Há filmes que são feitos para que reconquistemos a nossa fé; há outros que nos fazem não acreditar nos nossos próprios olhos, além de também, como é o caso de OS DEMÔNIOS (1971), fazer-nos completamente desacreditados da natureza humana, em sua capacidade de tornar tudo o que deveria ser limpo e sagrado em sujo e podre. Felizmente o cinema, como uma soma de todas as artes, nos eleva e consegue fazer com que o que é feio se torne sublime através do admirável e inconcebível que passeia pelos nossos olhos.
Ken Russell sempre foi um cineasta interessado em coisas profanas mas também em saber lidar com o aspecto humano e digno de pessoas que são vistas pela sociedade como dignas do desprezo. O mesmo admirador do universo da prostituição de filmes como CRIMES DE PAIXÃO (1984) e A PROSTITUTA (1991) tem em OS DEMÔNIOS (1971) sua obra mais polêmica. A intenção era mesmo chocar, já que o julgamento do Padre Grandier (Oliver Reed, excepcional) e a história impressionante da histeria (suposto caso de possessão demoníaca) no convento da Madre Superiora Joana dos Anjos são de cair o queixo.
A história desta Madre Superiora já havia sido contada de maneira mais livre e diferente em MADRE JOANA DOS ANJOS, de Jerzy Kawalerowicz, uma década antes. Mas o filme de Russell vai além, ao transformar uma obra de não-ficção escrita por Aldous Huxley, que por sua vez rendeu uma peça de teatro, em uma espécie de inferno na Terra em que podemos assistir de camarote. Não sem termos respingos de um pouco de fogo, claro. Mas isso é o preço pelo privilégio.
Desde os letreiros que antecipam o filme, OS DEMÔNIOS quer nos fazer acreditar que o registro que veremos a seguir aconteceu de verdade na cidade de Loudon, na França, em 1643. Na época, a cidade estava em paz depois de tantas batalhas entre católicos e protestantes que repercutiram por toda a França. A cidade era então a única a ter autonomia para lidar com seus próprios problemas. E o jovem Padre Grandier é uma espécie de Don Juan local. Se é que o termo é apropriado para um padre.
De todo modo, Grandier é desejado pelas mulheres e não deixa passar as oportunidades de transar com quem quiser em local sagrado. Numa das primeiras cenas, somos apresentados a seu lado mais canalha ao vermos o sujeito responder que não é culpa dele que uma de suas amantes engravidou. Enquanto isso, outra mulher também está apaixonada pelo padre (Gemma Jones). Esta, porém, o padre deseja de todo o coração. E isso é algo que torna a figura de Grandier digna de afeição pelo espectador.
A coisa fica feia para ele quando a Madre Joana dos Anjos (Vanessa Redgrave, excelente!), uma mulher atormentada com sua corcunda, passa a querer se vingar do padre, tornando-o alvo de um grupo de caçadores de bruxas que o levam para um julgamento parecido com o que fizeram com Joana d'Arc. Só que muito mais cruel e doloroso de ver. Impossível não ficar com o sangue intoxicado com as cenas de violência e tortura.
Mas o filme não é só isso. Muito de sua polêmica vem das cenas blasfemas envolvendo os atos de delírio ou de histeria das freiras em torno de símbolos sagrados da Igreja. Há o sonho da Madre Joana com o Padre Grandier descendo de uma cruz e tendo suas feridas lambidas por ela; mas o que mais incomodou os censores na época, a ponto de boa parte do filme ter sido quase perdida ao longo dos anos, foram as cenas dentro do convento, com freiras se masturbando com um crucifixo gigante, por exemplo. A cena de exorcismo de Madre Joana é outra coisa completamente absurda.
Aliás, é tanta coisa inacreditável que se vê em OS DEMÔNIOS que é quase um milagre ter finalmente surgido uma versão supostamente uncut, que traz de volta algumas cenas proibidas, e que, por ter sido remasterizada, tem uma imagem que valoriza a linda fotografia em cores e em scope e a direção de arte espetacular, a cargo de Derek Jarman.
E os demônios? Os demônios são os próprios homens. Ken Russell fez um filma totalmente laico e a culpa de todo o mal está no sistema político - a Igreja pode muito bem ser uma alegoria de qualquer sistema de governo que é capaz de fazer coisas inomináveis e extremamente terríveis. É um filme, inclusive, que deveria ser visto pelas novas gerações. Afinal, vivemos em um momento muito perigoso no que se refere a uma nova ascensão da direita e dos valores "religiosos". Tenhamos muito cuidado com os demônios, portanto.
sábado, julho 29, 2017
sexta-feira, julho 28, 2017
TODAS AS MULHERES DO MUNDO
Que bom seria se a gente pudesse voltar ao passado e consertar algo que julgamos ter sido um erro, e assim poder moldar a realidade conforme a nossa vontade. Pelo menos uma única vez. Como se fosse um gesto de bondade dos deuses. Pois bem. TODAS AS MULHERES DO MUNDO (1966) é uma tentativa de fazer na arte o que não é possível na vida. E também de seu diretor, Domingos de Oliveira, conseguir reconquistar a ex-namorada Leila Diniz de volta, ao convidá-la para ser uma das protagonistas de seu longa-metragem de estreia na direção.
E esse amor por Leila Diniz, que aqui faz uma moça adorável e de gestos contidos de nome Maria Alice, se vê nos vários close-ups de seu rosto, a câmera a namorando o tempo inteiro. Há até uma declaração de amor linda na cena em que ela está nua - embora a cena não explore graficamente seu corpo - quando Paulo (Paulo José), o alter-ego de Domingos, diz "teu sexo: um rio onde navega meu barco ao vento de sete paixões".
Há em TODAS AS MULHERES DO MUNDO o uso de uma liberdade narrativa leve herdada do pessoal da nouvelle vague francesa, principalmente dos primeiros trabalhos de Godard e Truffaut, e isso é muito agradável de acompanhar até hoje. Não envelheceu. Ou ao menos envelheceu de maneira muito bonita. O próprio Domingos sentiu necessidade de recontar esta história, ou a história mais próxima da realidade, no belíssimo BR 716 (2016), em que a personagem de Leila agora é vivida por Sophie Charlotte e Caio Blat aparece no papel do diretor e roteirista.
Essa é uma das belezas da arte quando ela se alimenta da vida, em especial quando determinados momentos da vida foram tão importantes para o artista. Neste caso, a invasão da vida real ao território da ficção se torna não apenas necessária como muito bem-vinda. E quando ficamos sabendo um pouco dos bastidores, da situação em si, parece até que o filme ganha ainda mais força.
Na trama, Paulo é um sujeito que encontra o amigo Edu (Flávio Migliaccio) e lhe conta o que andou fazendo durante todo o tempo em que não se viam. E isso se resumiu basicamente ao aparecimento de Maria Alice em seu apartamento, em uma de suas festas. Depois disso, ele teve a cara de pau de tomar a moça de seu namorado, conquista-a com seu bom humor e sua persistência, e, mesmo depois de um vacilo dele, enquanto a mulher faz uma viagem rápida, ele consegue reconquistá-la; ela o perdoa. As cenas de escapada dele são bem divertidas, assim como a curta aventura dela sozinha, em São Paulo. São cenas que são mostradas em ótima montagem que evidenciam pontos de vista diferentes com relação aos relacionamentos, já que para Paulo as mulheres sempre foram para ele como uma loja de doces.
Há os momentos em que os personagens ficam tristes, mas TODAS AS MULHERES DO MUNDO procura nunca querer deixar a tristeza contagiar a leveza e a alegria do filme, por mais que o final feliz pareça até um tanto romantizado demais para se acreditar. Mas o final feliz com a mulher amada é justamente a vontade de modificar o destino, nem que seja só na arte. Nem que continue parecendo só um sonho.
Curiosamente, antes de ver este filme eu era um desses sujeitos que dizia que Domingos de Oliveira era o Woody Allen brasileiro. Mas não há sentido em dizer isso, já que o Allen que conta é o de NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA, de 1977, ou seja, mais de dez anos depois da exibição no Festival de Brasília do filme de Domingos. Talvez seja o nosso complexo de inferioridade em relação aos americanos, ou talvez Allen tenha demarcado território de maneira mais ferrenha enquanto o nosso cronista dos relacionamentos entre homens e mulheres teve maior dificuldade de ser conhecido do grande público. Mas ainda há tempo de conhecer.
E esse amor por Leila Diniz, que aqui faz uma moça adorável e de gestos contidos de nome Maria Alice, se vê nos vários close-ups de seu rosto, a câmera a namorando o tempo inteiro. Há até uma declaração de amor linda na cena em que ela está nua - embora a cena não explore graficamente seu corpo - quando Paulo (Paulo José), o alter-ego de Domingos, diz "teu sexo: um rio onde navega meu barco ao vento de sete paixões".
Há em TODAS AS MULHERES DO MUNDO o uso de uma liberdade narrativa leve herdada do pessoal da nouvelle vague francesa, principalmente dos primeiros trabalhos de Godard e Truffaut, e isso é muito agradável de acompanhar até hoje. Não envelheceu. Ou ao menos envelheceu de maneira muito bonita. O próprio Domingos sentiu necessidade de recontar esta história, ou a história mais próxima da realidade, no belíssimo BR 716 (2016), em que a personagem de Leila agora é vivida por Sophie Charlotte e Caio Blat aparece no papel do diretor e roteirista.
Essa é uma das belezas da arte quando ela se alimenta da vida, em especial quando determinados momentos da vida foram tão importantes para o artista. Neste caso, a invasão da vida real ao território da ficção se torna não apenas necessária como muito bem-vinda. E quando ficamos sabendo um pouco dos bastidores, da situação em si, parece até que o filme ganha ainda mais força.
Na trama, Paulo é um sujeito que encontra o amigo Edu (Flávio Migliaccio) e lhe conta o que andou fazendo durante todo o tempo em que não se viam. E isso se resumiu basicamente ao aparecimento de Maria Alice em seu apartamento, em uma de suas festas. Depois disso, ele teve a cara de pau de tomar a moça de seu namorado, conquista-a com seu bom humor e sua persistência, e, mesmo depois de um vacilo dele, enquanto a mulher faz uma viagem rápida, ele consegue reconquistá-la; ela o perdoa. As cenas de escapada dele são bem divertidas, assim como a curta aventura dela sozinha, em São Paulo. São cenas que são mostradas em ótima montagem que evidenciam pontos de vista diferentes com relação aos relacionamentos, já que para Paulo as mulheres sempre foram para ele como uma loja de doces.
Há os momentos em que os personagens ficam tristes, mas TODAS AS MULHERES DO MUNDO procura nunca querer deixar a tristeza contagiar a leveza e a alegria do filme, por mais que o final feliz pareça até um tanto romantizado demais para se acreditar. Mas o final feliz com a mulher amada é justamente a vontade de modificar o destino, nem que seja só na arte. Nem que continue parecendo só um sonho.
