sexta-feira, março 31, 2017
O FANTASMA DO FUTURO (Kôkaku Kidôtai / Ghost in the Shell)
Ultimamente andei tentando terminar de ler o mangá Ghost in the Shell, aproveitando o lançamento em formato de luxo da obra de Shirow Masamune. Mas, como trata-se de uma obra relativamente extensa e cheia de notas de rodapé do próprio autor e, como eu ando um pouco ocupado e sem saber organizar direito minha vida, estou levando mais tempo do que o normal para concluir. O ideal seria ter terminado de ler o mangá antes de rever a animação O FANTASMA DO FUTURO (1995) e também antes de ver a versão americana em live action A VIGILANTE DO AMANHÃ – GHOST IN THE SHELL (2017), que entrou em cartaz esta semana no país.
Ao menos os dois filmes foram finalizados, ainda que em ordem inversa, e com um pouco de sono, ocasionados por outra crise de laringite alérgica, que, aliás, é outro dos motivos de eu não estar conseguindo ver muitos filmes e séries em casa ou ler muitos livros e quadrinhos. Uma vez dadas as devidas e desnecessárias desculpas, vamos ao filme.
Trata-se de uma obra no mínimo bastante intrigante, que aproveita um mangá cuja ambientação é futurista e cyberpunk, mas que guarda muitas semelhanças com enredos policiais. Até porque a personagem principal e seus colegas pertencem a um esquadrão responsável por combater crimes cibernéticos. E é em meio a esses crimes e a algumas situações que a Major Motoko, uma ciborgue que possui apenas o cérebro humano, mas que tem o corpo totalmente sintético, passa a questionar a sua existência. Será que ela foi manipulada por seus "criadores"? Será que ela ainda é quem um dia ela foi no passado, quando era humana?
É um tipo de questionamento que remete um pouco tanto a filmes como BLADE RUNNER – O CAÇADOR DE ANDRÓIDES, de Ridley Scott, quanto a ROBOCOP – O POLICIAL DO FUTURO, de Paul Verhoeven, duas obras de ficção científica marcantes dos anos 1980. Inclusive, o visual de Tóquio no ano de 2029 lembra um pouco a da cidade cenográfica do filme de Scott, só que um pouco mais colorida, no anime de Mamoru Oshii.
Cultuado nos anos 1990 e em anos posteriores também, graças a continuações e séries que retomavam seu universo, O FANTASMA DO FUTURO volta mais uma vez aos holofotes, graças à recriação americana. Do mangá, há algumas sequências marcantes que são aproveitadas, como a cena dos motoristas do carro de lixo que são perseguidos pelo esquadrão. O fato de um deles achar que tem uma filha e uma ex-esposa, sendo que sua alma (fantasma) foi hackeada, é um dos momentos que trazem uma das interessantes falas do filme, ditas por Batou, o fiel parceiro da Major Motoko: ele fala algo sobre não haver muita distinção entre memórias e sonhos, até porque tudo isso vai um dia morrer e cair no esquecimento.
Mas a valorização de ser humano está presente num dos últimos momentos do filme, quando a Major Motoko confronta o Mestre das Marionetes e descobre quem de fato ele é. Além de muito revelador, as palavras daquele suposto vilão valorizam a identidade e a singularidade humana, algo que nunca será copiado quando surgirem novas e mais sofisticadas formas de inteligências artificiais. Será mesmo, hein?
quinta-feira, março 30, 2017
ARIELLA
Talvez não seja necessário dizer, mas vai que alguém não sabe: alguns filmes da chamada pornochanchada brasileira, mesmo aqueles da primeira metade dos anos 1980, que são os de maior intensidade erótica, fogem um pouco da intenção de serem simplesmente espaços de excitação física para animar as plateias masculinas daquela época ainda não atingida pela febre dos filmes de sexo explícito, que acabou pondo fim ao cinema da Boca do Lixo.
Não que obras de mestres da excitação como Cláudio Cunha, Antonio Meliande e Ody Fraga não possuam seu devido valor artístico. Tem, e muito. A questão é que em filmes como ARIELLA (1980), de John Herbert, a sensualidade é colocada mais como um elemento necessário para a história, além de o filme possuir uma elegância no trato visual que o torna admirável. Assim como também é admirável ele não ser tão conhecido de um público maior.
John Herbert é bastante conhecido como ator, tendo feito muito cinema e também televisão. Começou a carreira de ator na década de 1950, nos estúdios da Vera Cruz, mas é possível destacar a sua curta carreira de cineasta. ARIELLA foi o seu primeiro longa-metragem solo como diretor. Antes disso, ele havia contribuído com segmentos em dois filmes com conteúdo erótico leve. Em ARIELLA, ele revelou ao mundo o talento e a beleza de Nicole Puzzi, na época com apenas 20 e poucos anos, mas bastante convincente em um papel de ninfeta.
O filme é baseado em A Paranoica, um dos vários best-sellers eróticos de Cassandra Rios, uma das primeiras escritoras brasileiras a tratar do tema da homossexualidade feminina de forma bem aberta. No filme, há cenas sensuais de Nicole Puzzi com Christiane Torloni, na época começando a ficar famosa nacionalmente, com a telenovela global CHEGA MAIS. E não custa lembrar que ambas as atrizes estariam no ano seguinte numa das grandes obras-primas de Walter Hugo Khouri, EROS – O DEUS DO AMOR.
Mas falemos de ARIELLA, este filme que já começa com a beleza do corpo de Nicole Puzzi, dormindo na cama, enquanto é vigiada pelo suposto irmão (Herson Capri), que a enxerga com desejo, um desejo que ela também nutre por ele. Mas há um segredo na vida dos dois, na vida de Ariella, que é uma menina que cresce em uma casa de pessoas ricas, mas que não se sente confortável ou pertencente àquele ambiente. Ela costuma passar um pouco de suas frustrações para um diário, que no começo do filme funciona como uma narrativa em voice-over da personagem, e uma bela maneira de nos colocar um pouco na mente dela.
Aos poucos, vamos descobrindo que ARIELLA é um filme de vingança. Um filme de vingança com sexo, em que a personagem principal sabe que a sua maior arma é a sua beleza e sua sensualidade. Quando descobre isso, passa a deixar de lado a timidez, principalmente quando descobre a verdade sobre sua família. Sua missão passa a ser se vingar daquelas pessoas que causaram a morte de seus verdadeiros pais.
Um dos problemas do filme também pode ser considerado um acerto: Lúcia Veríssimo, que aqui é creditada ainda com outro nome, Lúcia Buxy, uma das mulheres mais lindas a passar pelo cinema brasileiro está deslumbrante. Em ARIELLA seu papel é bem pequeno, como a noiva de um dos irmãos adotivos da protagonista. Imagina só se dessem mais espaço para ela. Podia complicar e prejudicar os holofotes, que deviam mesmo ser apontados para Nicole Puzzi.
Mas não dá para negar o quanto a câmera namora Nicole, aqui vista nua em pelo. Mas tudo de maneira muito elegante, já que o filme de Herbert não tem o erotismo como base do enredo. Ele é importante para dar poder à Ariella em sua trajetória de vingança. Assim como também é importante um filme que apresenta duas personagens femininas que se juntam não apenas para chegarem a um objetivo em comum, mas por que se gostam e sentem atração uma pela outra. Provavelmente há outros exemplares parecidos produzidos na época (como GISELLE), mas não há tantos. E não dessa maneira tão despida de culpa.
segunda-feira, março 27, 2017
T2 TRAINSPOTTING
O mundo mudou muito dos últimos 20 anos para cá, embora muita coisa tenha permanecido igual, como é o caso do consumismo e da superficialidade das pessoas, principalmente em tempos de redes sociais. Isso fica bastante explícito no ótimo monólogo de Renton (Ewan McGregor), atualizando para os novos tempos o “Choose life” do clássico original de 1996.
