOITE, PISE DEVAGAR (Brasil, 2021), de Gabriela Alcântara
QUINZE PRIMAVERAS (Brasil, 2022), de Leão Neto
ROSA NEON (Brasil, 2022), de Tiago Tereza
TÁ FAZENDO SABÃO (Brasil, 2022), de Ianca Oliveira
UMA PESSOA COMUM / ORDINARY (EUA, 2022), de Atlas O Phoenix

quinta-feira, novembro 17, 2022

NOITES BRUTAIS (Barbarian)



Um dos maiores baratos de NOITES BRUTAIS (2022), um dos mais celebrados exemplares de horror da atual temporada, é o quanto o filme vai tentando se reinventar, quebrando nossas expectativas o tempo todo. Logo, o ideal é que nada seja lido sobre o filme antes de vê-lo. Inclusive, se você não o viu ainda, recomendo que pare de ler este texto. Não que eu vá dá muitos spoilers, mas quanto menos se souber a respeito, mais prazer o filme proporcionará. E gosto muito quando isso acontece, mesmo quando a obra em questão se mostra até um pouco descompromissada na ampliação de sua “importância”, por assim dizer. Falo isso pois a tendência geral dos novos filmes do gênero é serem bem mais do que filmes de horror, serem uma espécie de tratado sobre alguma questão sociológica ou psicológica. Não que isso falte em NOITES BRUTAIS, mas não está longe de ser comparado a um Jordan Peele, por exemplo.

A direção é de um cara pouco conhecido do meio chamado Zach Cregger, que até então era mais ligado à comédia. Seu primeiro longa foi uma comédia (romântica?) entitulada MISS MARÇO – A GAROTA DA CAPA (2009). Cregger foi um dos criadores de um programa de televisão chamado THE WHITEST KIDS U’KNOW (2007-2011). É muito provável que essa passagem pela comédia tenha sido fundamental para a efetivação do tom de NOITES BRUTAIS, que é um filme que pode, sim, meter medo, mas que se assiste principalmente com muito prazer e às vezes com um sorriso no rosto. Como fazer boa comédia é saber usar acertadamente o timing, isso pode ser um grande trunfo para a construção de um filme de horror que não tenha a pretensão de ser solene ou coisa do tipo.

A trama de NOITES BRUTAIS começa quando Tess, a personagem de Georgina Campbell (bastante lembrada pelo ótimo episódio “Hang the DJ”, da quarta temporada de BLACK MIRROR), aluga uma casa pelo Airbnb. A localização, em um bairro muito estranho no subúrbio de Detroit, já deixa no ar o perigo. Ainda mais com a chuva, que cai torrencialmente. Outro detalhe importante é que a moça vem tentando evitar a ligação do namorado ou ex-namorado. Acontece que, ao chegar à tal casa, ela descobre que alguém já havia alugado, um rapaz vivido por Bill Skarsgård (que viveu o palhaço em IT – A COISA). Com a dificuldade de encontrar outro lugar para ficar, ela resolve passar a noite na tal casa, mesmo não confiando muito naquele sujeito. Até rola um tipo de atração entre os dois, quando resolvem tomar um vinho, inclusive. Mas a casa possui segredos e de alguma forma esses segredos chamarão a atenção dos dois, o que será fatal.

Fico até sem graça de estar contando parte da história, e nem pretendo prosseguir, pois essa parte é apenas do primeiro segmento do filme, que mudará de rumo e talvez até de protagonista (será?), com a entrada em cena do controverso personagem de Justin Long (ARRASTE-ME PARA O INFERNO), um sujeito que está passando por uma situação complicada de acusações de assédio sexual, o que poderá representar o fim de sua carreira profissional no ramo do entretenimento. A relação dele com a casa do primeiro segmento logo surgirá. Assim como um olhar do filme para pautas atuais.

NOITES BRUTAIS engrossa a lista de ótimos títulos de horror lançados em 2022, que talvez seja um ano a ser estudado futuramente como um dos mais marcantes para o gênero – como foi o de 1981 para o slasher e o de 1972 para o giallo. Falando em décadas passadas, senti no filme de Cregger um tom de horror dos anos 1980, especialmente pelo uso do gore, ainda que o tom cômico seja mais comedido, estando presente mais nas entrelinhas e no prazer das surpresas, dos sustos e dos absurdos. É impressionante, inclusive, quando o filme explora a geografia dos subterrâneos da casa. É uma pena que não tenha passado nos cinemas, mas de vez em quando é bom ter essas surpresas exclusivamente em streaming, até porque o nosso circuito do gênero na telona nem sempre funciona como um bom curador, a julgar pelo que as distribuidoras costumam trazer, sem o menor critério de qualidade.

+ DOIS FILMES

HELLRAISER

Um dos grandes trunfos do HELLRAISER original (1987) foi não se prender tanto ao cubo e aos cenobitas e mais à história sangrenta de assassinatos e de reconstituição/regeneração do corpo de um homem graças ao amor de uma mulher. Este novo filme que promete, talvez, reacender a chama da franquia, aposta no cubo e na mitologia dos demônios criados por Clive Barker. Por sorte, HELLRAISER (2022) vai ficando empolgante depois da primeira metade, quando novas situações vão se apresentando cada vez mais desafiadoras e perturbadoras para a heroína (Odessa A'zion), uma jovem dependente química que acaba sendo apresentada ao "cubo mágico" e tem sua vida obviamente amaldiçoada. O novo filme tem um visual bem mais limpo que o original, mas não pega leve na violência gráfica e no gore, sendo até mais explícito no quesito apresentação de dor – destaque para uma certa cena envolvendo uma agulha. O filme também tem a sorte de ter um diretor habilidoso como David Bruckner, que já havia mostrado seu talento em A CASA SOMBRIA (2020), seu melhor filme até o momento, acredito.