Curiosamente, antes de ver este filme eu era um desses sujeitos que dizia que Domingos de Oliveira era o Woody Allen brasileiro. Mas não há sentido em dizer isso, já que o Allen que conta é o de NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA, de 1977, ou seja, mais de dez anos depois da exibição no Festival de Brasília do filme de Domingos. Talvez seja o nosso complexo de inferioridade em relação aos americanos, ou talvez Allen tenha demarcado território de maneira mais ferrenha enquanto o nosso cronista dos relacionamentos entre homens e mulheres teve maior dificuldade de ser conhecido do grande público. Mas ainda há tempo de conhecer.
quinta-feira, julho 27, 2017
DUNKIRK
Não deixa de ser um baita banho de água fria ver que o tão insensado DUNKIRK (2017), de Christopher Nolan, é mais uma de suas picaretagens. E a comparação absurda que foi feita recentemente no The Guardian de Nolan com Stanley Kubrick? Em GLÓRIA FEITA DE SANGUE, Kubrick leva o espectador para o meio de um fogo cruzado dentro de uma grande guerra, e sem precisar do recurso IMAX pra isso. Infelizmente é difícil imaginar DUNKIRK brilhando fora de uma sala com as dimensões de uma tela gigante.
Claro que as imagens são belíssimas, de encher os olhos, e que também é digno de louvor a intenção de fazer o seu filme quase que inteiramente em película 70 mm, como também o fez Quentin Tarantino quando rodou OS OITO ODIADOS. Mas se as qualidades de um filme se evidenciam e crescem quando vistas em IMAX, seus problemas também ficam ainda mais visíveis. No caso, o que vemos é um trabalho raso, sem emoção genuína, sem impacto, que privilegia as imagens e possui alguns diálogos e falas de gosto duvidoso, como na cena em que um garoto está prestes a morrer e diz que nunca foi bom na escola e morrer na guerra seria uma boa, seria uma honra para a família. Talvez ele não tenha dito exatamente isso, mas é essa a mensagem.
O que há de interessante para quem acompanha a obra de Nolan, não necessariamente gostando de tudo que ele faz, é perceber novamente a obsessão por um jogo temporal. Há três ações temporais que acontecem durante a narrativa: uma com um intervalo de uma semana, no Molhe, com um grupo de soldados britânicos esperando serem resgatados dos ataques; outra ação com um intervalo de um dia em um barco capitaneado pelo civil vivido por Mark Rylance, que tem a intenção de salvar o máximo possível de soldados britânicos naquele barco de passeio; e a terceira ação acontecendo em um intervalo de uma hora, quando vemos três pilotos britânicos tentando se defender e também atacando aviões alemães próximo ao local onde acontece a história.
Esse jogo temporal já foi explorado por Nolan em filmes tão distintos quanto AMNÉSIA (2000), A ORIGEM (2010) e INTERESTELAR (2014). Este terceiro talvez seja o exemplo mais bem acabado de todos os seus trabalhos como um todo. Esses e os demais são exemplos de filmes que trazem uma forte ambição artística, sendo que em boa parte das vezes nem sempre suas intenções são bem-sucedidas, embora possa sempre se encontrar também um conteúdo político curioso, inclusive nos filmes da trilogia Batman.
No caso de DUNKIRK, há quem veja no filme uma visão pró-Brexit, no sentido de que o que mais interessa para aqueles homens é salvar a pele dos britânicos. Que se danem os franceses. Há sim uma generosidade e um interesse em ajudar o próximo e nada mais explícito do que o barco comandado pelo personagem de Rylance, mas o próximo que interessa são os soldados ingleses que estão acuados e sendo chacinados pelos nazistas naquele lugar bonito, na fronteira da Bélgica com a França.
E falando em lugar bonito, as imagens do céu azul de um belo dia de sol também ajudam a tornar tudo muito agradável de ver. Pelo menos até o momento em que o azul e o branco do céu cansam, bem como as repetições das ações e das situações, seja no céu, no ar ou na terra. Pode-se sentir também mais um fascínio pela guerra do que um sentimento de horror, coisa que poderia se perceber em obras como O RESGATE DO SOLDADO RYAN e o já mencionado GLÓRIA FEITA DE SANGUE, para citar esses que talvez sejam os filmes que mais levam o espectador para dentro da ação.
DUNKIRK não consegue isso. Talvez porque os personagens são pouco interessantes, rasos, ou o tom de heroísmo com aquela música do Hans Zimmer meio genérica seja um convite ao sono. Nada contra esse tipo de cinema que exalta o heroísmo e até mesmo o nacionalismo, ainda mais em se tratando de uma guerra contra os nazistas, mas importar-se com aqueles rapazes sem nome não faria mal algum.
Claro que as imagens são belíssimas, de encher os olhos, e que também é digno de louvor a intenção de fazer o seu filme quase que inteiramente em película 70 mm, como também o fez Quentin Tarantino quando rodou OS OITO ODIADOS. Mas se as qualidades de um filme se evidenciam e crescem quando vistas em IMAX, seus problemas também ficam ainda mais visíveis. No caso, o que vemos é um trabalho raso, sem emoção genuína, sem impacto, que privilegia as imagens e possui alguns diálogos e falas de gosto duvidoso, como na cena em que um garoto está prestes a morrer e diz que nunca foi bom na escola e morrer na guerra seria uma boa, seria uma honra para a família. Talvez ele não tenha dito exatamente isso, mas é essa a mensagem.
O que há de interessante para quem acompanha a obra de Nolan, não necessariamente gostando de tudo que ele faz, é perceber novamente a obsessão por um jogo temporal. Há três ações temporais que acontecem durante a narrativa: uma com um intervalo de uma semana, no Molhe, com um grupo de soldados britânicos esperando serem resgatados dos ataques; outra ação com um intervalo de um dia em um barco capitaneado pelo civil vivido por Mark Rylance, que tem a intenção de salvar o máximo possível de soldados britânicos naquele barco de passeio; e a terceira ação acontecendo em um intervalo de uma hora, quando vemos três pilotos britânicos tentando se defender e também atacando aviões alemães próximo ao local onde acontece a história.
Esse jogo temporal já foi explorado por Nolan em filmes tão distintos quanto AMNÉSIA (2000), A ORIGEM (2010) e INTERESTELAR (2014). Este terceiro talvez seja o exemplo mais bem acabado de todos os seus trabalhos como um todo. Esses e os demais são exemplos de filmes que trazem uma forte ambição artística, sendo que em boa parte das vezes nem sempre suas intenções são bem-sucedidas, embora possa sempre se encontrar também um conteúdo político curioso, inclusive nos filmes da trilogia Batman.
No caso de DUNKIRK, há quem veja no filme uma visão pró-Brexit, no sentido de que o que mais interessa para aqueles homens é salvar a pele dos britânicos. Que se danem os franceses. Há sim uma generosidade e um interesse em ajudar o próximo e nada mais explícito do que o barco comandado pelo personagem de Rylance, mas o próximo que interessa são os soldados ingleses que estão acuados e sendo chacinados pelos nazistas naquele lugar bonito, na fronteira da Bélgica com a França.
E falando em lugar bonito, as imagens do céu azul de um belo dia de sol também ajudam a tornar tudo muito agradável de ver. Pelo menos até o momento em que o azul e o branco do céu cansam, bem como as repetições das ações e das situações, seja no céu, no ar ou na terra. Pode-se sentir também mais um fascínio pela guerra do que um sentimento de horror, coisa que poderia se perceber em obras como O RESGATE DO SOLDADO RYAN e o já mencionado GLÓRIA FEITA DE SANGUE, para citar esses que talvez sejam os filmes que mais levam o espectador para dentro da ação.
DUNKIRK não consegue isso. Talvez porque os personagens são pouco interessantes, rasos, ou o tom de heroísmo com aquela música do Hans Zimmer meio genérica seja um convite ao sono. Nada contra esse tipo de cinema que exalta o heroísmo e até mesmo o nacionalismo, ainda mais em se tratando de uma guerra contra os nazistas, mas importar-se com aqueles rapazes sem nome não faria mal algum.
terça-feira, julho 25, 2017
EU MATEI LÚCIO FLÁVIO
Quem achou LÚCIO FLÁVIO - O PASSAGEIRO DA AGONIA, de Hector Babenco, um filme sangrento, precisa pensar duas vezes ao ver esta espécie de espelho quebrado chamado EU MATEI LÚCIO FLÁVIO (1979), dirigido por Antônio Calmon e estrelado e produzido por um dos sujeitos mais importantes do cinema brasileiro, Jece Valadão, aqui brincando com sua persona de homem viril, conquistador, malandro e pronto pra briga.
Mariel Mariscott de Matos, o lendário personagem protagonizado por Valadão é um homem que acredita estar do lado da lei. Desde o início, ele aparece como salva-vidas em uma praia. O filme faz questão de mostrar não só seus feitos heroicos, como também de pintá-lo como alguém merecedor de todas as glórias, alguém que se olha no espelho e se acha o tal. Se não o filme em si, mas a narrativa.
Há uma cena em que vemos Mariel fazendo sexo com a mãe de um menino que ele salva (Maria Lúcia Dahl), ao som de "Divina comédia humana", de Belchior. A cena, por mais que pareça deslocada ou em tom de sonho, não é nada perto das tantas situações inacreditáveis que vemos ao longo da narrativa por vezes truncada de EU MATEI LÚCIO FLÁVIO.
Não demora para que Mariel fique famoso e seja convidado para integrar a polícia. E naquele momento de ditadura militar, o lema "bandido bom é bandido morto" era mesmo levado a sério. Tanto que não há problema nenhum quando o protagonista elimina qualquer criminoso, como na antológica cena da farmácia, que conta com uma cena em que uma mulher, uma jovem Maria Zilda, é estuprada com um revólver.
Esse cinema de direita estava na moda nos anos 1970. Clint Eastwood fazia sucesso como o detetive Dirty Harry em PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL e suas continuações e Charles Bronson personificava a figura do vigilante como ninguém em DESEJO DE MATAR e suas demais continuações, consideradas por alguns como espetáculo trash.
O que vemos em EU MATEI LÚCIO FLÁVIO não é muito diferente do que fizeram esses astros e/ou diretores americanos. Apenas há uma consciência mais explícita do tipo de dramaturgia menos realista, do senso de humor todo especial, da violência que explode por todos os lados e das condições bem menos privilegiadas de fazer cinema no Brasil, e de viver no Brasil também. Percebe-se a influência dos filmes e das séries americanas, mas àquela altura o cinema brasileiro podia fazer muito bem o seu próprio exploitation de crime.