Em tempos de sequências caça-níqueis descaradas, é bom ver um filme que faça sentido, tenha frescor e não apenas tente emular o espírito do anterior – isso seria complicado, levando em consideração que a história também se passa com um intervalo de 20 anos. Se antes havia uma conexão de amizade entre os quatro personagens, agora, depois da traição de Renton no final do primeiro filme, a noção de amizade é posta à prova. Ou totalmente deixada de lado.
Quem continua sendo puro em seus sentimentos é Spud (Ewen Bremner), até por não ter evoluído. Ao contrário: como o vício da heroína não o abandonou, sua vida se tornou ainda mais miserável, levando em consideração que agora está sozinho nessa. É ao mesmo tempo de rir e chorar o momento em que ele fala de sua tentativa de se adaptar à sociedade, quando sequer sabia que existia um horário de verão em seu mundinho de junkie. Por isso sempre chegada aos compromissos com uma hora de atraso.
T2 TRAINSPOTTING (2017) é o tipo de filme que funciona melhor com uma revisitada ao original, que continua sendo a melhor obra já dirigida por Danny Boyle. Muito do mérito está na construção dos personagens criados por Irvine Welsh, autor dos romances Trainspotting (1993) e Pornô (2002). É deste último que o novo filme mais bebe da fonte.
Histórias sobre reencontros após vários anos são quase sempre interessantes. Quando os personagens são bons e temos histórias incríveis deles na memória, então, a expectativa se torna maior. E Boyle não desaponta. Os quatro rapazes, Renton, Simon (Jonny Lee Miller), Spud e Begbie (Robert Carlyle), estão muito bem representados de volta, com mais de 40 anos, ainda que Simon e Begbie, cada um à sua maneira, estejam ainda mais envenenados pelo tempo e pelo estilo de vida. Simon, por ter se transformado em um chantageador e cheirador de cocaína; Begbie, por nunca ser mesmo um exemplo de boa pessoa, mas 20 anos na prisão não costumam melhorar as pessoas.
Quem faz muita falta, ainda que apareça em uma rápida, mas marcante, aparição é Diane, a adorável personagem de Kelly Macdonald que foi o interesse amoroso de Renton no primeiro filme. Sua última linha de diálogo não deixa de ter um significado especial. O filme opta por uma personagem feminina mais jovem, Veronika (Anjela Nedyalkova), que não deixa de ser bastante interessante, além de um elemento de fundamental importância para a trama.
Aliás, falando em trama, se o primeiro filme é composto por cenas fragmentadas, mais ou menos soltas, que formam uma espécie de caleidoscópio, T2 TRAINSPOTTING possui uma melhor coesão na sua construção narrativa, para o bem e para o mal. Como os personagens estão mais sóbrios, é até natural que esse tipo de construção funcione melhor, embora, no fim das contas, isso acabe significando bem menos cenas marcantes do que as do filme anterior. O bom é que o enredo é sólido e empolgante, além de contar com uma cinematografia linda, a cargo de Anthony Dod Mantle, que vem trabalhando com Danny Boyle desde os tempos de EXTERMÍNIO (2002), embora o tom mais colorido lembre mais o de outro trabalho menos badalado do diretor, EM TRANSE (2013).
No quesito música, não há tantos momentos marcantes quanto no primeiro filme, embora a brincadeira de trazer novamente "Lust for life", do Iggy Pop, em versão remixada pelo Prodigy, seja muito boa. Outra canção marcante e que deixam rolando até o final para arrepiar os saudosistas é "Dreaming", do Blondie. "Radio Ga Ga", do Queen, já aparece de maneira mais discreta, o que é uma pena. Talvez o problema esteja no fato de que a junção de velhos clássicos com canções contemporâneas nem sempre funcione bem para aqueles que viram o filme original no cinema nos anos 1990. Mas pode ser que funcione a médio prazo, à medida que algumas canções mais novas passem a ser mais conhecidas. Isso se T2 se tornar uma obra de referência tão importante quanto seu antecessor. E isso é muita responsabilidade para a nova produção.
sábado, março 25, 2017
FRAGMENTADO (Split)
Muito bom poder estar vivo para testemunhar a volta por cima de M. Night Shyamalan no que se refere a sua popularidade, readquirida desde 2015 quando ele voltou de maneira mais discreta aos filmes de horror com A VISITA, uma produção de baixíssimo orçamento, mas que faturou muito bem e apareceu em várias listas de melhores do ano. FRAGMENTADO (2016) é claramente uma obra mais ambiciosa. Embora tenha custado apenas 9 milhões de dólares, trata-se de um filme que faz referência, já a partir do título, a uma obra dos tempos da alta popularidade do cineasta indiano, CORPO FECHADO (2000).
Antes de falar da trama propriamente dita, é bom deixar claro que a partir daqui não será possível fugir dos spoilers. Uma vez dado o recado, falemos com calma do filme. A história seria mais uma dessas sobre pessoas que são sequestradas e colocadas em um espaço fechado por um assassino serial. A diferença é que em FRAGMENTADO o psicopata é um sujeito com múltiplas personalidades. 24, sendo que a 24ª é uma espécie de monstro muitíssimo perigoso.
Em um papel arriscado e andando na corda-bamba no território perigoso do ridículo, James McAvoy encarna muito bem esse homem que muda de personalidade como quem muda de roupa. Aliás, a mudança da roupa é também crucial para que vejamos suas passagens de um personagem para outro, seja uma mulher, seja um garoto de nove anos.
Assim como em CORPO FECHADO, também somos apresentados a um protagonista e a um antagonista. No caso, se considerarmos Kevin (McAvoy) o protagonista, Casey (Anya Taylor-Joy, de A BRUXA), uma das três jovens raptadas, seria a antagonista. Ou vice-versa. O que importa é que temos acesso, através de flashbacks, ao seu passado na infância, e descobrimos que ela era uma garota que era abusada por um tio. Aos poucos, vamos percebendo que o repertório de vida traumática da garota será o que a tornará forte para enfrentar aquele psicopata, ao contrário de suas colegas da escola, que têm uma vida normal e são alheias aos perigos do mundo.
Shyamalan até já havia tratado a questão de viver em uma espécie de bolha na sociedade de maneira muito mais inventiva na obra-prima A VILA (2004), mas isso só o torna ainda mais capacitado para lidar com um filme como FRAGMENTADO. Desta vez sem medo de ser autorreferente, o cineasta injeta um pouco de humor de vez em quando, até para se resguardar um pouco se a obra se tornasse uma comédia involuntária, mas é a tensão que é o grande elemento presente. O suspense é comprado com muito prazer pelo público nesse formato até antiquado de narrativa. Sua capacidade de conduzir a audiência com interesse até o fim está mais uma vez presente, ainda que talvez haja algum problema de ritmo lá pela segunda metade do filme.
De todo modo, trata-se de uma das obras de horror mais importantes dos últimos anos, e ter a presença de Anya Taylor-Joy funciona como uma espécie de talismã para FRAGMENTADO, já que ela esteve presente no melhor filme do gênero do ano passado. Sem falar no quanto a atriz/sua personagem empresta força à história, com seu olhar expressivo. O que talvez incomode um pouco é o modo como a conclusão da trama se dá, por mais que ligue bem os pontos e seja coerente com o que tínhamos visto até então.
Os fãs de Shyamalan certamente vão ficar bastante animados com a curta cena final. Dependendo da sessão pode arrancar aplausos. É Shyamalan lembrando mais uma vez quem fez o melhor filme de super-herói do novo milênio e usando um recurso que os filmes da Marvel e da DC têm usado. E com a vantagem de estarmos diante de um autêntico filme de autor, feito por alguém que domina a técnica cinematográfica e filma com uma elegância de dar gosto.
quinta-feira, março 23, 2017
NA VERTICAL (Rester Vertical)
Sempre muito bom estar vendo um filme e não estar acreditando no que está passando diante de nossos olhos. Não que estejamos vendo algo puramente feito para chocar, até porque estamos falando do diretor Alain Guiraudie, o mesmo do sensacional UM ESTRANHO NO LAGO (2013). Assim, quem viu o filme que ganhou o curioso apelido de "Pirocas ao Vento" no Brasil, graças a uma espirituosa crítica de Inácio Araújo, já pode até estar preparado para algo fora do comum em mais um trabalho desse diretor que ainda está sendo descoberto em nosso circuito.