O LIVRO DE PEDRA (El Libro del Piedra)

Muito provavelmente inspirado em OS INOCENTES, este belo filme de Carlos Enrique Taboada conta a história de uma mulher que começa a trabalhar como governanta em uma casa enorme e afastada do vilarejo e que precisa lidar com uma menina que acredita falar com uma criança-fantasma chamada Hugo. O andamento do filme é lento e, assim como o clássico de Jack Clayton, leva-nos a pensar, a princípio, que todos esses elementos sobrenaturais possam ser frutos da imaginação ou do medo que se instala naquela casa, especialmente à noite. Mais ou menos como VENENO PARA AS FADAS (1986) se utiliza mais da sugestão. Porém, O LIVRO DE PEDRA (1969) vai seguindo por outros caminhos e trazendo momentos verdadeiramente arrepiantes, como a cena do espelho, ou outros momentos de terror mais sutis e que também lidam com a escuridão da noite e com o mistério que habita o coração da menina. Visto no box Obras-Primas do Terror - Horror Mexicano 2.

terça-feira, novembro 15, 2022

A FOGUEIRA DAS VAIDADES (The Bonfire of the Vanities)



A carreira de Brian De Palma tem sido uma montanha-russa de sucessos e fracassos. Isso, do ponto de vista dos ganhos nas bilheterias, embora se possa falar de fracasso artístico também. A FOGUEIRA DAS VAIDADES (1990) talvez seja o filme do diretor que mais apanhou da crítica. Na verdade, havia quase que uma torcida contra a produção antes mesmo do lançamento. E na época que foi lançado teve revista de cinema que o elegeu o pior do ano. O crítico Joel Siegel, disse: “Isto não é apenas um filme ruim, isto é um fracasso de proporções épicas”. No que se refere às bilheterias, o filme rendeu apenas U$ 15,7 milhões de um investimento de 47. Hoje, passado todo esse tempo e até em respeito a um autor consagrado como o De Palma, há muitos defensores e até entusiastas da obra.

Revendo-o nesta semana, percebi o quanto minha lembrança dele era nebulosa. Tanto que até fiquei na dúvida se havia visto completo, quando o gravei no videocassete numa exibição televisiva. O que eu tinha forte na memória era a cena em que o personagem de Tom Hanks leva o cachorro pra passear na chuva com o mero intuito de ligar para a amante (Melanie Griffith) e acaba ligando, sem querer, para a esposa (Kim Cattral). Também lembrava bem do momento em que o casal de amantes se perde num bairro perigoso de Nova York.

A FOGUEIRA DAS VAIDADES é mais um conto moral de De Palma, assim como foram OS INTOCÁVEIS (1987) e PECADOS DE GUERRA (1989). Talvez nem precise forçar um pouco para incluí-lo numa espécie de trilogia moral, com a diferença que este aqui lembra muito mais as produções da velha Hollywood do que todos os demais filmes do realizador. Há a figura do narrador-personagem (Bruce Willis, um tanto apagado) que pega na mão do espectador numa narração quase didática para contar a tragédia que se tornaria a vida de Sherman McCoy (Hanks) naquele caldeirão que é a Nova York multirracial e em tempos mais perigosos para a cidade.

Baseado no aclamado romance homônimo de Tom Wolfe, este filme se torna até mais atual nos dias de hoje, com a entrada em cena das redes sociais e da cultura do cancelamento. Mas, para quem é fã do De Palma, dá uma saudade de seus filmes mais maneiristas.

Além do mais, há uma série de problemas. Por exemplo, em nenhum momento tive a impressão de que Sherman McCoy (Tom Hanks) é o tal “mestre do universo” que ele se vê, como um bem-sucedido homem de negócios da bolsa de valores. Acho até que a direção e o roteiro do filme tentam mostrar isso, mas talvez esse sentimento dependesse de outras cenas para que fosse enfatizado e comprado pelo espectador. E talvez Hanks não tenha essa cara de aristocrata, necessária para o personagem.

O que vemos é um homem inseguro e desajeitado em sua tentativa de manter um relacionamento com a amante Maria (Melanie Griffith) sem que a esposa (Kim Cattral) saiba. Sua falta de malandragem também se apresenta no momento em que ele quer contar para a polícia o ocorrido no Bronx, enquanto Maria prefere deixar tudo em segredo; ela quer deixar claro para ele que a relação dos dois é puramente sexo, nada mais que isso. Ela diz: “don’t think, Sherman. Just fuck.”

Há pelo menos dois momentos que se destacam na biografia do realizador. Uma delas é o momento em que Sherman vai preso. O próprio De Palma passou por essa experiência. Quando ele tinha 23 anos e sua namorada o deixou, ele ficou bêbado, gastou todo seu dinheiro numa máquina de pôquer e, sem saber como voltar pra casa, roubou uma scooter e cruzou uma série de sinais vermelhos. Foi quando um policial o abordou, ele tentou fugir e ainda recebeu um tiro na perna. Resultado: teve seus momentos atrás das grades, assim como seu mentor, Alfred Hitchcock. Com a diferença que ele não era exatamente inocente.