Incomoda um bocado as cenas de Valadão com várias mulheres, de vez em quando. Elas parecem não ter outra função a não ser enfatizar a masculinidade de Mariel. Na trama, fica confuso saber quem é quem. A personagem feminina que interessa é a prostituta e viciada em drogas vivida por Monique Lafond. Aliás, algumas das melhores cenas do filme envolvem o encontro dos dois. Talvez por isso Calmon tenha optado por deixar as demais personagens femininas sempre à margem, quase insignificantes.
E até agora nem falamos de Lúcio Flávio, embora sua participação seja importante para dar uma conclusão à história. Diferente de MATEI JESSE JAMES, de Samuel Fuller, se é que é possível comparar os dois, o filme de Calmon não apresenta uma morte covarde. O que temos aqui é um jogo aberto, uma guerra entre dois adversários que estão, inclusive, na mesma prisão. E o impressionante é o quanto, a essa altura, o filme já tenha incomodado bastante no quesito violência. O que EU MATEI LÚCIO FLÁVIO faz com "Lady Laura", de Roberto Carlos, no modo como ele a contextualiza na história, é quase um pecado. Se bem que Júlio Bressane já havia feito algo até mais perturbador ao som de uma canção do Rei em MATOU A FAMÍLIA E FOI AO CINEMA dez anos antes. Viva a liberdade!
Mariel Mariscott de Matos, o lendário personagem protagonizado por Valadão é um homem que acredita estar do lado da lei. Desde o início, ele aparece como salva-vidas em uma praia. O filme faz questão de mostrar não só seus feitos heroicos, como também de pintá-lo como alguém merecedor de todas as glórias, alguém que se olha no espelho e se acha o tal. Se não o filme em si, mas a narrativa.
Há uma cena em que vemos Mariel fazendo sexo com a mãe de um menino que ele salva (Maria Lúcia Dahl), ao som de "Divina comédia humana", de Belchior. A cena, por mais que pareça deslocada ou em tom de sonho, não é nada perto das tantas situações inacreditáveis que vemos ao longo da narrativa por vezes truncada de EU MATEI LÚCIO FLÁVIO.
Não demora para que Mariel fique famoso e seja convidado para integrar a polícia. E naquele momento de ditadura militar, o lema "bandido bom é bandido morto" era mesmo levado a sério. Tanto que não há problema nenhum quando o protagonista elimina qualquer criminoso, como na antológica cena da farmácia, que conta com uma cena em que uma mulher, uma jovem Maria Zilda, é estuprada com um revólver.
Esse cinema de direita estava na moda nos anos 1970. Clint Eastwood fazia sucesso como o detetive Dirty Harry em PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL e suas continuações e Charles Bronson personificava a figura do vigilante como ninguém em DESEJO DE MATAR e suas demais continuações, consideradas por alguns como espetáculo trash.
O que vemos em EU MATEI LÚCIO FLÁVIO não é muito diferente do que fizeram esses astros e/ou diretores americanos. Apenas há uma consciência mais explícita do tipo de dramaturgia menos realista, do senso de humor todo especial, da violência que explode por todos os lados e das condições bem menos privilegiadas de fazer cinema no Brasil, e de viver no Brasil também. Percebe-se a influência dos filmes e das séries americanas, mas àquela altura o cinema brasileiro podia fazer muito bem o seu próprio exploitation de crime.
Incomoda um bocado as cenas de Valadão com várias mulheres, de vez em quando. Elas parecem não ter outra função a não ser enfatizar a masculinidade de Mariel. Na trama, fica confuso saber quem é quem. A personagem feminina que interessa é a prostituta e viciada em drogas vivida por Monique Lafond. Aliás, algumas das melhores cenas do filme envolvem o encontro dos dois. Talvez por isso Calmon tenha optado por deixar as demais personagens femininas sempre à margem, quase insignificantes.
E até agora nem falamos de Lúcio Flávio, embora sua participação seja importante para dar uma conclusão à história. Diferente de MATEI JESSE JAMES, de Samuel Fuller, se é que é possível comparar os dois, o filme de Calmon não apresenta uma morte covarde. O que temos aqui é um jogo aberto, uma guerra entre dois adversários que estão, inclusive, na mesma prisão. E o impressionante é o quanto, a essa altura, o filme já tenha incomodado bastante no quesito violência. O que EU MATEI LÚCIO FLÁVIO faz com "Lady Laura", de Roberto Carlos, no modo como ele a contextualiza na história, é quase um pecado. Se bem que Júlio Bressane já havia feito algo até mais perturbador ao som de uma canção do Rei em MATOU A FAMÍLIA E FOI AO CINEMA dez anos antes. Viva a liberdade!
segunda-feira, julho 24, 2017
O FILME DA MINHA VIDA
O terceiro trabalho na direção de Selton Mello talvez tenha como principal calcanhar de Aquiles a sua intenção de ser grandioso em lirismo, mesmo abordando a vida de uma pessoa comum. Assim como MULHER DO PAI, de Cristiane Oliveira, O FILME DA MINHA VIDA (2017) é sobre a dificuldade de crescer e lidar com a ausência de algo ou alguém e ambos os filmes se passam em pequenas cidades do interior do Rio Grande do Sul. Mas, diferente de Oliveira, que fez um filme deliberadamente pequeno, Selton quis algo mais ambicioso. E a produção é realmente admirável, com uma fotografia linda de Walter Carvalho, uma atenção especial com o desenho de som e algumas canções matadoras.
O FILME DA MINHA VIDA também tem o mérito de transbordar vontade de viver por todos os poros. Mesmo que viver seja algo muito doloroso, diante das ausências sentidas. Há a principal delas, que é a ausência do pai de Tony (Johnny Massaro, ótima revelação). O pai do rapaz, , vivido por Vincent Cassel, aparece principalmente nas memórias da infância do garoto, antes de desaparecer sem maiores explicações.
Mas há mais ausências também. A ausência dele para a sofrida mãe de Tony (Ondina Clais Castillo), a ausência de alguém na vida do melhor amigo de Tony, um sujeito que cria porcos chamado Paco (Selton Mello), a ausência de um amor na vida de Tony, que é sentida mais no desejo que ele nutre por duas lindas irmãs, Luna (Bruna Linzmeyer) e Petra (Bia Arantes). Há uma sequência em particular que mostra a confusão no desejo do rapaz, quando ele as imagina fazendo uma espécie de número musical.
Tony não sabe lidar ainda com esse desejo e talvez por isso, por ele não ser exatamente obcecado (e nem apaixonado) por Luna, essa questão mais romântica acaba um pouco diluída, ainda que o diretor saiba colocar canções e imagens plenas de lirismo para emoldurar esse sentimento de excitação (no sentido mais amplo da palavra) por parte do jovem protagonista.
O personagem de Selton Mello, Paco, é o que oferece mais riso para o espectador. Como não rir quando o garçom oferece vinho branco e ele diz que vinho branco só serve para lavar os pés? Ao mesmo tempo, há algo de amargo no jeito como Paco vê a si mesmo, como quando ele pergunta a uma prostituta se ele se parece com um porco. No fim, a gente entende um pouco mais o porquê disso, mas mesmo naquele momento, é compreensível esse tipo de pergunta, levando em consideração que ele está sozinho e sente desejos pela mãe de Tony.
Há, perto do final, um momento em que o filme ganha uma barriga, perde um pouco da magia de recordação juvenil que até então prevalecia, mas é possível que isso tenha sido proposital, já que é o momento em que a realidade entra com força na porta de Tony, quando ele descobre alguns segredos importantes sobre ele e as pessoas que lhe são caras.
Adaptado do romance Um Padre de Película, do escritor chileno Antonio Skármeta (o mesmo de O Carteiro e o Poeta), O FILME DA MINHA VIDA tem um quê de CINEMA PARADISO, até pela fotografia em tom onírico, e a história, embora se passe em 1963, parece se passar nos anos 1950, uma década que ainda tem algo de inocência em torno de sua aura. Essa confusão temporal ajuda a nos transportar para esse universo todo próprio do filme.
Há inúmeros detalhes que fazem com que este terceiro longa-metragem de Selton Mello seja tão ou mais importante que seus trabalhos anteriores - FELIZ NATAL (2008) e O PALHAÇO (2011). Além do que já foi citado, como não ficar impressionado com as marcas de expressão de Rolando Boldrin, vivendo aqui um maquinista? Ou as várias canções que emolduram as cenas, como "Coração de papel", por Sérgio Reis, "I put a spell on you", por Nina Simone, e principalmente "Hier encore", de Charles Aznavour? Essas canções mexem com as emoções do espectador de forma exponencial dentro da sala escura. Nem sempre Selton Mello consegue domar tantas emoções juntas, mas é melhor assim.
O FILME DA MINHA VIDA também tem o mérito de transbordar vontade de viver por todos os poros. Mesmo que viver seja algo muito doloroso, diante das ausências sentidas. Há a principal delas, que é a ausência do pai de Tony (Johnny Massaro, ótima revelação). O pai do rapaz, , vivido por Vincent Cassel, aparece principalmente nas memórias da infância do garoto, antes de desaparecer sem maiores explicações.
Mas há mais ausências também. A ausência dele para a sofrida mãe de Tony (Ondina Clais Castillo), a ausência de alguém na vida do melhor amigo de Tony, um sujeito que cria porcos chamado Paco (Selton Mello), a ausência de um amor na vida de Tony, que é sentida mais no desejo que ele nutre por duas lindas irmãs, Luna (Bruna Linzmeyer) e Petra (Bia Arantes). Há uma sequência em particular que mostra a confusão no desejo do rapaz, quando ele as imagina fazendo uma espécie de número musical.
Tony não sabe lidar ainda com esse desejo e talvez por isso, por ele não ser exatamente obcecado (e nem apaixonado) por Luna, essa questão mais romântica acaba um pouco diluída, ainda que o diretor saiba colocar canções e imagens plenas de lirismo para emoldurar esse sentimento de excitação (no sentido mais amplo da palavra) por parte do jovem protagonista.
O personagem de Selton Mello, Paco, é o que oferece mais riso para o espectador. Como não rir quando o garçom oferece vinho branco e ele diz que vinho branco só serve para lavar os pés? Ao mesmo tempo, há algo de amargo no jeito como Paco vê a si mesmo, como quando ele pergunta a uma prostituta se ele se parece com um porco. No fim, a gente entende um pouco mais o porquê disso, mas mesmo naquele momento, é compreensível esse tipo de pergunta, levando em consideração que ele está sozinho e sente desejos pela mãe de Tony.
Há, perto do final, um momento em que o filme ganha uma barriga, perde um pouco da magia de recordação juvenil que até então prevalecia, mas é possível que isso tenha sido proposital, já que é o momento em que a realidade entra com força na porta de Tony, quando ele descobre alguns segredos importantes sobre ele e as pessoas que lhe são caras.
Adaptado do romance Um Padre de Película, do escritor chileno Antonio Skármeta (o mesmo de O Carteiro e o Poeta), O FILME DA MINHA VIDA tem um quê de CINEMA PARADISO, até pela fotografia em tom onírico, e a história, embora se passe em 1963, parece se passar nos anos 1950, uma década que ainda tem algo de inocência em torno de sua aura. Essa confusão temporal ajuda a nos transportar para esse universo todo próprio do filme.