Por incrível que pareça, e por mais que NA VERTICAL (2016) seja um filme que carregue uma atmosfera de sonho o tempo inteiro, são vários os momentos em que a nossa consciência de estarmos vendo algo extraordinário se sobrepõe à nossa vontade de embarcar na viagem proposta por Guiraudie. Seja por causa de algumas imagens de encher os olhos, seja pelas sequências mais provocantes e surreais.
A história tem a sua importância. Somos apresentados a Léo (Damien Bonnard), um roteirista que tem o hábito de buscar parceiros (ou parceiras) e depois largar tudo para voltar para sua vida na cidade grande. O filme se passa, em sua maior parte, no entanto, no campo. É lá que Léo tenta abordar um rapaz, através de cantadas para ele ser um astro de cinema etc. Como não é bem-sucedido na abordagem , vai parar em um campo, onde conhece a pastora de ovelhas Marie (India Hair), mãe de duas crianças. Sob o testemunho das estrelas e com a aceitação do pai da jovem mulher, os dois ficam juntos na casa. A primeira cena de sexo deles é um exemplo do quanto Guiraudie aprecia trazer para um universo de quase fantasia momentos de realismo explícito. E por explícito, estamos falando de sexo explícito também.
Jean-Louis (Raphaël Thiéry), o pai de Marie, também desempenhará um papel importante na história, já que Léo, sabe-se lá por que motivo, é capaz de fazer com que várias pessoas se apaixonem por ele. A vida do protagonista muda da água para o vinho quando Marie decide, ao perceber a real falta de interesse de Léo por ela, em suas idas para a cidade sem dia para voltar, deixar a criança que ambos tiveram juntos totalmente com ele. E aí a narrativa muda da história de um conquistador canalha para a de um homem carregando um bebê por todos os lugares.
Na narrativa, há ainda um personagem de fundamental importância, o velho senhor que cuida do rapaz que é objeto de desejo de Léo. O velhinho é fã de um bom e velho rock and roll, sempre ouvido no volume máximo e é com ele uma das cenas mais inusitadas já vistas no cinema nos últimos anos.
Cheio de sequências memoráveis, NA VERTICAL é desses filmes que são um convite para a revisão, para a entrada novamente naquele mundo louco orquestrado aparentemente de maneira caótica por Guiraudie, mas que percebemos ter sido dirigido com rigor por um dos realizadores mais originais e interessantes da atualidade. Um cineasta do novo milênio que tem sabido lidar com o insólito de maneira fascinante, elaborando desta vez um conto sobre vida, morte, nascimento e sobrevivência, tudo isso em registro queer.
quarta-feira, março 22, 2017
ALIADOS (Allied)
O boato de que ALIADOS (2016) teria sido uma bola fora de Robert Zemeckis custou a me convencer. Ainda que a filmografia de Zemeckis não seja exatamente impecável, seus últimos esforços foram admiráveis – O VOO (2012) e A TRAVESSIA (2015). O novo filme se desprende de inspirações em fatos reais para contar uma história de amor e um thriller de espionagem nos tempos da Segunda Guerra Mundial. Uma história que também lida com confiança e desconfiança. Infelizmente o filme ganhou uma repercussão maior pelas fofocas em torno do caso entre Brad Pitt e Marion Cotillard durante as filmagens.
Quanto ao filme em si, se não está entre as melhores obras do diretor, trata-se de um belo drama de época, com uma reconstituição linda e momentos admiráveis, como é o caso da cena de sexo no carro, quando os dois espiões, sabendo que a missão deles é arriscada demais e que o tempo na Terra pode ser breve, resolvem aproveitar o momento e a tensão sexual que já existia.
Na história, Max (Brad Pitt) e (Marianne) Marion Cotillard são dois espiões que se fingem de casados em um grupo de nazistas em Marrocos. Há uma boa cena de ação em Casablanca e uma movimentação bem conduzida, mas o filme não se prende a isso. Acaba desagradando a alguns justamente por pisar no freio no quesito ação, abrindo espaço para a vida a dois após o casamento e logo em seguida para uma tensão que passa a existir no momento em que Max fica sabendo da possibilidade de sua esposa ser, na verdade, uma espiã nazista disfarçada.
Há em seguida uma cena de piquenique entre o casal e o filho pequeno que é de cortar o coração. Max olha com amor para a esposa e não sabe o que fazer. Quer procurar algo que desminta as acusações de seus superiores. E nisso o filme também é bem-sucedido, ao nos fazer torcer pelo sucesso de Max e pelo retorno da paz entre o casal, por mais que o tom da história acabe se encaminhando para um final trágico.
Como se trata de um filme em que o visual é extremamente importante (do deserto, das cidades, dos interiores, das roupas), o diálogo bem construído por Steven Knight acaba se complementando de maneira espantosa com as belas imagens. Muito provavelmente a química entre o casal deve ter contado pontos para isso, ainda que falte ao filme algo para que atinja a excelência. De uma forma ou de outra, fico bastante feliz que ALIADOS tenha saído do papel e que esteja presente para novas avaliações e reavaliações. Quem sabe o tempo o transforma em um clássico.
terça-feira, março 21, 2017
O FILHO DAS TREVAS (The Resurrected)
Uma das coisas que eu mais curto fazer é ler uma obra literária e em seguida poder acompanhar sua adaptação para o cinema. Às vezes funciona fazer o contrário também, mas corre-se o risco de mentalizar o ator ou atriz na hora de pensar o personagem, e talvez isso não seja muito bom. De todo modo, eu lembro de uma experiência dessas muito positiva, que foi quando li O Cemitério, de Stephen King, só depois de ter visto o a adaptação, CEMITÉRIO MALDITO, de Mary Lambert. Ler o romance foi uma experiência fantástica. Talvez seja o meu favorito do gênero horror. Ou quase.
Nunca tinha lido nada de H.P. Lovecraft e quando passei em uma livraria gigante nos Estados Unidos anos atrás não resisti e comprei o tijolão contendo, em papel bíblia, a obra completa do escritor. Todos os seus contos. Como estava com um DVD de O FILHO DAS TREVAS (1991) para ver já fazia um tempão, escolhi para ler logo, ainda que por muito custo, pois o conto fica ainda mais nebuloso em inglês, até porque eu meio que perdi o hábito de ler obras literárias em inglês. Aliás, quase não tenho lido ficção, por não estar sabendo mais organizar meu tempo ou minha cabeça. Aos trancos e barrancos consegui terminar "O Caso de Charles Dexter Ward", que até tem uma versão traduzida lançada pela LP&M. Trata-se do conto mais longo de Lovecraft. Praticamente uma novela.
Essa história de Lovecraft é bem interessante, pois quase nada é "mostrado". Muita coisa é sugerida pelo que as pessoas pensam que está acontecendo e há muita informação obtida de documentos ou de depoimentos de outras pessoas. É tudo muito misterioso. O que o diretor Dan O'Bannon fez em O FILHO DAS TREVAS foi transformar uma história de horror em algo próximo de um film noir, embora não fuja daquilo que tanto foi seu forte, o horror com gore e efeitos especiais mais orgânicos, que era o que costumávamos ver com frequência nos exemplares de gênero produzidos nos anos 1970 e 1980.
O’Bannon, que fez roteiros de alguns filmes fundamentais do gênero, e que estreou na direção com a ótima comédia de terror A VOLTA DOS MORTOS-VIVOS (1985), um dos melhores filmes de zumbis já feito, aqui atualiza a história de Dexter Ward, esse homem misterioso que ousou mexer com forças malignas. O filme começa com a esposa (Jane Sibbett) se apresentando para um detetive (John Terry) e contando o pouco que sabe do marido desaparecido (Chris Sarandon) e depois aos poucos novos dados vão surgindo, como o fato de o sujeito estar traficando ossos de cadáveres humanos, entre outras coisas bizarras, que se encaminharão para contatos com entidades macabras.