A dualidade tão presente nos filmes do realizador (há split-screen neste aqui também) se apresenta na própria apresentação de Nova York. A área dos brancos e a área dos pretos, desconhecida e um tanto proibida para brancos ricos habitantes de Manhattan. E esse novo mundo desconhecido para Sherman se descortina principalmente no tribunal, quando ele se vê numa situação próxima a de uma mulher tida como uma bruxa prestes a ser queimada. O elemento de maior exemplo de moralidade naquele espaço é o juíz vivido por Morgan Freeman, que no final até faz um discurso destacando a hipocrisia daquelas pessoas, chefiadas por um reverendo.

Outro momento que se imagina ser muito caro para De Palma é o instante em que o pai de Sherman, para surpresa do protagonista, se apresenta para ele para ajudá-lo, para mostrar que ele não está sozinho, uma vez que ele fora abandonado pela esposa e pela amante. Então, esse suporte, que muitas vezes ele não recebera de seu pai na juventude, se materializa em seu alter-ego. Ainda assim, acho a cena pouco eficiente do ponto de vista emocional. O que é uma pena.

A boa notícia é que De Palma voltaria para seu lugar de conforto, o suspense, no vindouro SÍNDROME DE CAIM (1992).

+ DOIS FILMES

CAMA ARDENTE (The Burning Bed)

Telefilme muito eficiente que assisti de uma só sentada, algo raro nos dias atuais pra mim, em se tratando de filme visto em casa. Em CAMA ARDENTE (1984), de Robert Greewald, Farrah Fawcett está muito bem como a mulher agredida infinitas vezes pelo marido tóxico até o dia em que ela resolve dar um fim a tudo e queimá-lo na cama. Isso não é spoiler, está no começo do filme, que depois, em sua maior parte, é um grande flashback que nos contará como nasceu o relacionamento dos dois e como se construiu toda essa atmosfera de terror e de revolta, por parte da esposa e por parte dos espectadores também. O fato de escalarem os mesmos atores para vivê-los jovens me incomoda um pouco, principalmente o ator - um quarentão meio barrigudo fazendo um quase adolescente não convence. Mas, à medida que eles vão ficando adultos, isso deixa de ser um problema. Filme visto no box Filmes de Tribunal 3.

OSTWÄRTS

Para quem teve contato com algumas das obras de Christian Petzold pode ser interessante ver este documentário em curta-metragem, feito logo após a queda do muro de Berlim. O diretor demora a capturar um rosto em OSTWÄRTS (1991). Até achei que os 24 minutos de duração do filme fossem todos sobre carros, estradas e casas. Mas aí entra o primeiro depoente, uma jovem que aprecia pintar o próprio rosto. Depois disso, ouviremos o depoimento de mais duas pessoas e podemos perceber a dificuldade que elas tiveram em colocar suas vidas nos trilhos após a mudança política drástica ocorrida em 1989. Por mais que a mudança a longo prazo tenha sido benéfica, não se pensou muito bem em cuidar dessas pessoas que foram afetadas negativamente. Não sei se é um problema da cópia ou se é intenção do diretor mostrar o norte de Berlim como sendo escuro e pouco atraente, mas, de todo modo, a imagem que tínhamos da Alemanha demoraria um pouco a ser associada a algo solar.

segunda-feira, novembro 14, 2022

BODA BRANCA (Noce Blanche)



Para minha surpresa, BODA BRANCA (1989), de Jean-Claude Brisseau, não segue o caminho de filmes como O ANJO AZUL, de Josef von Sternberg, ou seu quase remake, o brasileiro ANJO LOIRO, de Alfredo Sterheim, Nos referidos filmes, a figura do homem mais velho que se apaixona por uma jovem mulher o leva a uma situação de ridicularização do personagem masculino em sua tragédia de se deixar apaixonar-se. Há tragédia, sim, em BODA BRANCA, mas ela aparece de uma maneira diferente, seguindo uma espécie de tendência da obra do realizador de apresentar professores e professoras que se compadecem de alunos problemáticos e se envolvem em maior grau em suas vidas. Isso é mostrado no anterior, o excelente DE BARULHO E DE FÚRIA (1988), mas agora é diferente. Agora é um professor de filosofia (Bruno Cremer) que acaba se apaixonando pela aluna menor de idade (Vanessa Paradis), ao buscar ajudá-la nos estudos.

Logo, entramos em um terreno mais perigoso, principalmente se visto com os olhos de hoje. Não sei se esse perigo era tão forte assim nos anos 1980. Certamente não. BODA BRANCA marca a estreia no cinema de Vanessa Paradis, então cantora teen de sucesso na França, e ainda com quinze anos de idade, embora represente uma garota de dezessete. Trata-se de um filme duro e que exigiu muito da jovem iniciante. O fato de conter algumas cenas de nudez para uma adolescente hoje certamente seria um impedimento. Ainda assim, não há o erotismo que se tornaria presente em obras futuras de Brisseau. O foco está mais na angústia de estar apaixonado dentro de uma relação bem complicada.