Há inúmeros detalhes que fazem com que este terceiro longa-metragem de Selton Mello seja tão ou mais importante que seus trabalhos anteriores - FELIZ NATAL (2008) e O PALHAÇO (2011). Além do que já foi citado, como não ficar impressionado com as marcas de expressão de Rolando Boldrin, vivendo aqui um maquinista? Ou as várias canções que emolduram as cenas, como "Coração de papel", por Sérgio Reis, "I put a spell on you", por Nina Simone, e principalmente "Hier encore", de Charles Aznavour? Essas canções mexem com as emoções do espectador de forma exponencial dentro da sala escura. Nem sempre Selton Mello consegue domar tantas emoções juntas, mas é melhor assim.
domingo, julho 23, 2017
EM RITMO DE FUGA (Baby Driver)
Talvez nem os fãs mais entusiastas de Edgar Wright prevessem a delícia que é EM RITMO DE FUGA (2017), este thriller de ação com muita música e muito amor, que aquece o coração e deixa o espectador com a adrenalina a mil, com suas sequências de perseguição e outras situações de perigo. A força de Wright na direção já se mostra no prólogo, que nos apresenta a um dos trabalhos do grupo de que faz parte o motorista de fuga Baby, vivido por Ansel Elgort.
Na sequência inicial, ao som de "Belbottoms", da Jon Spencer Blues Explosion, sem nenhum diálogo, o coração já bate mais forte, ao ritmo da canção devidamente escolhida por aquele sujeito com cara de bom rapaz. É cinema com C maiúsculo, com a habilidade que principalmente o gênero "ação" da melhor categoria é capaz de criar. Claro que há o débito com a música, que está sempre ali atuando como adjuvante na criação das cenas empolgantes, mas que mal há nisso, não é verdade?
Até porque o uso da música no filme é muito inteligente e nada óbvio. Mesmo quando ouvimos uma canção mais famosa, como "Easy", dos Commodores, ela é tão bem encaixada, dentro do estado de espírito do personagem, além de a canção por si só ser de uma beleza que enche os nossos corações, que a tal dívida que o filme tem com a música se torna peça essencial e não uma muleta. Aliás, mais perto do fim de EM RITMO DE FUGA, vamos ver o quanto esse prazer pela canção é também compartilhado por nós, espectadores.
E que beleza que é o diálogo (minimalista) de Baby com a garçonete encantadora vivida por Lily James, de nome Debora, hein? Eles conversam sobre ter uma canção com seus nomes. Há pelo menos duas com o nome dela, enquanto que, para ele, há infinitas possibilidades. E eis que estamos também entregues ao encanto da paixão que surge entre aquele belo e jovem casal nos momentos em que eles estão juntos. Nem em CINDERELA Lily James esteve tão encantadora.
E temos também o humor característico da obra de Edgar Wright. Ele comparece em diversos momentos, seja nos diálogos espertos dos diversos personagens, inclusive daqueles caras barra-pesada que ingressam na gangue dos assaltos (caso dos personagens de Jamie Foxx, de Jon Hamm e do chefão vivido por Kevin Spacey).
Porém, do mesmo modo com que Wright sabe nos deixar a maior parte do tempo com um sorriso de orelha a orelha e dar umas boas risadas de vez em quando, ele também sabe lidar com os momentos mais sombrios. Afinal, estamos diante de um filme de assalto com tensão, como FOGO CONTRA FOGO, de Michael Mann, ou MORTALMENTE PERIGOSA, de Joseph H. Lewis, e não um filme de assalto leve, tipo ONZE HOMENS E UM SEGREDO, de Steven Soderbergh. Por isso sabemos que o perigo está sempre por perto.
O fato de Baby ser um refém das chantagens do chefão Doc (Spacey) é um elemento que faz com que nos coloquemos em seu lugar. Ele está prestes a deixar aquele mundo do crime. E o seu sonho ganha forma na conversa com Debra, sobre querer sair daquele lugar e ganhar a estrada, ouvindo música. E para que melhor sonho do que encontrar a felicidade pegando a estrada com a pessoa amada? Mas sabemos que esse sonho não vai ser tão fácil de ser concretizado.
Tudo isso, incluindo as dificuldades dos nossos heróis e as várias cenas de perseguição, sendo uma delas a pé, fazem parte do prazer que sentimos em ver EM RITMO DE FUGA, um filme que traz uma injeção de ânimo tão grande em nosso espírito que, ao sair da sessão, dá vontade de dançar, ouvir música, correr (com o carro ou com as pernas mesmo), enfim, viver. E viver inclusive para poder ter o privilégio de rever EM RITMO DE FUGA. De preferência no cinema, novamente.
Na sequência inicial, ao som de "Belbottoms", da Jon Spencer Blues Explosion, sem nenhum diálogo, o coração já bate mais forte, ao ritmo da canção devidamente escolhida por aquele sujeito com cara de bom rapaz. É cinema com C maiúsculo, com a habilidade que principalmente o gênero "ação" da melhor categoria é capaz de criar. Claro que há o débito com a música, que está sempre ali atuando como adjuvante na criação das cenas empolgantes, mas que mal há nisso, não é verdade?
Até porque o uso da música no filme é muito inteligente e nada óbvio. Mesmo quando ouvimos uma canção mais famosa, como "Easy", dos Commodores, ela é tão bem encaixada, dentro do estado de espírito do personagem, além de a canção por si só ser de uma beleza que enche os nossos corações, que a tal dívida que o filme tem com a música se torna peça essencial e não uma muleta. Aliás, mais perto do fim de EM RITMO DE FUGA, vamos ver o quanto esse prazer pela canção é também compartilhado por nós, espectadores.
E que beleza que é o diálogo (minimalista) de Baby com a garçonete encantadora vivida por Lily James, de nome Debora, hein? Eles conversam sobre ter uma canção com seus nomes. Há pelo menos duas com o nome dela, enquanto que, para ele, há infinitas possibilidades. E eis que estamos também entregues ao encanto da paixão que surge entre aquele belo e jovem casal nos momentos em que eles estão juntos. Nem em CINDERELA Lily James esteve tão encantadora.
E temos também o humor característico da obra de Edgar Wright. Ele comparece em diversos momentos, seja nos diálogos espertos dos diversos personagens, inclusive daqueles caras barra-pesada que ingressam na gangue dos assaltos (caso dos personagens de Jamie Foxx, de Jon Hamm e do chefão vivido por Kevin Spacey).
Porém, do mesmo modo com que Wright sabe nos deixar a maior parte do tempo com um sorriso de orelha a orelha e dar umas boas risadas de vez em quando, ele também sabe lidar com os momentos mais sombrios. Afinal, estamos diante de um filme de assalto com tensão, como FOGO CONTRA FOGO, de Michael Mann, ou MORTALMENTE PERIGOSA, de Joseph H. Lewis, e não um filme de assalto leve, tipo ONZE HOMENS E UM SEGREDO, de Steven Soderbergh. Por isso sabemos que o perigo está sempre por perto.
O fato de Baby ser um refém das chantagens do chefão Doc (Spacey) é um elemento que faz com que nos coloquemos em seu lugar. Ele está prestes a deixar aquele mundo do crime. E o seu sonho ganha forma na conversa com Debra, sobre querer sair daquele lugar e ganhar a estrada, ouvindo música. E para que melhor sonho do que encontrar a felicidade pegando a estrada com a pessoa amada? Mas sabemos que esse sonho não vai ser tão fácil de ser concretizado.
Tudo isso, incluindo as dificuldades dos nossos heróis e as várias cenas de perseguição, sendo uma delas a pé, fazem parte do prazer que sentimos em ver EM RITMO DE FUGA, um filme que traz uma injeção de ânimo tão grande em nosso espírito que, ao sair da sessão, dá vontade de dançar, ouvir música, correr (com o carro ou com as pernas mesmo), enfim, viver. E viver inclusive para poder ter o privilégio de rever EM RITMO DE FUGA. De preferência no cinema, novamente.
sexta-feira, julho 21, 2017
DE CANÇÃO EM CANÇÃO (Song to Song)
Talvez o problema de Terrence Malick foi ter acertado a mão em A ÁRVORE DA VIDA (2011), em que ele usou talvez pela primeira vez o uso da câmera-chicote, que trabalha a aproximação e a rejeição ao mesmo tempo. É um tipo de efeito muito interessante, mas imagina só ver uma obra inteira feita dessa maneira, e com cortes rápidos, que impedem que quase nunca possamos ver imagens estáticas, a não ser quando a câmera está dentro de um barco, por exemplo, como na cena com Cate Blanchett.
O que a gente pode perceber também em DE CANÇÃO EM CANÇÃO (2017) é o quanto Malick passou de cineasta existencialista e religioso para um homem interessado nas coisas, digamos, mais mundanas. Ele aborda o amor, algo transcendental em qualquer forma que ele seja apresentado, mas o diretor está muito interessado em filmar rostos bonitos. Se em A ÁRVORE DA VIDA e também em AMOR PLENO (2012) Jessica Chastain e Olga Kurylenko parecem figuras angelicais, esse sentimento é deixado de lado no novo filme.
Ou ao menos, é diminuído consideravelmente, já que a personagem de Rooney Mara parece estar vivendo uma crise de consciência tremenda, ao estar com dois homens ao mesmo tempo, traindo o namorado vivido por Ryan Gosling pela personificação do cafajeste conquistador vivido por Michael Fassbender. Os dois atores, é bom dizer, funcionam muito bem dentro desses papéis. Não é uma má escolha no casting. Mas o excesso de voice over e de tentativa de dar profundidade às suas angústias acaba por tirar-lhes a voz.
Por causa disso é que uma cena que deveria ser impactante, envolvendo Natalie Portman, acaba não tendo força. Seria por culpa da edição, que tirou muito de sua personagem no enredo? Quem sabe. Mas o fato é que assistir a DE CANÇÃO EM CANÇÃO é até um desafio. Não é todo mundo que entra na sala e fica até o final. Muitos espectadores vão embora, coisa que aconteceu com A ÁRVORE DA VIDA também. Assim, é preciso entrar na sala esperando ver um filme de Terrence Malick. O Malick dos anos 2010, mais disposto a contar uma história de maneira fragmentada e com esse estilo que ficou mais parecendo um cacoete.
Há também frustração na questão da música, que é anunciada no título. Algumas das canções são muito boas, mas quando elas começam a tocar e o filme fica parecendo um belo trailer (como são belos os trailers dos filmes do Malick, hein?), essas mesmas canções são interrompidas, causando mais irritação. Tudo em prol de manter o mesmo flutuar em vai-vens da câmera do mexicano Emmanuel Lubeski. Aliás, uma das melhores coisas do filme e o que mais segura o espectador é a beleza das imagens que Lubeski capta. Mais do que o interesse pelos músicos (Patti Smith, Iggy Pop, Red Hot Chilli Peppers).