A cara de filme B está presente tanto no modo como o diretor conduz sua trama, quanto nos efeitos especiais, que para os dias de hoje são um tanto datados, mas que é um representante de peso de uma época em que gigantes do cinema trilharam o caminho do horror, sendo que alguns deles chegaram a dirigir roteiros ou histórias de O'Bannon, como John Carpenter, Ridley Scott, Tobe Hooper e Paul Verhoeven. Pena Dan O'Bannon não ter seguido carreira como cineasta depois deste filme, que hoje é tido até como obscuro e um tanto esquecido.
domingo, março 19, 2017
COM OS PUNHOS CERRADOS
O coletivo cearense Alumbramento já tem mais de 10 anos de estrada. Ainda é uma criança, mas tem um currículo admirável, além de passagem por festivais internacionais importantes, como Berlim e Locarno. COM OS PUNHOS CERRADOS (2014), por exemplo, é um que passou por Locarno e se mostra ainda mais arriscado nos dias de hoje do que na época de sua realização. Hoje testemunhamos com ainda mais força a ascensão da direita e do fascismo no nosso país e no exterior. À medida que os progressos conseguidos pelas minorias tiveram um salto, o ódio da classe dominante cresceu ainda mais.
Dirigido em seis mãos por Pedro Diógenes, Ricardo Pretti e Luiz Pretti, também os três protagonistas da história, COM OS PUNHOS CERRADOS é uma admirável ode à liberdade, que utiliza uma série de discursos já feitos, os mais diversos, para, à sua maneira, contar uma história sobre um grupo de amigos que tentam com muito esforço passar suas mensagens através de uma rádio pirata. Mas eles logo são descobertos e recebem uma espiã muito bela (Samya De Lavor) como amante traidora e ao mesmo tempo apaixonada.
Na verdade, a história, ainda que tenha sim a sua importância, é mera desculpa para a apresentação dos ideais anarquistas do grupo – inclusive com o comparecimento de belas canções anarquistas cantadas em espanhol e francês. Aliás, que beleza que é a construção do filme em sua curta duração, através dessa colagem de discursos, sons, música e um tipo de direção que procura fugir do lugar comum a todo o momento. Que belos são os poemas (o poema erótico dedicado a um corno é genial e por isso é interessante ver o filme mais de uma vez.). Encerrar com uma canção sobre liberdade escrita pelo Belchior (“Como o diabo gosta”) só aumenta ainda mais o nosso amor por esse trabalho.
Um dia desses estava conversando com um familiar meu que tem uma visão de mundo bastante conservadora e praticante da ordem e ele elogiava os atos do prefeito de São Paulo quanto aos pichadores. Todos são bandidos, afirma o Prefeito. Um filme como esse, por exemplo, que prega a desobediência civil e questiona a ordem instituída certamente não seria nada bem visto pelas pessoas que acreditam que o lema “ordem e progresso” de nossa bandeira deve mesmo ser levado a sério. Até porque o tal progresso é algo que nunca chega de verdade. E a ordem é só uma forma de dominação das massas.
Um dos mais bonitos trechos de COM OS PUNHOS CERRADOS é um que mostra Uirá dos Reis, a Blanche de DOCE AMIANTO (2013), falando na rádio sobre o fato de os artistas serem os verdadeiros aristocratas da nossa frágil democracia. Que bonito esse pensamento e mais bonito ainda é o seu desenvolvimento através das palavras do artista, que, ainda por cima, aparece com as unhas pintadas de vermelho e pregando a liberdade acima de tudo. É através da arte que alcançamos a liberdade, afinal.
É por isso que filmes como esse são necessários. É por isso que a arte deve, com frequência, ser um ato político. Nossa esperança está nos jovens, na sua força e persistência. E, por mais que um grupo como o Alumbramento tenha ainda um alcance muito restrito a intelectuais e cinéfilos frequentadores de salas alternativas, a semente deve ser lançada em solo fértil para que possa gerar frutos. Esperamos que seja para breve.
sábado, março 18, 2017
TRÊS DOCUMENTÁRIOS MUSICAIS
Minhas tentativas de dar uma alavancada no número de filmes escritos por postagem aqui neste blog não estão se saindo muito bem. Talvez eu tenha que usar mais dessas estratégias que não me agradam tanto, mas por enquanto vamos seguindo, conforme o tempo vai permitindo e o interesse ou a falta de interesse em tecer mais detalhes sobre determinado filme predominam. Falemos, então, de três documentários musicais que me agradaram, em menor ou maior grau.
THE BEATLES: EIGHT DAYS A WEEK - THE TOURING YEARS
O caso do filme de Ron Howard, THE BEATLES: EIGHT DAYS A WEEK - THE TOURING YEARS (2016), é que o que mais importa não é o trabalho até simples de Howard de focar na época em que os Beatles estavam fazendo shows, mas no próprio modo como olhamos para uma maior aproximação com os quatro rapazes de Liverpool sempre com entusiasmo e fascínio. Mas acho que nem era isso o que eu ia dizer neste filme nascido principalmente numa ilha de edição. O que importa mesmo é o show histórico que os Beatles fizeram em Nova York. Aquele que conhecemos apenas por alguns trechos exibidos em reportagens e que mostram o quão foi complicado para eles darem conta de uma multidão tendo uma aparelhagem de som que na época não era capaz de ser ouvida com qualidade por tanta gente junta. Ainda mais com tanta gritaria na época da beatlemania. Mas conseguiram fazer uma restauração para o cinema que ficou a coisa mais linda do mundo, com exibição quase integral do show e algumas canções que eu não sabia que haviam sido tocadas, como "Act naturally", lindamente cantada por Ringo; ou "Baby's in Black", pelo John, que praticamente monopoliza os vocais. Mas ao que parece a versão em DVD não contém este show no Shea Stadium, que nos cinemas aparece como bônus (sendo que na verdade é o que há de mais importante). O filme também junta atores conhecidos de Ron Howard para falar de suas experiências com a banda, como Whoopi Goldberg e Sigourney Weaver.
AXÉ - CANTO DO POVO DE UM LUGAR
De vez em quando surgem filmes que nos fazem não apenas viajar no tempo, como até mesmo reavaliar o conceito que nós tínhamos de determinada coisa. No caso, a axé music, que na época do seu auge, anos 80 e 90, definitivamente não fazia a minha cabeça. Eu, por gostar de rock, inclusive, quase que odiava aquilo tudo. Mas AXÉ – CANTO DO POVO DE UM LUGAR (2017), de Chico Kertész, está aí para não só nos fazer ver o quanto esse estilo merece mais atenção, como nos levar para uma viagem musical para a nossa infância ou além dela, já que o axé foi herdeiro do trilho elétrico de Dodó e Osmar, que usavam uma guitarra bem interessante, a guitarra baiana. Quem trouxe uma modificação e uma revolução nos anos 1980 foi Luís Caldas, com o uso do sintetizador no lugar das guitarras e uma sonoridade mais pop e mais simples. Ele é considerado o pai do axé e conquistou grandes audiências com "Fricote", aquele clássico que fala de uma "nêga do cabelo duro, que não gosta de pentear". Depois disso vemos inúmeros artistas que fizeram a história do gênero musical, além de muita treta e polêmica que rolou ao longo dos longos anos e da chamada invasão baiana. Vale destacar a chegada de Daniela Mercury, que foi a artista que trouxe reconciliação com a crítica, que em geral não via com bons olhos o ritmo. O filme é um barato e assistimos com muitos risos e entusiasmo. Pena que foi visto por poucos em suas rápidas exibições nos cinemas.