O filme está entre as obras mais pessimistas do diretor, com destaque para Nietzsche como filósofo central para a compreensão do que os dois protagonistas (o professor e a aluna) têm da vida. Descrevendo a jovem à esposa ele diz: "Apenas com dezessete anos ela já está profundamente consciente da futilidade da vida humana... e parte para o que realmente importa". Relação mestre-pupilo, revolta na juventude, sensualidade e um pensar sobre além da existência carnal, tudo isso mais uma vez presente numa obra de Brisseau. E tudo isso me interessa. Ainda mais quando emoldurado com tanta beleza plástica, com uma luz tão especial.

E por falar em luz, vale destacar o nome do diretor de fotografia: Romain Winding, parceiro de Brisseau em DE BARULHO E DE FÚRIA, CÉLINE (1992), ANJO NEGRO (1994) e OS INDIGENTES DO BOM DEUS (2000). O uso da luz nos filmes de Brisseau faz toda a diferença, pois é uma luz que invade a escuridão e se reveste de um significado espiritual, como num halo. E por mais que BODA BRANCA não esteja entre as obras mais metafísicas do realizador, esse elemento está presente de maneira sutil, especialmente quando se percebe na relação dos dois um tipo de conexão espiritual, a tal ponto que a jovem não consegue viver sem aquele homem. É bem mais do que uma história de desilusão.

A bênção que parece ser os momentos entre os dois, com direito até a um romântico passeio de barco e um encontro à luz do dia em um cenário verdejante em que o céu testemunha seus corpos fazendo amor, acaba se tornando uma espécie de maldição quando essa vontade irresistível se choca com a sociedade, com o ambiente da escola, com a situação perturbadora que passa a ser o lar do professor, com sua esposa já sabendo da traição do marido, e os ciúmes também maltratando os espíritos tanto o professor quanto da aluna. A bênção se torna condenação. E a cena em que os dois são flagrados transando em plena escola é o ápice dessa situação.

BODA BRANCA certamente é um filme que seria muito melhor compreendido por quem tem maior intimidade com alguns dos filósofos citados, como Freud, Nietzche, Espinosa e Simone Weil, objeto de estudo do protagonista professor, que escreveu um livro sobre a filósofa. Aliás, saber mais sobre esses pensadores ajudaria também a compreender a obra como um todo do realizador. Ter uma das primeiras cenas com o professor questionando a turma sobre o que é o inconsciente traz um significado crucial para o que seriam os significados do filme. Brisseau traz para sua obra questões comuns de filosofia, misticismo e arte. E como é um autor que utiliza tão bem a mise-en-scène, acaba criando obras cheias de amor, beleza e intensidade.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.    

+ DOIS FILMES

PASSAGEM (Causeway)

Começar de novo. Está escrito no cartaz de PASSAGEM (2022), o novo filme estrelado por Jennifer Lawrence, que também é uma das produtoras. Faz sentido para a carreira da atriz, agora com novo agente, depois de ficar insatisfeita com os rumos de sua carreira. Gostei muito deste que promete ser uma volta aos filmes menores e mais humanistas, como foi INVERNO DA ALMA, o título que a destacou para o mundo. O que muito me agradou neste novo filme foi a sensibilidade com que são lidados os sentimentos e os traumas de seus personagens, tanto a protagonista vivida por J.Law, quanto o homem que se torna seu amigo, o mecânico de automóveis interpretado por Brian Tyree Henry. Também gosto do tempo mais lento com que nos é apresentada a protagonista, a princípio aparecendo com sérios problemas de saúde e sendo tratada por uma enfermeira. A solidão dos personagens é o que mais ronda o filme. Eles são assombrados por fantasmas do passado; fantasmas que continuam vivendo com eles no presente. Talvez seja mais um filme de ator/atriz do que de direção, mas só saberemos disso ao conferir os próximos trabalhos da estreante em longas Lila Neugebauer. Promissora.

ALDEOTAS

Assim que o filme começa, informando ser baseado na obra homônima de Gero Camilo, já fica claro que estaremos diante de uma derivação de uma peça teatral que não fará muito esforço para se distanciar de sua linguagem original. E desde o começo já gostei muito de ALDEOTAS (2022), principalmente ao ouvir o primeiro monólogo de Camilo, com uma prosa muito bonita e um cuidado com a língua portuguesa que me conquistou. A partir da conversa com o amigo defunto vivido por Marat Descartes, a trama vai nos contando sobre a forte e marcante amizade que os dois tiveram na infância e adolescência. Não sei como se deu na peça, mas no filme os cortes em capítulos curtos, todos com títulos, trazem uma dinâmica muito interessante. E cada capítulo tem uma importância fundamental na história dos dois, os únicos personagens presentes corporalmente em todo o filme - as namoradinhas são representadas por bonecos, por exemplo. E há uma questão que Camilo fez questão de deixar muito clara: a forma como a sociedade de sua pequena cidade via seus gestos, agindo com violência e forte preconceito. Como uma boa peça, ALDEOTAS pede que aceitemos aqueles dois homens de meia idade interpretando adolescentes. E isso é bem simples, para quem está mais acostumado com as artes cênicas.

domingo, novembro 13, 2022

PANTERA NEGRA – WAKANDA PARA SEMPRE (Black Panther – Wakanda Forever)



Ultimamente tenho me perguntado se meus textos estão sendo escritos a partir de meu prazer em ver a obra, relevando suas imperfeições em prol de minha experiência com elas, ou se ainda estou conseguindo ter um julgamento crítico em análises que combinam tanto a emoção quanto a razão. Afinal, eu me diverti a valer com THOR – AMOR E TROVÃO, um filme que foi destruído por boa parte da crítica, e achei o primeiro PANTERA NEGRA (2018) um bocado sem graça. Até fui reler meu texto do primeiro filme, para entender um pouco as circunstâncias e o momento em que o vi, mas não sei se isso ajudou muito.