E aí temos a beleza do elenco. Cate Blanchett aparece pouco, mas poucas vezes ela apareceu de maneira tão deslumbrante como em DE CANÇÃO EM CANÇÃO. É até perdoável que Malick tenha se deixado inebriar pela beleza de seu elenco. Fazer cinema é muitas vezes registrar a beleza dos corpos jovens da melhor maneira possível, a fim de eternizá-los. Em alguns momentos, Malick quase se deixa levar pelo lado mais sensual, com personagens, principalmente as femininas, tocando ou tendo tocado o seu sexo com volúpia. E, nisso, vale destacar também uma cena de amor entre duas mulheres, o que só aumenta o sentimento de fascínio do diretor pela beleza sensual, ainda que seja uma beleza sempre branca, emoldura por filtros e por uma arquitetura sempre de riqueza material e envolta pelas coisas que o dinheiro pode comprar.
O que a gente pode perceber também em DE CANÇÃO EM CANÇÃO (2017) é o quanto Malick passou de cineasta existencialista e religioso para um homem interessado nas coisas, digamos, mais mundanas. Ele aborda o amor, algo transcendental em qualquer forma que ele seja apresentado, mas o diretor está muito interessado em filmar rostos bonitos. Se em A ÁRVORE DA VIDA e também em AMOR PLENO (2012) Jessica Chastain e Olga Kurylenko parecem figuras angelicais, esse sentimento é deixado de lado no novo filme.
Ou ao menos, é diminuído consideravelmente, já que a personagem de Rooney Mara parece estar vivendo uma crise de consciência tremenda, ao estar com dois homens ao mesmo tempo, traindo o namorado vivido por Ryan Gosling pela personificação do cafajeste conquistador vivido por Michael Fassbender. Os dois atores, é bom dizer, funcionam muito bem dentro desses papéis. Não é uma má escolha no casting. Mas o excesso de voice over e de tentativa de dar profundidade às suas angústias acaba por tirar-lhes a voz.
Por causa disso é que uma cena que deveria ser impactante, envolvendo Natalie Portman, acaba não tendo força. Seria por culpa da edição, que tirou muito de sua personagem no enredo? Quem sabe. Mas o fato é que assistir a DE CANÇÃO EM CANÇÃO é até um desafio. Não é todo mundo que entra na sala e fica até o final. Muitos espectadores vão embora, coisa que aconteceu com A ÁRVORE DA VIDA também. Assim, é preciso entrar na sala esperando ver um filme de Terrence Malick. O Malick dos anos 2010, mais disposto a contar uma história de maneira fragmentada e com esse estilo que ficou mais parecendo um cacoete.
Há também frustração na questão da música, que é anunciada no título. Algumas das canções são muito boas, mas quando elas começam a tocar e o filme fica parecendo um belo trailer (como são belos os trailers dos filmes do Malick, hein?), essas mesmas canções são interrompidas, causando mais irritação. Tudo em prol de manter o mesmo flutuar em vai-vens da câmera do mexicano Emmanuel Lubeski. Aliás, uma das melhores coisas do filme e o que mais segura o espectador é a beleza das imagens que Lubeski capta. Mais do que o interesse pelos músicos (Patti Smith, Iggy Pop, Red Hot Chilli Peppers).
E aí temos a beleza do elenco. Cate Blanchett aparece pouco, mas poucas vezes ela apareceu de maneira tão deslumbrante como em DE CANÇÃO EM CANÇÃO. É até perdoável que Malick tenha se deixado inebriar pela beleza de seu elenco. Fazer cinema é muitas vezes registrar a beleza dos corpos jovens da melhor maneira possível, a fim de eternizá-los. Em alguns momentos, Malick quase se deixa levar pelo lado mais sensual, com personagens, principalmente as femininas, tocando ou tendo tocado o seu sexo com volúpia. E, nisso, vale destacar também uma cena de amor entre duas mulheres, o que só aumenta o sentimento de fascínio do diretor pela beleza sensual, ainda que seja uma beleza sempre branca, emoldura por filtros e por uma arquitetura sempre de riqueza material e envolta pelas coisas que o dinheiro pode comprar.
quarta-feira, julho 19, 2017
MEMÓRIAS SECRETAS (Remember)
Outra perda noticiada e lamentada nesse último domingo (a morte foi no sábado) foi a do prolífico ator Martin Landau, que teve como um de seus últimos papéis marcantes o de MEMÓRIAS SECRETAS (2015), de Atom Egoyan. Vi-o em maio do ano passado e é curioso eu justamente estar falando dele com a memória fraca, dada a distância de tempo, e sendo um filme sobre um personagem com Alzheimer.
Com 177 títulos no currículo como ator, Martin Landau começou sua carreira na televisão na década de 1950 e já na mesma década teve a honra de estar em um filme de Alfred Hitchcock, INTRIGA INTERNACIONAL. Mas ele acabou se notabilizando pelos trabalhos na televisão e brilhou na série MISSÃO: IMPOSSÍVEL nos anos 1960. No cinema dos anos 1970-80 se dedicou a alguns filmes B de terror e ficção científica.
As coisas melhoraram para Landau quando surgiram papéis importantes, como os de TUCKER - UM HOMEM E SEU SONHO, de Francis Ford Coppola, e seu desempenho excepcional em CRIMES E PECADOS, de Woody Allen. Mas sua coroação veio com ED WOOD, de Tim Burton, que lhe rendeu o Oscar de melhor ator coadjuvante, interpretando de maneira comovente e engraçada um Bela Lugosi decadente.
Em MEMÓRIAS SECRETAS, Landau é um nonagenário sobrevivente de Auschwitz que prepara uma vingança contra o nazista responsável por matar sua família nos campos de concentração. O problema é que ele não tem como fazer isso estando em uma cadeira de rodas. A não ser que ele peça ajuda a seu melhor amigo, vivido por Christopher Plummer, vítima dos mesmos carrascos.
Acontece que o personagem de Plummer, de nome Zed, tem um outro problema sério: o mal de Alzheimer. Assim, sua tarefa para fugir da casa de repouso e procurar a casa do tal nazista para, enfim, executá-lo, não é nada fácil. E isso acaba se tornando algo divertido e ao mesmo tempo angustiante para o espectador. O veterano Plummer, quase um nonagenário também, está ótimo em seu personagem desmemoriado, mas com disposição para executar o ato.
Talvez o filme fosse mais memorável se estivesse nas mãos de outro cineasta, já que Atom Egoyan anda fazendo uns filmes bem mais ou menos já faz algum tempo. Se bem que o último trabalho dele que vi foi O PREÇO DA TRAIÇÃO (2009), mas a maior parte dos críticos não tem gostado muitos de seus filmes, não. Principalmente levando em consideração que ele começou muito bem nos anos 1990, com EXÓTICA (1994) e depois ganhando a Palma de Ouro em Cannes com O DOCE AMANHÃ (1997). Seria o caso de diretor que perdeu a mão ou de um picareta que enganou a todos? De todo modo, MEMÓRIAS SECRETAS não é um filme que se deve deixar de lado.
Com 177 títulos no currículo como ator, Martin Landau começou sua carreira na televisão na década de 1950 e já na mesma década teve a honra de estar em um filme de Alfred Hitchcock, INTRIGA INTERNACIONAL. Mas ele acabou se notabilizando pelos trabalhos na televisão e brilhou na série MISSÃO: IMPOSSÍVEL nos anos 1960. No cinema dos anos 1970-80 se dedicou a alguns filmes B de terror e ficção científica.
As coisas melhoraram para Landau quando surgiram papéis importantes, como os de TUCKER - UM HOMEM E SEU SONHO, de Francis Ford Coppola, e seu desempenho excepcional em CRIMES E PECADOS, de Woody Allen. Mas sua coroação veio com ED WOOD, de Tim Burton, que lhe rendeu o Oscar de melhor ator coadjuvante, interpretando de maneira comovente e engraçada um Bela Lugosi decadente.
Em MEMÓRIAS SECRETAS, Landau é um nonagenário sobrevivente de Auschwitz que prepara uma vingança contra o nazista responsável por matar sua família nos campos de concentração. O problema é que ele não tem como fazer isso estando em uma cadeira de rodas. A não ser que ele peça ajuda a seu melhor amigo, vivido por Christopher Plummer, vítima dos mesmos carrascos.
Acontece que o personagem de Plummer, de nome Zed, tem um outro problema sério: o mal de Alzheimer. Assim, sua tarefa para fugir da casa de repouso e procurar a casa do tal nazista para, enfim, executá-lo, não é nada fácil. E isso acaba se tornando algo divertido e ao mesmo tempo angustiante para o espectador. O veterano Plummer, quase um nonagenário também, está ótimo em seu personagem desmemoriado, mas com disposição para executar o ato.
Talvez o filme fosse mais memorável se estivesse nas mãos de outro cineasta, já que Atom Egoyan anda fazendo uns filmes bem mais ou menos já faz algum tempo. Se bem que o último trabalho dele que vi foi O PREÇO DA TRAIÇÃO (2009), mas a maior parte dos críticos não tem gostado muitos de seus filmes, não. Principalmente levando em consideração que ele começou muito bem nos anos 1990, com EXÓTICA (1994) e depois ganhando a Palma de Ouro em Cannes com O DOCE AMANHÃ (1997). Seria o caso de diretor que perdeu a mão ou de um picareta que enganou a todos? De todo modo, MEMÓRIAS SECRETAS não é um filme que se deve deixar de lado.
segunda-feira, julho 17, 2017
A NOITE DOS MORTOS-VIVOS (Night of the Living Dead)
E foi aqui que tudo começou. Toda essa explosão de zumbis em filmes, livros, séries, quadrinhos, games, peças e até em passeatas. Tudo começou com este filme dirigido por um jovem de 28 anos chamado George A. Romero. Diferente de seus zumbis, ele preferiu não seguir vivo após a luta contra o câncer de pulmão. Mas o impacto de A NOITE DOS MORTOS-VIVOS (1968) na história do cinema (não apenas de horror) vai ficar pra sempre. Ou pelo menos até o dia em que aparecer uma epidemia de zumbis e todos esses filmes forem, de alguma maneira, perdidos.
Romero não foi apenas o criador dos zumbis modernos que continuam sendo copiados e explorados até a exaustão. Alguns outros filmes de impacto também tiveram seu nome à frente, como foi o caso de suas parcerias com Stephen King, CREEPSHOW - SHOW DE HORRORES (1982) e A METADE NEGRA (1993), e com Dario Argento, para adaptar Edgar Allan Poe em DOIS OLHOS SATÂNICOS (1990). Ou de suas originais histórias de vampiro (MARTIN, 1978) e de animal assassino (INSTINTO FATAL, 1988). Sem falar nos outros cinco filmes de zumbis que também foram um reflexo no contexto social e político em que foram realizados.