ESPECIAL IVETE GIL CAETANO
Falando em axé, hoje em dia não há como deixar de fora uma artista com tanta força e influência como Ivete Sangalo. Neste DVD ela aparece cantando ao lado de dois medalhões da MPB, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Além das canções cantadas pelos três de maneira muito simpática e elegante, de vez em quando eles param para falar alguma coisa espirituosa. Destaque para o momento em que Ivete diz que ali estão três homens. Caetano em seguida fala: ou três mulheres. Ou não. Coisa parecida. O repertório do show traz pérolas como "Olhos nos olhos", "Tigresa", "Você é linda", "Drão", "A luz de Tieta", "A novidade", entre outras. A generosidade de Gil e Caetano em dar os holofotes principalmente para Ivete é louvável, levando em consideração a importância dos dois para a história de nossa música. Mas a cantora também faz valer o título, com seu carisma e sua cada vez maior aproximação com a MPB.
quarta-feira, março 15, 2017
TONI ERDMANN
O favorito da Cahiers du Cinéma do ano passado e um dos mais populares títulos da excelente edição do último Festival de Cannes finalmente entrou em circuito comercial para uma maior apreciação. TONI ERDMANN (2016), terceiro longa-metragem da realizadora Maren Ade, talvez seja evitado pelo grande público por sua duração longa para uma comédia. São duas horas e quarenta minutos, mas, uma vez que vemos o filme, além de não sentirmos o peso do tempo, temos a certeza que esse período de tempo se mostra bastante necessário para a construção dos personagens e para que algumas cenas tivessem a grandeza que ganharam, como é o caso da cena com a canção "The greatest love of all" ou a hilariante cena da festa, com uma profusão de gags atrás da outra que parecem inacreditáveis se pensarmos no naturalismo quase documental que Ade impõe ao seu filme.
TONI ERDMANN começa apresentando o personagem do pai, Winfried (Peter Simonischek), um sujeito que adora pregar pequenas peças nas pessoas. Sua maneira de ver a vida, na brincadeira, é totalmente oposta à da filha, Ines (Sandra Hüller), que vive uma rotina de trabalho pesado como executiva de uma multinacional. Depois ficamos sabendo que seu trabalho não é nada agradável, tendo que executar cortes e demissões de trabalhadores para enxugar a folha de pagamento das empresas.
A filha chega à Alemanha para uma rápida passagem e o pai não tem tempo de vê-la. Com a morte do cãozinho idoso de Winfried e o fato de ele ser praticamente aposentado, ele tem a ideia de visitá-la no local onde ela está trabalhando atualmente, em Bucareste, na Romênia. Como se trata de um país mais pobre do que a Alemanha e cheio de complexidades, o ambiente diferente (inclusive para os personagens) acaba funcionando também como mais um atrativo para o filme.
Temos aqui uma comédia bem pouco comum. Aliás, é raro vermos uma comédia alemã no circuito. O humor alemão talvez seja ainda muito estranho para nós. Talvez a imagem que temos deles seja de excessiva seriedade. O que importa é que o humor funciona que é uma beleza nesse registro mais pausado e quase sem música de contar uma história, o que só mostra o quanto o filme é bem-sucedido na maneira como faz rir (mesmo quando nem todo mundo ri das piadas). Trata-se de um humor de constrangimento, que encontra paralelos com a série THE OFFICE (tanto a versão britânica quanto a americana).
A escalada desse humor chega a um ponto inesperado. Aliás, cada cena de TONI ERDMANN é uma surpresa. Há, claro, o aspecto dramático do filme, que ganha ao menos duas cenas bem bonitas e que certamente estarão na memória afetiva dos apreciadores do filme. Talvez a parte dramática seja o seu ponto menos forte, embora seja rico em trazer reflexões sobre o modo como vivemos.
Já foi anunciada uma refilmagem americana de TONI ERDMANN, que por enquanto tem o mesmo nome, trazendo ninguém menos que Jack Nicholson para viver o pai, e Kristen Wiig para viver a filha. Será o inesperado retorno de Nicholson depois de já terem falado que o ator havia se aposentado. Porém, mais do que aguardar o remake americano, o mais importante é tentar ir atrás dos trabalhos anteriores da diretora Maren Ade, que não esteve à toa na competição oficial de Cannes.
segunda-feira, março 13, 2017
SILÊNCIO (Silence)
Sabe aquelas vezes em que pedimos algo a Deus e tudo o que ouvimos é silêncio? É mais ou menos sobre isso o novo filme, dessa vez mais explicitamente católico, de Martin Scorsese. Aqui sofrimento é maior. Há quem esteja chamando o filme de “A paixão de Martin Scorsese”, tanto pelo sofrer que o filme mostra em sua longa duração, quanto pela trajetória dura percorrida pelo filme, injustiçado e esnobado nas premiações, um raro filme deste que é um dos maiores cineastas em atividade que não teve uma repercussão pelo menos decente. Acabou recebendo injustamente o silêncio de muitos em retorno.
SILÊNCIO (2016) é o filme do cineasta ítalo-americano que mais se aprofunda na fé, aproximando-se apenas de A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO (1988) e um pouco também de KUNDUN (1997), em sua filmografia. Mas aqui a questão da fé é posta mais em evidência, os próprios personagens, principalmente o protagonista, vivido por Andrew Garfield, está o tempo todo vivendo provações e questionando os seus atos e pensamentos. E em meio a esses momentos também ficamos ora nos sentindo tentados pelo demônio (como em uma cena chave com Liam Neeson), ora achando que morrer por causa de um símbolo é uma estupidez.
A imagem é um elemento essencial em SILÊNCIO. Por isso é um filme mais direcionado aos católicos do que aos demais cristãos, que não são ligados em cruzes, rosários, fotos de santos ou coisas do tipo. E não deixa de ser, justamente por isso, mais associado ao cinema. Na trama, dois missionários portugueses, Rodrigues (Andrew Garfield) e Garupe (Adam Driver), partem em uma missão, por espontânea vontade, em busca de um padre que teria renegado a fé e teria desaparecido em uma época em que os japoneses começaram um processo de matar todo e qualquer praticante da fé cristã.
Não deixa de ser emocionante quando, ao desembarcar em uma comunidade na região costeira, encontram um grupo de cristãos praticantes que vivem como os cristãos primitivos perseguidos pelo Império Romano. Os portugueses são recebidos como santos e muito queridos por aquele povo tão carente da fé que professavam, mesmo sabendo que poderiam ser assassinados brutalmente se fossem descobertos. E compartilhamos da surpresa dos dois portugueses recém-desembarcados.
Claro que Scorsese não faria um filme tão unilateral. Em boa parte das vezes, os japoneses caçadores de cristãos são vistos como vilões, mas há uma discussão interessante sobre a questão da verdade em certo momento. Será ela única e exclusiva, como diz o Padre Rodrigues, que não vê a entrada do Cristianismo em uma nova nação como o começo do fim de toda uma cultura milenar, como aconteceu em tantos outros países que abraçaram a fé cristã?
De todo modo, ainda que sejamos apresentados brevemente a alguns conceitos budistas, acerca da ilusão, como no diálogo com um guarda japonês, o filme é mesmo sobre o sofrimento daquele padre sendo obrigado a rejeitar a sua fé e ver dezenas de pessoas morrerem por sua causa. Eis a transferência da culpa, tão comum nos filmes de grandes cineastas católicos, e que aqui se apresenta de maneira pura. Como não ver com um misto de tristeza e alegria a morte daqueles três japoneses que são torturados e mortos no mar, sendo que um deles canta um louvor a Deus antes de dar o último suspiro?
Difícil não fazer uma comparação com o mais recente filme de Mel Gibson, ATÉ O ÚLTIMO HOMEM, também estrelado por Andrew Garfield, que pesa muito a mão ao mostrar o heroísmo pacífico de um homem. Além de Garfield estar muito melhor em SILÊNCIO, o filme de Scorsese é muito mais arriscado e rico em sua proposta de cinema, trazendo à tona também a beleza das imagens. Em meio à dor daqueles personagens, há uma cena de um barco no meio da noite escura e vemos lindas estrelas no céu; em outro momento, uma lua enorme surge do lado esquerdo, como que para mostrar as belezas da criação, ainda que o silêncio de Deus diante de tudo o que acontece seja de fato incômodo.