Ainda sobre as circunstâncias em que vemos os filmes como adjuvantes no modo como gostamos mais ou menos deles, eu tive uma experiência bem dividida, por assim dizer, com PANTERA NEGRA – WAKANDA PARA SEMPRE (2022): antes e depois do café extraforte. Assisti a primeira hora do filme com sono, um pouco de desinteresse e um bocado incomodado com os óculos escuros 3D, que além de totalmente desnecessários, deixaram a fotografia, que já é naturalmente escura, um verdadeiro breu. Com isso, até os momentos que se passam durante o dia e em cenários externos são prejudicados. Fica aqui, desde já, minha reclamação para o uso abusivo do 3D puramente para fins lucrativos. Pois bem, depois do café, minha relação com o filme mudou bastante, tanto que não senti esse arrastar do tempo que muitos críticos têm mencionado – afinal, sua duração total é de 2h40min.

Uma coisa que achei interessante em WAKANDA PARA SEMPRE foi o quanto se trata mais de um filme-coral do que uma obra que tenha um(a) protagonista. Ou seja, a falta do Pantera Negra/Chadwick Boseman, se manifesta até mesmo nesse sentido. É como se o filme e, por conseguinte, todos os personagens, estivessem em um estado de desorientação, sem saber para onde ir. O rei está morto e o luto está sendo muito difícil, assim como as próprias ações a serem tomadas. Aliás, que lindo que é o prólogo, seguido dos créditos de abertura, com o logo da Marvel apresentando apenas Boseman como o Pantera Negra, e em total silêncio. A sala grande e lotada em que assisti ficou inteirinha calada, em respeito ao herói e ao ator.

Ou seja, o fato de Wakanda inteira representar o heroísmo e não apenas um só personagem contribui para que a imagem que temos da nação unida se torne cada vez mais evidente. Mesmo quando a personagem de Danai Gurira (ainda bastante lembrada como a Michone de THE WALKING DEAD) leva uma bronca pesada da rainha, após os incidentes nos Estados Unidos, quando da busca da Coração de Ferro, essa união persiste. Inclusive, uma coisa que ficou bem qualquer nota nessa relação de Wakanda com a inteligência americana foi a presença pouco substancial dos personagens de Martin Freeman e Julia Louis-Dreyfus, que funcionam mais para marcar presença em filmes e séries e se mostrarem importantes para títulos futuros do estúdio.

WAKANDA FOREVER pode não ser o melhor dos filmes desta nova fase da Marvel – que não anda empolgando muito, é verdade –, mas é certamente um dos mais importantes, pelas questões políticas e raciais que traz e pelas soluções que encontra para a morte do ator e de seu personagem. Com Boseman, este filme (como ficou) não existiria. O que temos aqui é uma aventura com toques de ficção científica e de espionagem com um ótimo elenco de atrizes, sendo as mais importantes Letitia Wright, Lupita Nyong'o (mais linda do que nunca!), Danai Gurira, Angela Bassett e Dominique Thorne. Ou seja, o filme é composto basicamente por heroínas, já que Namor (Tenoch Huerta) é o grande antagonista e um personagem muito importante a ser incluído no MCU.

Nos quadrinhos, essa richa entre Pantera Negra e Namor só se apresentou mais recentemente, nos anos 2010, quando Brian Michael Bendis estava no controle dos roteiros, mais especificamente na saga Vingadores vs X-Men. Nessa saga, Namor usa o oceano para inundar a nação, muito parecido com o que acontece no filme. Ou seja, a fase em que Bendis esteve sob o comando dos principais títulos da Marvel ainda tem servido de inspiração para muitos filmes do estúdio. Depois disso, houve uma segunda richa, na saga Infinito, capitaneada por outro grande roteirista, Jonathan Hickman, e com participação do Thanos. Namor é um anti-herói bastante temperamental conhecido por construir briga com o Quarteto Fantástico, já no comecinho dos anos 1960, no título da família mais querida da Casa das Ideias.

A adaptação de Namor para o cinema foi bastante feliz, ao integrar às suas origens e a seu visual símbolos das culturas asteca e maia. Funciona muito bem. Se os próprios quadrinhos trazem duas origens diferentes para o herói, o cinema pode criar uma nova origem para ele e para a Atlântida também. Só senti falta de uma sensação de alegria no império de Namor. Aquele universo submarino, por mais que tenha uma espécie de sol, parece bem pouco atraente. Talvez porque a Marvel tenha tentado se distanciar o máximo possível de AQUAMAN, o filme de James Wan.

De todo modo, na falta de vilões muito bons dentro do universo Marvel (os melhores são Thanos e Loki, sem dúvida), Namor se mostra vingativo e ardiloso o suficiente para já entrar na lista dos melhores. O momento em que ele se vinga da morte de uma atlante querida ao matar inclusive a rainha de Wakanda e ainda guardar mais vingança para depois é representativo disso. Mas há algo que o filme também traz de positivo, que é o tom mais venenoso com que Shuri, agora vestindo o manto de Pantera Negra, luta contra Namor em um embate mais violento do que eu esperava. Achei essa violência pouco comum para os filmes da Marvel/Disney, inclusive.

