quinta-feira, março 02, 2017
O DESEJO
A obra de Walter Hugo Khouri, além de ampla e rica, funciona como um mosaico em que cada trabalho oferece mais uma peça para completarmos o todo e entendermos um pouco mais das intenções do cineasta, por mais que muitas vezes nos falte luz para o completo entendimento. Quando Khouri dirigiu O DESEJO (1975), ele já tinha uma bagagem invejável, tendo iniciado a carreira em fins dos anos 1950, e já tendo estabelecido um universo particular em que suas maiores obsessões já podiam ser sentidas e estudadas.
O DESEJO é o terceiro dos dez filmes de Khouri que trazem o personagem mulherengo Marcelo. Seu criador já o havia apresentado em diferentes versões, como o jovem entusiasmado de AS AMOROSAS (1966) e como o adolescente de O ÚLTIMO ÊXTASE (1973). Posteriormente, o personagem seria apresentado principalmente em sua idade mais madura, e também na fase infantil. O curioso de O DESEJO é que ele aparece morto, como um fantasma a assombrar sua ex-mulher, vivida por Lilian Lemmertz, possivelmente a atriz preferida de Khouri, já que trabalhou com ele em cerca de dez filmes.
Aqui Marcelo não é o personagem principal. As protagonistas são duas mulheres, a viúva Eleonora (Lemmertz) e sua amiga Ana Maria (Selma Egrei). A construção do personagem Marcelo (Fernando Amaral) na narrativa se dá a partir de memórias contadas por Eleonora a sua amiga, e assim o filme vai se desdobrando de modo fascinante, alternando presente, passado e um curioso sonho, em que Eleonora leva a amiga Ana para um estranho médico de olhos (na verdade, um médium) e Ana é levada para casa vendada e tratada pela amiga, recebendo banho e comida.
Como um filme centrado no relacionamento entre duas mulheres, a lembrança de PERSONA, de Ingmar Bergman, acontece, assim como também acontece em outros trabalhos de Khouri, como AS DEUSAS (1972) e AMOR VORAZ (1984). Mas o cineasta brasileiro trata com um pouco mais de sensualidade essa relação, ainda que, na década de 1970, essa característica se apresente mais sutilmente.
Por isso que chega a ser incrível que um filme como O DESEJO, com um andamento narrativo lento e uma profundidade tão bem construída nos diálogos existencialistas, tenha sido materializado e lançado comercialmente, por mais que tenha contado com ajuda da Embrafilme na produção. Até há um pouco de apelo erótico a partir do título e do belo cartaz com as duas protagonistas, o que contribui para algum sucesso comercial. E muita gente que entra no cinema achando que vai encontrar uma simples história com alguma voltagem erótica acaba se surpreendendo com a inteligência e a riqueza formal do filme, marca de toda a obra de Khouri. Assim, o número de fãs do cineasta cresce, à medida que o interesse por sexo se mostra tão intenso quanto o interesse pela alma humana.
As angústias dos personagens e o modo como esse sentimento é passado a partir da lente da câmera, dos olhares intensos e da excelente trilha de Rogério Duprat fazem a diferença. Há uma cena, em particular, em que Ana conta para Eleonora o quanto ela deixou de sentir alegria de viver e agora sente um grande vazio interior. As cenas das duas mulheres conversando, aliás, parecem saídas de um consultório de psicanálise e, como Khouri deixa espaços para os silêncios e olhares, vemos aquelas mulheres nuas, não no sentido físico, mas um desnudamento do ser, o que as torna mais interessantes ainda. Mais interessantes até mesmo do que Marcelo, esse ser ao mesmo tempo abjeto e fascinante.
Enfim, haveria tanto a se falar sobre O DESEJO. O ideal seria parar cada cena e fazer uma análise à parte, filosofando junto com as personagens, sentindo um pouco o que elas sentem, e admirando cada vez mais o trabalho do nosso cineasta maior.
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