Como todo trabalho de Scorsese, não há espaço para a alegria na trajetória de seus personagens. Há sempre um gosto bastante amargo no final. E assim testemunhamos a jornada de seu herói, que se sente tão ou mais pecador quanto aqueles que o rodeiam. O final do filme é desses que ficam nos assombrando por horas. E basta pensar nele de novo para sentir a angústia daquele homem. Chorar? Talvez não. Como na maioria dos filmes de Scorsese, o choro é substituído pelo aperto no peito e o engolir em seco.
domingo, março 12, 2017
PERSONAL SHOPPER
O que eu havia ouvido falar, meio sem querer saber muito a respeito de PERSONAL SHOPPER (2016) antes de efetivamente vê-lo, era de que se tratava de uma experiência de Olivier Assayas com o gênero horror ou suspense, mas que nem sempre ele era bem sucedido. Se não ser bem-sucedido for o que eu vi há algumas horas eu não sei mais o que é. Claro que expectativas podem mexer e atrapalhar muito o quanto uma pessoa vai gostar de determinado filme e aqui eu certamente fui beneficiado por isso. Até porque se você disser que PERSONAL SHOPPER é um filme de horror, alguém até pode se decepcionar, esperando um filme de sustos.
Por isso é melhor seguir aquela sinopse de que se trata de um filme de uma moça americana que trabalha como personal shopper, ou seja, ela compra roupas e outras coisas para uma mulher rica e famosa de Paris. Essa moça tem a habilidade de se comunicar com os mortos e deseja entrar em contato com o falecido irmão gêmeo. Talvez saber isso seja o suficiente. Se é que é necessário saber alguma coisa antes de ver o filme. Quando passou em Cannes, ele foi selecionado por ter o nome de um autor consagrado na direção. E era a segunda parceria de Kristen Stewart com Assayas depois do premiado ACIMA DAS NUVENS (2014), o que também chamava a atenção.
O que não se esperava era que Assayas, de certa forma, reinventasse o filme de fantasmas. O que vemos em PERSONAL SHOPPER é fantástico. É uma maravilha para um fã do gênero que não seja tão apegado aos clichês e esteja aberto a diferentes e criativas narrativas. Podemos dizer que o filme consegue ser realista, mesmo mostrando imagens de fantasmas – um deles vomitando ectoplasma, inclusive. Aliás, se não fosse este momento a dúvida quanto ao mundo dos espíritos poderia ficar rondando o espectador, algo que não acontece, inclusive na cena em que Maureen, personagem de Kristen, está teclando no celular com um desconhecido que talvez seja o espírito do irmão que está lhe pregando uma peça ou um espírito hostil.
PERSONAL SHOPPER traz arrepios como filme de horror sim, mas também arrepia quando nos faz pensar sobre a natureza do luto, em especial o luto de Maureen, já que ela é uma pessoa incompleta. Perdeu um irmão gêmeo muito próximo e vive como uma fantasma, de certa forma. Ela tem a habilidade de abrir portais para o mundo dos mortos, por mais difícil que isso seja. O filme também fascina ao mostrar uma longa conversa pelo celular da protagonista com essa pessoa desconhecida e perturbadora, que arranca dela coisas como querer ser outra pessoa ou gostar de coisas que lhe são proibidas. No meio disso tudo, vemos Maureen/Kristen o tempo inteiro na tela, esperando (pelo irmão) e comprando e experimentando roupas (coisa que não deve fazer) para sua empregadora.
Assayas não deixa de ser o mais globalizado dos cineastas contemporâneos com PERSONAL SHOPPER. Ao contrário: ele agora consegue não apenas borrar as fronteiras entre países, mas também entre séculos e até mesmo entre dimensões, o que é fantástico e fascinante. Seus demais filmes de certa forma falavam sobre os mortos ou sobre o passado, como HORAS DE VERÃO (2008), em que uma família debate sobre a vida após a morte da matriarca, ou ESPIONAGEM NA REDE (2002), em que podemos ver uma espécie de morte de alguém e que já flertava fortemente com o gênero horror, já a partir do título original ("Demonlover"). Mesmo IRMA VEP (1996) é um filme que remete a fantasmas do cinema mudo. Por isso, o que quer que tenha levado Assayas a se interessar em fazer um filme de fantasmas propriamente dito talvez já fosse inevitável.
sábado, março 11, 2017
KONG – A ILHA DA CAVEIRA (Kong – Skull Island)
Lembram de como era empolgante ver o trailer de KING KONG, de Peter Jackson, e quando vimos o filme percebemos que não era aquilo tudo que esperávamos? Pois bem. O exato oposto acontece com KONG – A ILHA DA CAVEIRA (2017), do pouco conhecido diretor Jordan Vogt-Roberts. O trailer parecia mostrar um filme trashy e o que vemos é uma pequena joia que Hollywood é capaz de produzir de vez em quando. Por mais que o jeitão de filme B esteja presente do começo ao fim (e isso faz parte do charme de KONG), os quase 200 milhões de dólares investidos na produção podem ser visualizados em cada frame, muitas vezes prestando homenagem à época em que se passa, os anos 1970.
Uma das coisas que mais encanta em KONG é que trata-se de um filme que nos pega pelo braço desde os primeiros minutos e que, ao contrário da grande maioria dos filmes de ação movimentados que costumamos ver nos cinemas, ele não chega a perder o fôlego quando chega em seu clímax. Ao contrário: é preciso de vez em quando despregar da cadeira para ver mais de perto (como se o 3D já não nos aproximasse o bastante) o que estamos vendo. Ou seja, um espetáculo de monstros gigantes em uma aventura fora do comum. Pelo menos dentro do que costumamos ver atualmente.
Antes de mais nada, KONG – A ILHA DA CAVEIRA empolga por começar como uma espécie de APOCALYPSE NOW. Ou seja, um filme de busca de alguém perdido em uma floresta selvagem e inexplorada pela dita civilização. A comparação com o épico drama de guerra de Coppola não é em vão: há um cartaz da versão IMAX do filme que emula a adaptação da obra de Joseph Conrad. O próprio nome do personagem de Tom Hiddleston, aliás, é Conrad.
Não basta ter uma turma prestes a adentrar uma ilha desconhecida do Pacífico: é preciso também vários helicópteros militares para dar aquele ar de APOCALYPSE NOW. E com eles vêm uns rocks da década de 1970, como Jefferson Airplane, David Bowie, Black Sabbath, Creedence Clearwater Revival, que junto com a trilha orquestrada que dá o tom nos momentos mais intensos do filme ajudam bastante a diferenciá-lo de tantos outros que desembarcam todas as semanas nos cinemas.
KONG – A ILHA DA CAVEIRA tem mais a ver com os filmes da japonesa Toho, que originalmente criou o Godzilla, na década de 1950, do que com o King Kong original. Em nenhum momento, por exemplo, o filme tem a intenção de mostrar os personagens deixando a ilha. A ilha e os seus perigos e o aspecto heroico e nobre do gorilão Kong é que são os maiores apelos, embora não faltem bons personagens. Brie Larson está ótima como a repórter que cobre guerras, o já citado Tom Hiddleston ganha seu primeiro protagonismo de destaque em Hollywood e Samuel L. Jackson não precisa se esforçar nada para fazer o coronel louco por um conflito e que ficou triste com a saída dos Estados Unidos da Guerra do Vietnã.
Outras produções a que KONG acaba remetendo, seja direta ou indiretamente, são os filmes de canibais que os italianos fizeram nas décadas de 1970/80. Há até uma cena que faz lembrar CANIBAL HOLOCAUSTO. Mas, embora haja um tanto de violência gráfica, ela é fruto mais dos efeitos visuais da Industrial Light & Magic e faz parte do pacote da diversão desse filme movimentado. É possível rir inúmeras vezes ao longo da narrativa. O então desconhecido Vogt-Roberts mostrou, além de tudo, possuir um bom timing cômico.
Justamente por isso é bom avisar que KONG – ILHA DA CAVEIRA não tem aquele tom dramático que as versões de KING KONG, dos anos 1930, 1970 e 2000 possuem. Ao contrário, a intenção aqui é divertir, fazer o espectador rir e às vezes até se segurar na cadeira em suas quase duas horas de diversão. Ao sair do cinema, fica até difícil imaginar outro blockbuster tão empolgante a aportar neste ano.