Ryan Coogler é um bom diretor de ação, principalmente se comparado a outros que passaram pela Marvel mais recentemente – basta lembrarmos do quanto filmes como SHANG-CHI E A LENDA DOS DEZ ANÉIS e VIÚVA NEGRA, que dependem muito da ação, deixaram a desejar nesse quesito. Além do mais, a produção de WAKANDA FOREVER é tão bem cuidada que fica bem explícito o alto valor gasto, especialmente para construir os dois mundos (Wakanda e o mundo de Namor).

+ DOIS FILMES

O DIA EM QUE A TERRA SE INCENDIOU (The Day the Earth Caught Fire)

Adoro um disaster movie que lida com uma espécie de apocalipse. E O DIA EM QUE A TERRA SE INCENDIOU (1961), de Val Guest, cumpre bem o papel, e ainda tem um primeiro ato com o sabor das comédias de jornalismo de Hollywood (lembrei bastante de JEJUM DE AMOR, de Howard Hawks). Depois, há a chegada de Janet Munro à história. E que mulher apaixonante! O grau de sensualidade que ela traz ajuda a botar fogo no filme antes mesmo da chegada dos instantes mais tensos causados pelas consequências do uso de bombas atômicas pelos Estados Unidos e pela União Soviética. O eixo da Terra se desloca e ela passa a se aproximar do Sol. Gosto das conversas entre os jornalistas, das cenas que parecem ter dado mais trabalho para os efeitos especiais, das soluções inventivas até para apresentar os jovens que supostamente estariam numa espécie de orgia do fim do mundo. Além do mais, o filme foi um dos primeiros a falar sobre aquecimento global. Visto no box Clássicos Sci-Fi - Vol. 10.

MEU NOME É GAL

Este curta-metragem do diretor de A RAINHA DIABA (1974) é uma junção de dois videoclipes tirados do álbum de 1969 de Gal Costa, "Saudosismo" e "Não Identificado", ambas de Caetano Veloso, e um registro ao vivo bem cru de um show da cantora, num estilo mais rock, cantando "Meu Nome É Gal", com uma energia bem interessante de ver, inspirada no rock do final dos anos 60, como Janis Joplin e Jimi Hendrix. Senti falta de mais coisas, mas vale demais o registro dessas três canções retratando também a beleza da cantora e até seu jeito mais reservado. Na equipe técnica de MEU NOME É GAL (1970), além de Antonio Carlos da Fontoura na direção, há ainda nomes de destaque, como Lauro Escorel, Antonio Calmon e David Neves.

sábado, novembro 05, 2022

E.T. – O EXTRATERRESTRE (E.T. – The Extra-Terrestrial)



No mesmo ano que John Carpenter lançou o seu O ENIGMA DE OUTRO MUNDO, e que também contou com outro clássico da ficção científica, BLADE RUNNER – O CAÇADOR DE ANDRÓIDES, de Ridley Scott, Steven Spielberg apresentou ao mundo sua versão mais família e mais próxima do universo infantil de um contato de alguém da Terra com um alienígena. Na verdade, Spielberg já havia apresentado uma "versão paz e amor" desse tipo de encontro em CONTATOS IMEDIATOS DO TERCEIRO GRAU (1977). É possível dizer, por isso, que ele nadava na contramão do que era normalmente visto nos filmes sci-fi, principalmente os apresentados na década de 1950, com o medo do comunismo e da ameaça nuclear.

E.T. – O EXTRATERRESTRE (1982), nesse sentido, seria um filme transgressor, e isso se apresenta explícito na cena em que a equipe da NASA invade a casa de Elliott (Henry Thomas) para capturar o pequeno E.T. A cena parece saída de um filme de terror e é construída dentro das convenções desse gênero. Ou seja, mesmo nos Estados Unidos da era Reagan e com a Guerra Fria ainda em pauta, em E.T., o mal não vem do exterior, mas de dentro do país. E de dentro (de um ponto de vista mais intimista) pode vir também a maldade ou a bondade, essa representada na pureza das crianças. E é por essa pureza que o coração vermelho e brilhante do E.T. bate mais forte. 

Havia visto E.T. há muitos anos (algumas décadas, na verdade) na televisão e não era um dos defensores mais ferrenhos do filme – na verdade, costumava dizer, por puro achismo, que o Spielberg dos anos 1990 era melhor que o dos anos 80, talvez por me incomodar um pouco com a sentimentalidade mais explícita de certos títulos oitentistas do realizador. Porém, na última quinta-feira pude perceber o porquê de o filme ter se tornado uma obra tão querida e um dos títulos mais representativos de sua década – sobre ter a cara dos anos 80, basta ver o quanto ele se tornou um dos maiores recortes para uma série como STRANGER THINGS.