A NOITE DOS MORTOS-VIVOS talvez não tenha sido o primeiro filme de horror a usar sua história como alegoria para fazer uma crítica social, mas certamente é o mais lembrado. Em 1968, os negros lutavam pela igualdade social em uma América cheia de preconceitos. Muitos morreram lutando, inclusive alguns líderes como Martin Luther King e Malcolm X, covardemente assassinados. E Romero ainda teve a coragem de colocar um protagonista negro, Ben (Duane Jones), como o homem mais sensato e centrado entre os sobreviventes da casa, enquanto os brancos ou pareciam catatônicos, caso de Barbra (Judith O'Dea), ou totalmente egoístas, caso do senhor careca que quer medir forças com Ben, vivido por Karl Hardman, também um dos produtores do filme.
Umas das coisas que mais impressiona em A NOITE DOS MORTOS-VIVOS é seu ritmo ágil que até hoje nos deixa com a adrenalina lá em cima. E isso começa já nos primeiros 10 minutos de duração, quando surge o primeiro zumbi no cemitério e ataca Barbra e seu irmão. A partir daí a brincadeira de pega-pega só para quando o filme termina, e tudo passa com uma rapidez e fluidez narrativa impressionante e em um registro cru da luta pela sobrevivência daquelas pessoas dentro daquela casa.
E tudo o que se aprendeu sobre os zumbis está aí, nesta espécie de manual. Até então os zumbis que eram vistos nos filmes tinham raízes no Haiti ou imediações, a partir de feitiços. Zumbis que comem carne humana e só morrem com um tiro ou pancada forte na cabeça nasceram aqui. Curiosamente, Romero vai tornando seus zumbis mais inteligentes ao longo de seus demais filmes. Já neste primeiro filme vemos alguns deles pegando pedaços de pau para quebrar a casa, coisa que não se vê em THE WALKING DEAD, por exemplo.
E assim Romero fez história matando três coelhos com uma só cajadada. Ao mesmo tempo em que criou os zumbis modernos (mesmo sem utilizar o nome zumbis em momento nenhum do filme), ele também popularizou o cinema de horror como crítica social. Mas tudo seria apenas uma nota nos livros se A NOITE DOS MORTOS-VIVOS não fosse também um baita filme cheio de suspense e horror que nem o tempo nem o baixo orçamento tratou de diminuir. Ao contrário: o primeiro longa de Romero só cresceu ao longo dos anos. Este gigante (até na estatura) vai fazer uma falta imensa, mas seu legado está aí, crescendo-se e multiplicando-se.
Romero não foi apenas o criador dos zumbis modernos que continuam sendo copiados e explorados até a exaustão. Alguns outros filmes de impacto também tiveram seu nome à frente, como foi o caso de suas parcerias com Stephen King, CREEPSHOW - SHOW DE HORRORES (1982) e A METADE NEGRA (1993), e com Dario Argento, para adaptar Edgar Allan Poe em DOIS OLHOS SATÂNICOS (1990). Ou de suas originais histórias de vampiro (MARTIN, 1978) e de animal assassino (INSTINTO FATAL, 1988). Sem falar nos outros cinco filmes de zumbis que também foram um reflexo no contexto social e político em que foram realizados.
A NOITE DOS MORTOS-VIVOS talvez não tenha sido o primeiro filme de horror a usar sua história como alegoria para fazer uma crítica social, mas certamente é o mais lembrado. Em 1968, os negros lutavam pela igualdade social em uma América cheia de preconceitos. Muitos morreram lutando, inclusive alguns líderes como Martin Luther King e Malcolm X, covardemente assassinados. E Romero ainda teve a coragem de colocar um protagonista negro, Ben (Duane Jones), como o homem mais sensato e centrado entre os sobreviventes da casa, enquanto os brancos ou pareciam catatônicos, caso de Barbra (Judith O'Dea), ou totalmente egoístas, caso do senhor careca que quer medir forças com Ben, vivido por Karl Hardman, também um dos produtores do filme.
Umas das coisas que mais impressiona em A NOITE DOS MORTOS-VIVOS é seu ritmo ágil que até hoje nos deixa com a adrenalina lá em cima. E isso começa já nos primeiros 10 minutos de duração, quando surge o primeiro zumbi no cemitério e ataca Barbra e seu irmão. A partir daí a brincadeira de pega-pega só para quando o filme termina, e tudo passa com uma rapidez e fluidez narrativa impressionante e em um registro cru da luta pela sobrevivência daquelas pessoas dentro daquela casa.
E tudo o que se aprendeu sobre os zumbis está aí, nesta espécie de manual. Até então os zumbis que eram vistos nos filmes tinham raízes no Haiti ou imediações, a partir de feitiços. Zumbis que comem carne humana e só morrem com um tiro ou pancada forte na cabeça nasceram aqui. Curiosamente, Romero vai tornando seus zumbis mais inteligentes ao longo de seus demais filmes. Já neste primeiro filme vemos alguns deles pegando pedaços de pau para quebrar a casa, coisa que não se vê em THE WALKING DEAD, por exemplo.
E assim Romero fez história matando três coelhos com uma só cajadada. Ao mesmo tempo em que criou os zumbis modernos (mesmo sem utilizar o nome zumbis em momento nenhum do filme), ele também popularizou o cinema de horror como crítica social. Mas tudo seria apenas uma nota nos livros se A NOITE DOS MORTOS-VIVOS não fosse também um baita filme cheio de suspense e horror que nem o tempo nem o baixo orçamento tratou de diminuir. Ao contrário: o primeiro longa de Romero só cresceu ao longo dos anos. Este gigante (até na estatura) vai fazer uma falta imensa, mas seu legado está aí, crescendo-se e multiplicando-se.
domingo, julho 16, 2017
O FUTURO PERFEITO (El Futuro Perfecto)
É muito bom poder se deparar com um filme tão estranho quanto atraente quanto O FUTURO PERFEITO (2016), da diretora alemã radicada na Argentina Nele Wohlatz. Isso porque o tom às vezes bressoniano de interpretação dos intérpretes (e um elenco formado por não-atores) acaba se tornando familiar até para um público menos familiarizado com um tipo de cinema mais hermético. Isso porque tanto pode lembrar os role-playing games das aulas de línguas, quanto a vida de uma pessoa inocente em uma terra distante, o que até lembra, em alguns momentos, a Macabeia, de A HORA DA ESTRELA.
Mas o caso de Xiaobin, que adota na Argentina o nome Beatriz, é ainda mais complicado, já que ela chega àquela terra estranha sem saber nenhuma palavra do espanhol. Seus pais não se interessam em se integrar àquela sociedade, pois planejam ganhar dinheiro e voltar para a China e por isso só falam em mandarim, na empresa de lavanderia que cuidam. Mas a menina de 17 anos não: ela quer se adaptar àquele mundo novo. E para isso ela procura empregos simples e também cursos para aprender o espanhol. Até porque no primeiro trabalho ela não entendia nada o que os clientes estavam falando e isso lhe custou um emprego.
É possível também se identificar com a personagem se em algum momento da sua vida você já se sentiu excluído ou um peixe fora d´água. Daí é possível entender um pouco a atração que Beatriz sente pelo rapaz indiano que demonstra interesse nela. Os dois estão unidos pela exclusão social. A cena do cinema, quando ele pede para casar com ela e ambos dizem que não estão entendendo o filme, é bem representativa dessa situação incômoda.
Interessante notar que Beatriz vai se tornando mais inteligente e mais esperta à medida que suas aulas de espanhol progridem. Se antes tudo era muito simples nas aulas, como dizer o nome de objetos ou das partes do corpo humano ou de eventos relacionadas ao passado ou ao presente dela, a coisa se tornaria mais complexa quando a professora introduz o estudo do condicional, com o verbo no que a gente chama em português de futuro do pretérito.
Assim, o futuro passa a ser visualizado em uma série de possibilidades. E se o rapaz indiano for casado, o você faria? E se seus pais descobrirem e não gostarem do rapaz, o que aconteceria? E se você viajar para a Índia, como seria? Assim, as imagens surgem na tela quase como verdades, embora saibamos que estamos diante de jogos de imagem a partir dos pensamentos de Beatriz.
Interessante vermos mais um filme que mostra o quanto a linguagem é capaz de modificar o futuro das pessoas. Vimos recentemente uma obra ambiciosa sobre o tema no registro de ficção científica, A CHEGADA, de Denis Villeneuve. Agora temos um filme bem mais modesto, principalmente em seu orçamento, minúsculo, mas que ganha uma dimensão enorme no que tange à reflexão sobre as influências da linguagem na vida e na mente de uma pessoa, no quanto isso pode aumentar as fronteiras. Claro que também não é só isso, pois há toda uma angústia que sentimos ao ver a história pela ponto de vista de Beatriz. E terminar do jeito que terminou também faz com que O FUTURO PERFEITO fique conosco após a projeção.
Mas o caso de Xiaobin, que adota na Argentina o nome Beatriz, é ainda mais complicado, já que ela chega àquela terra estranha sem saber nenhuma palavra do espanhol. Seus pais não se interessam em se integrar àquela sociedade, pois planejam ganhar dinheiro e voltar para a China e por isso só falam em mandarim, na empresa de lavanderia que cuidam. Mas a menina de 17 anos não: ela quer se adaptar àquele mundo novo. E para isso ela procura empregos simples e também cursos para aprender o espanhol. Até porque no primeiro trabalho ela não entendia nada o que os clientes estavam falando e isso lhe custou um emprego.
É possível também se identificar com a personagem se em algum momento da sua vida você já se sentiu excluído ou um peixe fora d´água. Daí é possível entender um pouco a atração que Beatriz sente pelo rapaz indiano que demonstra interesse nela. Os dois estão unidos pela exclusão social. A cena do cinema, quando ele pede para casar com ela e ambos dizem que não estão entendendo o filme, é bem representativa dessa situação incômoda.
Interessante notar que Beatriz vai se tornando mais inteligente e mais esperta à medida que suas aulas de espanhol progridem. Se antes tudo era muito simples nas aulas, como dizer o nome de objetos ou das partes do corpo humano ou de eventos relacionadas ao passado ou ao presente dela, a coisa se tornaria mais complexa quando a professora introduz o estudo do condicional, com o verbo no que a gente chama em português de futuro do pretérito.
Assim, o futuro passa a ser visualizado em uma série de possibilidades. E se o rapaz indiano for casado, o você faria? E se seus pais descobrirem e não gostarem do rapaz, o que aconteceria? E se você viajar para a Índia, como seria? Assim, as imagens surgem na tela quase como verdades, embora saibamos que estamos diante de jogos de imagem a partir dos pensamentos de Beatriz.