Aproveitando: há uma cena pós-créditos bem bacana.
quarta-feira, março 08, 2017
A CRIADA (Ah-ga-ssi)
Um dos filmes mais deliciosos dos últimos anos, A CRIADA (2016), de Chan-wook Park, tem sido comparado a PULP FICTION – TEMPO DE VIOLÊNCIA, de Quentin Tarantino, por causa de sua trama apresentada e recontada em diferentes perspectivas e de maneira inventiva. Mas confesso que na hora a comparação com a obra do cineasta americano nem passou pela minha cabeça, embora tenha algum sentido a comparação.
O fato é que, por mais que a trama seja sensacional, o que mais conquista o espectador são duas coisas: as imagens deslumbrantes – a cargo de Chung-hoon Chung, mesmo diretor de fotografia de outros celebrados e plasticamente lindos trabalhos de Park, como OLDBOY (2003) e SEDE DE SANGUE (2009) – e a voltagem erótica entre duas jovens mulheres.
Por isso falar da trama pode ser uma tarefa que talvez torne o filme menos atraente do que ele definitivamente é. Sem falar que o ideal é ver o filme sem saber nada a respeito, a não ser algum pequeno detalhe, como o fato de se passar na Coreia do Sul dos anos 1930, quando o país estava sendo ocupado pelos japoneses. Naquela época, pelo menos como o filme apresenta, os coreanos se sentiam inferiores aos japoneses, que já incutiam neles a ideia de que o povo nipônico era superior em tudo, seja na beleza, seja na inteligência.
Em meio a isso tudo, temos uma história de amor, sedução e traição envolvendo uma jovem coreana, Sookee (Kim Tae-ri), que é contratada para trabalhar para uma herdeira japonesa, Hideko (Kim Mee-Hee), que mora em uma grande mansão, habitada também pelo tio autoritário e que tem uma preferência especial por perversões sexuais. A função de Sookee é fazer com que Hideko se apaixone ou fique interessada no vigarista que se apresentará como um pretendente capaz de enfim dar a ela a liberdade almejada.
Há uma série de surpresas na história, que é contada depois em mais duas diferentes perspectivas, mas, embora isso torne o filme ainda mais divertido e empolgante, o que mais importa mesmo é ver cada enquadramento perfeito com suas cores bem destacadas e cada lindo movimento de câmera de Park. E também as cenas de tensão sexual entre as duas moças, que explodem em uma das mais belas cenas de sexo do cinema do novo século. Diria até que ela consegue superar em beleza e em voltagem erótica as tão faladas cenas eróticas da produção francesa AZUL É A COR MAIS QUENTE. Deixando claro que, embora seja também uma história de amor, não há muito espaço para lágrimas em A CRIADA. Aqui o tom é de comédia, misturado com horror psicológico e suspense. É filme para se ver com um sorriso de orelha a orelha no rosto.
E é exatamente assim que saímos do cinema depois de ver este que talvez seja o melhor dos filmes de Chan-wook Park: felizes de termos experienciado algo definitivamente especial e belissimamente dirigido por um cineasta que mostra que ainda está entre os maiores nomes do cinema oriental e fazendo cinemas com um alcance universal.
Falando em ser universal, A CRIADA é uma adaptação de Na Ponta dos Dedos, romance da galesa Sarah Waters, escritora famosa por criar histórias com plot twists inventivos e gostosos de acompanhar. Sendo assim, eis que Park fez uma adaptação próxima da perfeição. E com a vantagem de usar os close-ups, travellings e demais ferramentas do cinema para enfatizar a beleza dos corpos e o apetite sexual das mulheres. Um filme como esse não se vê todo dia.
domingo, março 05, 2017
TRAINSPOTTING – SEM LIMITES (Trainspotting)
Cerca de 20 anos já se passaram da vez em que me dirigi ao saudoso Cine Fortaleza para ver o incensado TRAINSPOTTING – SEM LIMITES (1996). A época foi uma das mais interessantes pra mim, ainda em fase de descobertas no campo da música, mas já um bocado habituado com o cinema contemporâneo, embora o filtro limitado do circuito daquele tempo em Fortaleza reduzisse bastante a quantidade e a qualidade dos filmes vistos no cinema.
TRAINSPOTTING foi recebido com tanto entusiasmo pela crítica, principalmente pela crítica mais pop, que já cheguei no cinema pronto para ver uma obra-prima. E, nesse sentido, acabei me decepcionando um pouco. E já percebendo que Danny Boyle não era nenhum mestre da nova geração, ou mesmo um autor, embora ele tenha conseguido, de lá pra cá, dirigir outros trabalhos interessantes ao longo dos anos. Mas é até possível dizer que seu filme mais marcante é mesmo TRAINSPOTTING, principalmente visto em retrospecto e percebendo o quanto ele continua fresco e pungente.
É um filme que se destaca pela força de algumas cenas em separado, pelo ótimo conjunto de personagens e pela trilha sonora que alterna clássicos do rock com canções da época. Já começar com "Lust for life", do Iggy Pop, já ajuda bastante a gente a gostar do filme. Das canções da época, gosto muito de ouvir ao fundo "2:1", do Elastica, e me lembrar do quanto eu gostava dessa banda de meninas.
Ver o filme é também rever a juventude de alguns personagens e eu adorei a Diane, personagem de Kelly Macdonald, debutando no cinema. Tão linda. E ainda há uma boa cena de sexo dela com o Ewan McGregor. Aliás, não é bem uma cena em si, mas uma colagem de cenas deles e dos outros personagens também envolvidos com sexo após irem uma festa, depois de terem largado por um tempo a heroína.
E é curioso como TRAINSPOTTING consegue olhar a droga com certo romantismo, ao mesmo tempo em que a vê como algo terrível e extremamente perigoso. "É muito melhor do que sexo", um dos personagens diz. E deve ser mesmo, embora as consequências do uso sejam brutais ou mesmo fatais. A cena do bebê da jovem viciada é perturbadora, por mais que o filme tente tratar quase tudo de maneira mais leve. E é por esse caminho espinhoso que o filme trafega com elegância.
Não se trata de um filme de plot. Não há uma história em si que resuma o filme. São histórias soltas dos mesmos personagens, jovens que se acostumaram a viver uma vida desregrada e pouco se importando com as responsabilidades, pelo amor à droga. A mesma droga que eles sabem que deve ser deixada de lado, sob o risco de perder o pouco que lhes resta de vida. Ou seja, é um tema bastante sério que é tratado de maneira bem humorada.
A cena mais marcante envolve um supositório que é entregue a Renton (McGregor), para que ele possa dar início ao processo de desintoxicação da heroína. Acontece que no meio do caminho ele sente uma necessidade imensa de usar o toalete. E o toalete que ele encontra é o mais feio e o mais fedido do mundo, conforme sua própria descrição, que, aliás, denuncia um pouco as origens literárias da obra adaptada. Uma vez que ele faz o número dois ele percebe que o supositório foi junto. E entra literalmente no sanitário para recuperá-lo. Se a cena é descrita de tal forma no romance de Irvine Welsh, palmas para Boyle, que soube tão bem transpô-la para as telas.
O diretor, o roteirista e o elenco principal estão de volta para uma sequência, T2 – TRAINSPOTTING, previsto para estrear ainda este mês no Brasil, e o principal motivador para que eu revisse o primeiro TRAINSPOTTING. Desejo sorte a todos os envolvidos. Até porque, se eles ganham, nós ganhamos também com o sucesso do novo filme.
sexta-feira, março 03, 2017
LOGAN
Ainda está para chegar um filme adaptado de um super-herói dos quadrinhos que consiga chegar ao posto de obra-prima, como já chegaram tantas obras de roteiristas e artistas famosos, principalmente a partir dos anos 1980, quando uma série de graphic novels de renome revolucionou os quadrinhos de super-heróis. Talvez isso aconteça porque o cinema sempre ficou à sombra de seu objeto de inspiração, ou talvez porque tenha faltado um grande realizador que assumisse tal empreitada, embora possamos nos lembrar com carinho do Hulk de Ang Lee, tão estranho quanto interessante.