Não se trata de uma obra com uma preocupação grande nos diálogos. Há a intenção, inclusive, de torná-los muito simples, muito fáceis, quase que em sintonia com as palavras "E.T.", "phone" e "home", aprendidas e repetidas pelo pequeno alien. O que mais importa e o que mais se destaca lindamente é a força das imagens, a emoção que elas carregam em sua plasticidade, seja uma imagem mais iconográfica como a do voo da bicicleta com a lua ao fundo, sejam os close-ups emocionados dos personagens nos instantes finais. Ou seja, o trabalho brilhante de montagem, que já se destacava em Spielberg desde pelo menos ENCURRALADO (1971), aqui se perpetua e ganha ares épicos.

No mais, o filme também conquista pelo humor, pelo encanto do relacionamento que se estabelece entre o pequeno E.T. e as crianças que o conhecem. Não me lembrava, por exemplo, da cena da conexão à distância, com o E.T. tomando umas cervejas que encontrou na geladeira e assistindo DEPOIS DO VENDAVAL, de John Ford, na televisão, e o menino Elliot agindo como agiu na escola. Lindo demais. E tenho quase certeza que seria uma cena bem difícil de ser vista no cinema mainstream contemporâneo, já que, nela, o menino Elliott se embriaga, ainda que de maneira indireta.

Quem puder ver ou rever este clássico em IMAX não deixe passar a oportunidade (vai ficar nesta sala até a próxima quarta-feira), pois é uma das raras chances de ver um clássico que ganha muito mais força na tela grande. Além do mais, Spielberg se arrependeu da besteira que fez no aniversário de 20 anos do filme, quando substituiu as armas por walkie-talkies e fez umas “atualizações” nos efeitos especiais, seguindo o (mau) exemplo do amigo George Lucas. Assim, é possível ver as imperfeições, por assim dizer, dos efeitos visuais, especialmente na última cena das bicicletas voando.

E.T. – O EXTRATERRESTRE recebeu os Oscar de som, efeitos sonoros, efeitos visuais e música (para John Williams). Houve indicações para filme e direção também, mas, quanto a esses prêmios, Spielberg demoraria para conseguir validação da academia, só conquistando o primeiro Oscar em 1993 com A LISTA DE SCHINDLER. Até hoje, quando se conta a história da Nova Hollywood, culpa-se Spieberg e Lucas por terem quebrado o tom mais político e adulto que o cinema americano vinha desempenhando antes de TUBARÃO (1975) e GUERRA NAS ESTRELAS, e trazido um tom mais infantil para o cinema mainstream dos anos 1980. Mas acredito que ele apenas surfou e se beneficiou do espírito da época e por isso acabou se tornando o mais bem-sucedido dos cineastas americanos. Além do mais, diretores de sua geração, como Scorsese, Coppola, Bogdanovich, De Palma, Cimino, entre outros, continuaram fazendo cinema para um público mais adulto. 

+ DOIS FILMES

PALOMA

O realismo no cinema de Marcelo Gomes segue presente, mesmo quando ele conta uma história que parece saída de uma fábula: a de uma mulher travesti, Paloma, que sonha em casar na igreja, de véu e grinalda. Baseado numa história real, o diretor, junto com os corroteiristas Armando Praça e Gustavo Campos, contam esta história sobre uma pessoa que sofre com as pequenas e as grandes violências do dia a dia e, mesmo assim, tem a força (ou a ingenuidade) para se imaginar dentro de um casamento nos moldes mais convencionais. O filme nos leva a seu trabalho na fazenda, a seu relacionamento carinhoso com o companheiro e com a filha pequena, a suas amizades com outras mulheres travestis. Embora tenha ouvido o diretor em debate após a sessão falando sobre não priorizar as violências mais brutais de forma explícita, fica a sensação de que ele ficou quase no meio do caminho em seu objetivo de alcançar tanto a ternura quanto a dor da heroína. PALOMA (2022) é um filme que se junta a outras obras recentes que ajudam a compor um quadro muito rico e importante para se pensar a vida de personagens T no Brasil, como MADALENA, de Madiano Marchetti, DESERTO PARTICULAR, de Aly Muritiba; OS PRIMEIROS SOLDADOS, de Rodrigo de Oliveira; e VALENTINA, de Cássio Pereira dos Santos.

A LUZ DO DEMÔNIO (Prey for the Devil)

O legado de O EXORCISTA (1973), de William Friedkin, não foi totalmente positivo. A imensidão de filmes sobre possessões demoníacas que surgiram no rastro não está no gibi - ou está, na verdade. E olha que o filme de Friendkin nem trabalha tanto assim com jump scares e sustos baratos. Isso ficou a cargo de outros tantos exemplares que surgiram posteriormente. Este A LUZ DO DEMÔNIO (2022), do mesmo diretor de O ÚLTIMO EXORCISMO (2010), não é de todo ruim, mas também não empolga ou assusta. O que ele tem de mais interessante é fazer um convite a voltar a crer nas bases católicas que parecem um tanto esquecidas no cinema do gênero contemporâneo. E isso parece ser uma tarefa um pouco difícil para os não-iniciados. As imagens e os simbolismos, porém, tem sua importância: a figura de Miguel, o Arcanjo, o poço de água benta e o ritual de exorcismo são exemplos disso. Na trama, uma jovem freira com um trauma do passado (dois, na verdade) tem a intenção de se tornar uma exorcista dentro de uma estrutura de igreja que ainda afasta as mulheres dessa função. Seu batismo de fogo será o trabalho com uma garota que estaria endemoniada.

quarta-feira, novembro 02, 2022

AFTERSUN



Ultimamente tenho pensado cada vez mais na memória. À medida que envelhecemos, nosso conjunto de recordações vai ficando cada vez mais distante e menos palpável. “Palpável”, aliás, é uma palavra que jamais deveria estar junto de “memória”. Mas quando estamos falando de cinema, isso até pode ser um pouco mais possível, pois se trata de uma quase materialização da memória, especialmente quando o filme se propõe a trabalhar esse assunto. O filme em questão é AFTERSUN (2022), longa-metragem de estreia da escocesa Charlotte Wells.