Interessante vermos mais um filme que mostra o quanto a linguagem é capaz de modificar o futuro das pessoas. Vimos recentemente uma obra ambiciosa sobre o tema no registro de ficção científica, A CHEGADA, de Denis Villeneuve. Agora temos um filme bem mais modesto, principalmente em seu orçamento, minúsculo, mas que ganha uma dimensão enorme no que tange à reflexão sobre as influências da linguagem na vida e na mente de uma pessoa, no quanto isso pode aumentar as fronteiras. Claro que também não é só isso, pois há toda uma angústia que sentimos ao ver a história pela ponto de vista de Beatriz. E terminar do jeito que terminou também faz com que O FUTURO PERFEITO fique conosco após a projeção.
sábado, julho 15, 2017
JOVENS, LOUCOS E MAIS REBELDES (Everybody Wants Some!!)
A filmografia de Richard Linklater é bem irregular. Às vezes fico me perguntando por que o homem que dirigiu obras tão intensas quanto a trilogia ANTES DO AMANHECER (1995), ANTES DO PÔR-DO-SOL (2004) e ANTES DA MEIA-NOITE (2013) tem em seu currículo alguns filmes até inexpressivos e que muitas vezes passam batido. Porém, não dá pra dizer que ele é um diretor que não tem a sua marca e as suas obsessões impressas em suas obras.
Uma delas, como dá para perceber pela citada trilogia, é a sua preocupação com a passagem do tempo, em pensar sobre o tempo como algo fugaz e por isso mesmo tão valioso. JOVENS, LOUCOS E MAIS REBELDES (2016) é uma continuação espiritual de JOVENS, LOUCOS E REBELDES (1993), que mostrava as aventuras de um grupo de estudantes do ensino médio no último dia de aula, em 1976, com todo aquele espírito dos anos 1970 impresso. O novo filme traz outro grupo de jovens, desta vez em seu primeiro dia no ambiente universitário, antes de as aulas começarem, no ano de 1980.
A virada da década está presente nos figurinos, no comportamento, na bem selecionada trilha musical, na direção de arte, na fotografia colorida e no espírito festivo do filme. O que pode incomodar um pouco, especialmente aos fãs do cineasta que gostam de conversas de cunho mais aprofundado, é o quanto a filosofia é vista de maneira mais leve pelos olhos dos vários personagens que passeiam pela tela, especialmente se pensarmos que estamos diante de um filme do mesmo diretor de WAKING LIFE (2001).
Mas também sabemos que Linklater é o cara que dirigiu ESCOLA DE ROCK (2003) e que também gosta de pura diversão, sem muitas pretensões intelectuais. O olhar principal do filme é o de Jake Bradford (Blake Jenner). É pelos seus olhos que vamos conhecendo os demais membros da turma que fará parte dessa importante etapa de sua vida. Cada um deles tem a sua importância em um filme que não se preocupa com um plot, mas que prefere deixar seguir seu caminho com naturalidade e leveza, como se estivéssemos testemunhando aquele momento e olhando com carinho para aquelas pessoas, sem nenhuma preocupação com uma conclusão. Afinal, a vida está mal começando.
São jovens que estão mais interessados em jogar beisebol, namorar e brincar do que exatamente estudar. E é muito bom ver essa turma com o olhar de alegria de alguém que está acabando de chegar àquele ambiente e conhecendo aqueles novos tipos. Para aqueles jovens, estar ali era uma questão de autoafirmação. Por isso em muitos momentos fica parecendo um clube do Bolinha com pouca sensibilidade, quase machista, embora haja algumas personagens femininas bem marcantes e encantadoras (principalmente a personagem de Zoey Deutch). A alegria está no ar pela liberdade que finalmente é dada aos jovens, depois do tanto que lhes é proibido durante o colegial. E uma vez que nós deixemos que essa alegria e esse relaxamento nos contagie, JOVENS, LOUCOS E MAIS REBELDES (título brasileiro tosco e nada a ver, eu sei) pode ser uma experiência muito gostosa.
Uma delas, como dá para perceber pela citada trilogia, é a sua preocupação com a passagem do tempo, em pensar sobre o tempo como algo fugaz e por isso mesmo tão valioso. JOVENS, LOUCOS E MAIS REBELDES (2016) é uma continuação espiritual de JOVENS, LOUCOS E REBELDES (1993), que mostrava as aventuras de um grupo de estudantes do ensino médio no último dia de aula, em 1976, com todo aquele espírito dos anos 1970 impresso. O novo filme traz outro grupo de jovens, desta vez em seu primeiro dia no ambiente universitário, antes de as aulas começarem, no ano de 1980.
A virada da década está presente nos figurinos, no comportamento, na bem selecionada trilha musical, na direção de arte, na fotografia colorida e no espírito festivo do filme. O que pode incomodar um pouco, especialmente aos fãs do cineasta que gostam de conversas de cunho mais aprofundado, é o quanto a filosofia é vista de maneira mais leve pelos olhos dos vários personagens que passeiam pela tela, especialmente se pensarmos que estamos diante de um filme do mesmo diretor de WAKING LIFE (2001).
Mas também sabemos que Linklater é o cara que dirigiu ESCOLA DE ROCK (2003) e que também gosta de pura diversão, sem muitas pretensões intelectuais. O olhar principal do filme é o de Jake Bradford (Blake Jenner). É pelos seus olhos que vamos conhecendo os demais membros da turma que fará parte dessa importante etapa de sua vida. Cada um deles tem a sua importância em um filme que não se preocupa com um plot, mas que prefere deixar seguir seu caminho com naturalidade e leveza, como se estivéssemos testemunhando aquele momento e olhando com carinho para aquelas pessoas, sem nenhuma preocupação com uma conclusão. Afinal, a vida está mal começando.
São jovens que estão mais interessados em jogar beisebol, namorar e brincar do que exatamente estudar. E é muito bom ver essa turma com o olhar de alegria de alguém que está acabando de chegar àquele ambiente e conhecendo aqueles novos tipos. Para aqueles jovens, estar ali era uma questão de autoafirmação. Por isso em muitos momentos fica parecendo um clube do Bolinha com pouca sensibilidade, quase machista, embora haja algumas personagens femininas bem marcantes e encantadoras (principalmente a personagem de Zoey Deutch). A alegria está no ar pela liberdade que finalmente é dada aos jovens, depois do tanto que lhes é proibido durante o colegial. E uma vez que nós deixemos que essa alegria e esse relaxamento nos contagie, JOVENS, LOUCOS E MAIS REBELDES (título brasileiro tosco e nada a ver, eu sei) pode ser uma experiência muito gostosa.
sexta-feira, julho 14, 2017
SEIS FILMES INDICADOS AO OSCAR 2017
Os dias se passaram tão rapidamente que até mesmo aqueles filmes mais badalados, os indicados ao Oscar, e que chegaram por aqui no início do ano, por volta de fevereiro, meio que não tiveram chance de ter uma postagem digna aqui no blog. E talvez seja melhor falar um pouco sobre esses filmes logo, antes que a memória deles se torne ainda mais nublada.
CAPITÃO FANTÁSTICO (Captain Fantastic)
Belo filme que nos faz pensar sobre o tipo de educação que se recebe e sobre o quanto ela sempre vai ser deficitária em algum aspecto. Em CAPITÃO FANTÁSTICO (2016, foto), de Matt Ross, temos uma família que cresce no meio do mato, com uma educação centrada no pai, que ensina aos filhos valores distantes do que ensina o mundo capitalista que ele tanto abomina. As cores do filme são lindas e adoro as cenas ao ar livre, com os filhos do personagem do Viggo Mortensen em atividade, e também mostrando sua educação, o interesse deles e, como era de se esperar, também uma vontade de conhecer o mundo e deixar a família por parte de algum. A questão afetiva pesa bastante também, até pela morte da mãe. A cena com "Sweet child o'mine" é muito bonita. A execução podia ter ficado melhor, é verdade, mas dentro do contexto é emocionante. A canção já se provou forte o suficiente, aliás, sem a guitarra do Slash, em outras versões. CAPITÃO FANTÁSTICO é o primeiro filme de destaque de Matt Ross como diretor. Indicado ao Oscar de melhor ator (Viggo Mortensen).
A TARTARUGA VERMELHA (La Tortue Rouge)
Uma beleza de animação esta A TARTARUGA VERMELHA (2016), do holandês Michael Dudok de Wit. De encher os olhos. Lembrei da obra-prima A ILHA DO MILHARAL, de George Ovashvili, pela capacidade de contar a história sem diálogos e em um espaço físico pequeno, mas exuberante. Fiquei ainda sem entender algumas coisas, mas o mistério faz parte do charme do filme. Uma pena que, como acontece com boa parte das animações, em certo momento eu comecei a cochilar. Ainda estou para entender esse meu problema com filmes de animação e fantasia. Ainda assim, a lembrança que fica de A TARTARUGA VERMELHA é muito positiva. Apesar de ser uma coprodução entre França, Bélgica e Japão, o filme é uma produção dos Estúdios Ghibli. Indicado ao Oscar de melhor longa-metragem de animação.
ANIMAIS NOTURNOS (Nocturnal Animals)
Agradou-me bastante este ANIMAIS NOTURNOS (2016), segundo filme de Tom Ford. Aliás, é incrível que ele tenha feito um filme tão bom nesse relativamente longo espaço de tempo de seu primeiro e até então único longa, DIREITO DE AMAR (2009). A história dentro da história é bem boa e até chega a superar a história "principal" no que mais interessa. Ou seja, no quanto funciona como suspense perturbador, quase próximo de um filme de horror. E a outra, protagonizada pela dona da galeria de arte vivida por Amy Adams, tem um grau de dor e angústia que contagia. O filme me tirou o sono numa madrugada dessas. É empolgante. O mundo dela é frio mas (justamente por isso?) acho que dá pra sentir o arrependimento da personagem de ter deixado o ex (Jake Gyllenhaal). E é muito legal quando as memórias sentimentais dela se misturam, de certa forma, com a narrativa do livro. Indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante (Michael Shannon).
EU NÃO SOU SEU NEGRO (I Am Not Your Negro)
Documentário quase tão incisivo quanto James Baldwin e suas palavras, sejam as lidas por Samuel L. Jackson, sejam as que foram registradas em programas de televisão. EU NÃO SOU SEU NEGRO (2016) chega em um momento particularmente importante para se discutir o quanto a sociedade ainda deve muito ao negro. A americana, em especial, no que ela tem de mais insana e inacreditável. O cineasta haitiano Raoul Peck faz um filme tão poderoso e amargo (e com razão de ser amargo) que ficamos até sem palavras. O fato de existir um filme como este é uma das grandes vantagens desse ano, em que temas sobre a questão negra tiveram mais espaço para vir à luz. Indicado ao Oscar de melhor documentário em longa-metragem. Teria ganhado, se não fosse pelo tamanho e a força de O.J.: MADE IN AMERICA, de Ezra Edelman, que está mais para uma minissérie de televisão, mas tudo bem.