Levando em consideração o currículo apenas mediano de James Mangold, LOGAN (2017) pode ser visto como um feito e tanto. Até porque Mangold foi o escalado também para dirigir o segundo filme solo de herói das garras de Adamantium, WOLVERINE - IMORTAL (2013) e o resultado não foi muito animador, embora seja muito superior ao horrível filme de origem do herói. A ideia de fazer um história mais realista e mais dura com seu personagem, agora um velho amargurado e alcoólatra, encontra ecos no melhor trabalho de Mangold, COP LAND (1997), estrelado por Sylvester Stallone.
Não é um filme perfeito como gostaríamos de ver e como boa parte da crítica do Festival de Berlim andou descrevendo, mas é sim uma realização de respeito, que talvez falhe pela falta de uma montagem mais eficiente. Também nota-se que o sentimento que o filme quer passar, tanto nas cenas de violência como nas da relação de Logan com a garotinha Laura, nem sempre funciona do ponto de vista da emoção. Parecem mais tentativas do que acertos.
Mas falemos das qualidades de LOGAN, este filme que se inspira na versão mais velha do personagem, apresentado pela primeira vez no arco de histórias "Old Man Logan", escrito por Mark Millar e desenhado por Steven McNiven em 2008-2009, e que se tornou um clássico. Mangold cria uma nova história a partir da ideia de um Wolverine velho e cansado, ambientando a trama em um mundo parecido com os dos filmes de Mad Max. Nesse mundo, os mutantes estão praticamente extintos e Logan (Hugh Jackman) acredita que só restam ele e o agora nonagenário Professor Charles Xavier (Patrick Stewart), além de um amigo da dupla, Caliban (Stephen Merchant).
A presença de Jackman como Wolverine foi fundamental em todos os filmes da franquia X-Men e sua despedida do papel de sua vida foi bastante digno, tendo arrancado uma performance memorável. O olhar cansado de Logan, que aparece como um motorista de limusine, mancando e cheio de cicatrizes e feridas que custam a cicatrizar já o distanciam daquele que foi visto como um ser quase imortal no passado.
Essa fragilidade do personagem o humaniza mais. Não é fácil ver Logan apanhando de um bando de homens comuns, mas ao mesmo tempo isso faz valer a desforra e a surpresa ao ver que, finalmente, colocaram as garras do homem para funcionar da maneira como deveria ser em um filme mais adulto, decepando cabeças, pernas, braços, matando seus inimigos impiedosamente.
A liberdade de poder trabalhar o personagem dessa forma pode ser vista por alguns como arriscada, mas foi feita graças ao sucesso gigantesco de DEADPOOL, que mostrou que havia sim um público ávido por filmes mais violentos de seus super-heróis, e com uma classificação indicativa para espectadores mais maduros. Depois de DEADPOOL, o projeto LOGAN ficou mais viável e tomou forma a ponto de se tornar um filme que pode ser assistido de maneira independente dos demais filmes da franquia X-Men e Wolverine.
LOGAN é também um filme sobre um homem que não aguenta mais o peso de seu passado, e que está disposto a dar cabo da própria vida, assim que possível. O que o impede é talvez o fato de ter que cuidar de Charles Xavier, que agora vive em um lugar escondido no meio do nada e tendo convulsões capazes de perturbar a mente de todos que estiverem por perto. Outro motivo para seguir vivendo aparece na figura da pequena Laura, a X-23 (Dafne Keen), nascida a partir do seu DNA, e que também passou por um processo semelhante ao seu, para ser uma máquina de matar. As cenas que mostram a pequena Laura atacando os seus desafetos chegam a ser empolgantes.
Talvez falte ao filme um vilão de peso (não custa lembrar que Boyd Holbrook conseguiu perder o protagonismo na série NARCOS para seu parceiro por falta de carisma), mas é melhor assim do que ter um vilão megalomaníaco e chato como o de X-MEN – APOCALIPSE. Além do mais, destoaria e muito das intenções mais realistas do filme, de sua vontade de ser algo próximo de um western misturado com uma sci-fi distópica. Nesse sentido, LOGAN foi bem-sucedido e será lembrado como um bom ou até mesmo ótimo exemplo por algum tempo.
quinta-feira, março 02, 2017
O DESEJO
A obra de Walter Hugo Khouri, além de ampla e rica, funciona como um mosaico em que cada trabalho oferece mais uma peça para completarmos o todo e entendermos um pouco mais das intenções do cineasta, por mais que muitas vezes nos falte luz para o completo entendimento. Quando Khouri dirigiu O DESEJO (1975), ele já tinha uma bagagem invejável, tendo iniciado a carreira em fins dos anos 1950, e já tendo estabelecido um universo particular em que suas maiores obsessões já podiam ser sentidas e estudadas.
O DESEJO é o terceiro dos dez filmes de Khouri que trazem o personagem mulherengo Marcelo. Seu criador já o havia apresentado em diferentes versões, como o jovem entusiasmado de AS AMOROSAS (1966) e como o adolescente de O ÚLTIMO ÊXTASE (1973). Posteriormente, o personagem seria apresentado principalmente em sua idade mais madura, e também na fase infantil. O curioso de O DESEJO é que ele aparece morto, como um fantasma a assombrar sua ex-mulher, vivida por Lilian Lemmertz, possivelmente a atriz preferida de Khouri, já que trabalhou com ele em cerca de dez filmes.
Aqui Marcelo não é o personagem principal. As protagonistas são duas mulheres, a viúva Eleonora (Lemmertz) e sua amiga Ana Maria (Selma Egrei). A construção do personagem Marcelo (Fernando Amaral) na narrativa se dá a partir de memórias contadas por Eleonora a sua amiga, e assim o filme vai se desdobrando de modo fascinante, alternando presente, passado e um curioso sonho, em que Eleonora leva a amiga Ana para um estranho médico de olhos (na verdade, um médium) e Ana é levada para casa vendada e tratada pela amiga, recebendo banho e comida.
Como um filme centrado no relacionamento entre duas mulheres, a lembrança de PERSONA, de Ingmar Bergman, acontece, assim como também acontece em outros trabalhos de Khouri, como AS DEUSAS (1972) e AMOR VORAZ (1984). Mas o cineasta brasileiro trata com um pouco mais de sensualidade essa relação, ainda que, na década de 1970, essa característica se apresente mais sutilmente.
Por isso que chega a ser incrível que um filme como O DESEJO, com um andamento narrativo lento e uma profundidade tão bem construída nos diálogos existencialistas, tenha sido materializado e lançado comercialmente, por mais que tenha contado com ajuda da Embrafilme na produção. Até há um pouco de apelo erótico a partir do título e do belo cartaz com as duas protagonistas, o que contribui para algum sucesso comercial. E muita gente que entra no cinema achando que vai encontrar uma simples história com alguma voltagem erótica acaba se surpreendendo com a inteligência e a riqueza formal do filme, marca de toda a obra de Khouri. Assim, o número de fãs do cineasta cresce, à medida que o interesse por sexo se mostra tão intenso quanto o interesse pela alma humana.
As angústias dos personagens e o modo como esse sentimento é passado a partir da lente da câmera, dos olhares intensos e da excelente trilha de Rogério Duprat fazem a diferença. Há uma cena, em particular, em que Ana conta para Eleonora o quanto ela deixou de sentir alegria de viver e agora sente um grande vazio interior. As cenas das duas mulheres conversando, aliás, parecem saídas de um consultório de psicanálise e, como Khouri deixa espaços para os silêncios e olhares, vemos aquelas mulheres nuas, não no sentido físico, mas um desnudamento do ser, o que as torna mais interessantes ainda. Mais interessantes até mesmo do que Marcelo, esse ser ao mesmo tempo abjeto e fascinante.
Enfim, haveria tanto a se falar sobre O DESEJO. O ideal seria parar cada cena e fazer uma análise à parte, filosofando junto com as personagens, sentindo um pouco o que elas sentem, e admirando cada vez mais o trabalho do nosso cineasta maior.
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