O filme acompanha um passeio de férias de pai e filha. Sabemos muito pouco a respeito dos dois e AFTERSUN demora a nos apresentar à situação. Com o tempo, ficamos sabendo que o pai, Calum, vivido por Paul Mescal, da ótima série NORMAL PEOPLE, vive separado da mãe de Sophie (Frankie Corio). A viagem que eles estão fazendo, em fins dos anos 1990, é para a Turquia, para uma parte do país mais turística, com lindas praias.

Na viagem, eles usam bastante uma camcorder, que registrará alguns dos momentos de alegria e descontração, mas que também poderá captar um ou outro sentimento de desconforto, algo que talvez possa ser lido nas entrelinhas. E é mais ou menos esse o interesse do filme: que muito de seu significado ou do que possa ser absorvido pela audiência seja nesses espaços, nas hesitações das conversas, em detalhes nos rostos, em certas falas. Por isso é uma obra que certamente se beneficiará bastante de uma revisão mais atenta.

Curioso como o filme foi me pegando muito mais em seu terço final, até chegar o momento de impacto que me deixou em um estado de fragilidade emocional e de angústia. E é um sentimento que não dá para descrever direito pois é construído a partir também de um mistério do personagem de Paul Mescal. Pouco sabemos pelo que ele está passando, mas a cena de sua ida à praia é um divisor de águas para a forma como passamos a ver a sua presença. É como se a simples possibilidade de sua morte, de sua ausência, passasse a tornar mais viva e mais importante a sua presença, me desse um puxão de orelha para que eu saísse do torpor de imaginar que naquela viagem nada de importante aparentemente acontece e passasse a valorizar mais cada momento, a valorizar mais o amor daquele pai, que sofre calado.

E o modo como a diretora Charlotte Wells vai trazendo de volta, em seguida, o personagem, como se numa nova materialização, me fez pensar muito em meu pai, no quanto também não tivemos tempo para nos conhecer, no quanto eu não o conheci de fato. A menina vivida pela estreante Frankie Corio é doce desde os instantes finais, mas o processo de primeiro amadurecimento de uma menina de onze anos surge e vemos que ela também pode ser capaz de magoar com palavras, como na cena anterior ao momento em que o pai sobe para o quarto e a deixa sozinha.

E adoro como a entrada em cena da protagonista adulta faz uma conexão com a lembrança de uma forma quase fantasmagórica. Usar "Under Pressure" do Bowie/Queen em determinada cena traz um sentido de dor e de finitude que eu estou ainda para compreender, pois sentimentos não são exatamente para ser compreendidos, mas podem ser racionalizados. Outra canção que é colocada de maneira mais sutil, “Tender”, do Blur, também tem um significado muito especial. Por ser uma espécie de canção meio gospel sobre a necessidade de curar a alma tanto traz luz para a dor do pai e da filha adulta quanto do próprio espectador que, ao contato com o filme, será tocado em algum momento, em maior ou menor grau.

Como AFTERSUN não é um filme que oferece respostas fáceis para seus mistérios, os sentimentos são conflitantes, confusos. Até consigo ver algo de lynchiano no final, embora muitos estejam comparando o filme com THE SOUVENIR, da Joanna Hogg, que é muito mais explícito em sua intenção de ser autobiográfico.

+ DOIS FILMES

RAPACE

Talvez seja preciso conhecer um pouco mais a poética de João Nicolau para apreciar RAPACE (2006), e como só vi TECHNOBOSS (2019), a estranheza ainda segue. Mas é uma estranheza boa e há muita inventividade. O filme acompanha um jovem recém-saído do mestrado e disposto a descansar a cabeça. Ele brinca com a senhora que cuida da casa, conversa com o amigo sobre uma festa e também conversa com uma bela moça sobre a letra de uma música (um rap) que acabara de escrever. Muito interessante o trabalho de experimentação: o atender ao telefone, a transformação de gestos em música, o som e a sombra no carro a caminho da festa. O filme é o primeiro trabalho de Nicolau. Ele estrearia em longa-metragem com A ESPADA E A ROSA (2010).

BAUNILHA

Antes de ficar mais famoso no circuito de festivais com os curtas NOVA IORQUE (2018) e MARIE (2019), Leo Tabosa fez este documentário muito interessante sobre BDSM, um assunto que costuma me interessar bastante. Em BAUNILHA (2017), o diretor entrevista um homem da área do direito, vivendo no Recife, que fala sobre esse seu estilo de vida. Como, segundo o entrevistado, o BDSM é uma arte, Tabosa também mostra várias imagens bem explícitas da prática, com um cuidado plástico que mais se deve ao ritual em si e ao espaço do dono da casa do que à direção de arte do filme, eu diria. Uma cena de ATA-ME!, do Almodóvar, e imagens de livros na estante, nos lembram o quanto essa prática está presente em maior ou menor grau na arte e em nossas vidas.