O LIMITE ENTRE NÓS (Fences)
E falando sobre filmes de temática negra, infelizmente este terceiro longa de Denzel Washington na direção, O LIMITE ENTRE NÓS (2016), não me encantou. Aliás, eu achei o filme chato pra caramba. Tem algo de interessante no texto, mas a emoção não me veio. E olha que eu já estava preparado para um filme mais teatral. É possível que vendo no cinema a experiência seja muito melhor, mas em casa é um filme maçante. E pouco envolvente como cinema, parecendo teatro filmado mesmo. E nem gostei tanto da caracterização de Viola Davis assim, no papel de esposa do personagem de Denzel. Ver em casa foi meu ato de rebeldia por terem colocado o filme para estrear uma semana depois da cerimônia do Oscar. Para não dizer que não gostei de nada, o papel do filho mais novo do Denzel é bom, poderia ter rendido mais. Há uma sequência poderosa: o diálogo duro do Denzel com o filho. Aquilo dói pra caramba. Vencedor do Oscar de melhor atriz coadjuvante para Viola Davis. Indicado a outras três categorias (filme, ator e roteiro adaptado)
O APARTAMENTO (Forushande)
É o menos criativo e bonito filme de Asghar Farhadi, dentre os quatro que vi do diretor. Creio que o meu preferido ainda é O PASSADO (2013), realizado na França. Mas O APARTAMENTO (2016), de volta ao Irã, é também muito bom de ver. Só peca lá pelo final, infelizmente. Gostei muito do casal de protagonistas. E do quanto é incômodo ver aquela situação de difícil comunicação após um ato de violação do corpo de uma mulher, especialmente quando estamos falando de uma mulher de uma cultura ainda mais complicada no que se refere aos costumes e aos tabus. Dá para lembrar de O SILÊNCIO DO CÉU, de Marco Dutra, que eu acho um filme muito mais bem resolvido, mas a situação em O APARTAMENTO é mais delicada justamente por causa da religião e dos costumes do povo iraniano. A cena em que o marido consegue desmascarar o sujeito que agrediu e estuprou sua esposa mexe, ao mesmo tempo, com nossos sentimentos de revolta e de pena. Tudo misturado. Vencedor do Oscar de melhor filme em língua estrangeira.
CAPITÃO FANTÁSTICO (Captain Fantastic)
Belo filme que nos faz pensar sobre o tipo de educação que se recebe e sobre o quanto ela sempre vai ser deficitária em algum aspecto. Em CAPITÃO FANTÁSTICO (2016, foto), de Matt Ross, temos uma família que cresce no meio do mato, com uma educação centrada no pai, que ensina aos filhos valores distantes do que ensina o mundo capitalista que ele tanto abomina. As cores do filme são lindas e adoro as cenas ao ar livre, com os filhos do personagem do Viggo Mortensen em atividade, e também mostrando sua educação, o interesse deles e, como era de se esperar, também uma vontade de conhecer o mundo e deixar a família por parte de algum. A questão afetiva pesa bastante também, até pela morte da mãe. A cena com "Sweet child o'mine" é muito bonita. A execução podia ter ficado melhor, é verdade, mas dentro do contexto é emocionante. A canção já se provou forte o suficiente, aliás, sem a guitarra do Slash, em outras versões. CAPITÃO FANTÁSTICO é o primeiro filme de destaque de Matt Ross como diretor. Indicado ao Oscar de melhor ator (Viggo Mortensen).
A TARTARUGA VERMELHA (La Tortue Rouge)
Uma beleza de animação esta A TARTARUGA VERMELHA (2016), do holandês Michael Dudok de Wit. De encher os olhos. Lembrei da obra-prima A ILHA DO MILHARAL, de George Ovashvili, pela capacidade de contar a história sem diálogos e em um espaço físico pequeno, mas exuberante. Fiquei ainda sem entender algumas coisas, mas o mistério faz parte do charme do filme. Uma pena que, como acontece com boa parte das animações, em certo momento eu comecei a cochilar. Ainda estou para entender esse meu problema com filmes de animação e fantasia. Ainda assim, a lembrança que fica de A TARTARUGA VERMELHA é muito positiva. Apesar de ser uma coprodução entre França, Bélgica e Japão, o filme é uma produção dos Estúdios Ghibli. Indicado ao Oscar de melhor longa-metragem de animação.
ANIMAIS NOTURNOS (Nocturnal Animals)
Agradou-me bastante este ANIMAIS NOTURNOS (2016), segundo filme de Tom Ford. Aliás, é incrível que ele tenha feito um filme tão bom nesse relativamente longo espaço de tempo de seu primeiro e até então único longa, DIREITO DE AMAR (2009). A história dentro da história é bem boa e até chega a superar a história "principal" no que mais interessa. Ou seja, no quanto funciona como suspense perturbador, quase próximo de um filme de horror. E a outra, protagonizada pela dona da galeria de arte vivida por Amy Adams, tem um grau de dor e angústia que contagia. O filme me tirou o sono numa madrugada dessas. É empolgante. O mundo dela é frio mas (justamente por isso?) acho que dá pra sentir o arrependimento da personagem de ter deixado o ex (Jake Gyllenhaal). E é muito legal quando as memórias sentimentais dela se misturam, de certa forma, com a narrativa do livro. Indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante (Michael Shannon).
EU NÃO SOU SEU NEGRO (I Am Not Your Negro)
Documentário quase tão incisivo quanto James Baldwin e suas palavras, sejam as lidas por Samuel L. Jackson, sejam as que foram registradas em programas de televisão. EU NÃO SOU SEU NEGRO (2016) chega em um momento particularmente importante para se discutir o quanto a sociedade ainda deve muito ao negro. A americana, em especial, no que ela tem de mais insana e inacreditável. O cineasta haitiano Raoul Peck faz um filme tão poderoso e amargo (e com razão de ser amargo) que ficamos até sem palavras. O fato de existir um filme como este é uma das grandes vantagens desse ano, em que temas sobre a questão negra tiveram mais espaço para vir à luz. Indicado ao Oscar de melhor documentário em longa-metragem. Teria ganhado, se não fosse pelo tamanho e a força de O.J.: MADE IN AMERICA, de Ezra Edelman, que está mais para uma minissérie de televisão, mas tudo bem.
O LIMITE ENTRE NÓS (Fences)
E falando sobre filmes de temática negra, infelizmente este terceiro longa de Denzel Washington na direção, O LIMITE ENTRE NÓS (2016), não me encantou. Aliás, eu achei o filme chato pra caramba. Tem algo de interessante no texto, mas a emoção não me veio. E olha que eu já estava preparado para um filme mais teatral. É possível que vendo no cinema a experiência seja muito melhor, mas em casa é um filme maçante. E pouco envolvente como cinema, parecendo teatro filmado mesmo. E nem gostei tanto da caracterização de Viola Davis assim, no papel de esposa do personagem de Denzel. Ver em casa foi meu ato de rebeldia por terem colocado o filme para estrear uma semana depois da cerimônia do Oscar. Para não dizer que não gostei de nada, o papel do filho mais novo do Denzel é bom, poderia ter rendido mais. Há uma sequência poderosa: o diálogo duro do Denzel com o filho. Aquilo dói pra caramba. Vencedor do Oscar de melhor atriz coadjuvante para Viola Davis. Indicado a outras três categorias (filme, ator e roteiro adaptado)
O APARTAMENTO (Forushande)
É o menos criativo e bonito filme de Asghar Farhadi, dentre os quatro que vi do diretor. Creio que o meu preferido ainda é O PASSADO (2013), realizado na França. Mas O APARTAMENTO (2016), de volta ao Irã, é também muito bom de ver. Só peca lá pelo final, infelizmente. Gostei muito do casal de protagonistas. E do quanto é incômodo ver aquela situação de difícil comunicação após um ato de violação do corpo de uma mulher, especialmente quando estamos falando de uma mulher de uma cultura ainda mais complicada no que se refere aos costumes e aos tabus. Dá para lembrar de O SILÊNCIO DO CÉU, de Marco Dutra, que eu acho um filme muito mais bem resolvido, mas a situação em O APARTAMENTO é mais delicada justamente por causa da religião e dos costumes do povo iraniano. A cena em que o marido consegue desmascarar o sujeito que agrediu e estuprou sua esposa mexe, ao mesmo tempo, com nossos sentimentos de revolta e de pena. Tudo misturado. Vencedor do Oscar de melhor filme em língua estrangeira.
quarta-feira, julho 12, 2017
A UM PASSO DA LIBERDADE (Le Trou)
Em todos esses anos como cinéfilo não tive tanto interesse em conhecer a obra de Jacques Becker. Muito provavelmente por ele ser um diretor que não foi tão badalado quanto contemporâneos seus como Robert Bresson e Alain Resnais, mas também por não integrar o corpo de cineastas que formaria a Nouvelle Vague. Uma pena, pois a força deste seu último filme, A UM PASSO DA LIBERDADE (1960), finalizado pouco antes de sua morte, é impressionante. E só pela forma como ele trata de estender o tempo já se percebe que ele era tão vanguardista quanto seus colegas conterrâneos citados.
A UM PASSO DA LIBERDADE é também um deleite para quem gosta de filmes sobre tentativas de fuga. É curioso, aliás, por que não fazem mais filmes desse subgênero, já que boa parte de obras desse tipo, como FUGINDO DO INFERNO, UM SONHO DE LIBERDADE, ALCATRAZ - FUGA IMPOSSÍVEL, PAPILLON, A GRANDE ILUSÃO, O SOBREVIVENTE etc. têm bastante apelo popular. Incluo nessa categoria o meu favorito, UM CONDENADO À MORTE ESCAPOU, de Robert Bresson.
O filme de Bresson é o que é mais frequentemente comparado ao A UM PASSO DA LIBERDADE. Tanto pelo intervalo pequeno de tempo de cada produção quanto pelo fato de ambos os filmes não terem um viés tão comercial. No caso do filme de Becker, a trama se passa quase que exclusivamente em um cubículo, a cela onde convivem quatro prisioneiros que planejam uma fuga e mais um novato que acabou de chegar e que deixa os demais desconfortáveis: eles devem desistir do plano ou contar ao rapaz? Será ele de confiança?
Pouco sabemos sobre Gaspard (Marc Michel), mas, como o filme começa sendo narrado pelo seu ponto de vista (ou quase isso), é de se esperar que ele seja um personagem de confiança, embora saibamos muito pouco dos motivos de ele estar na prisão e também do porquê de ele ter sido transferido de cela. De todo modo, ele parece se integrar bem ao grupo, ainda que seja sempre tratado de maneira diferente pelos demais.
Um dos aspectos bem curioso de A UM PASSO DA LIBERDADE é que todo o elenco é composto por então não-atores e que um deles, Jean Keraudy, o Roland do filme, interpreta a si mesmo. Ele esteve naquela prisão (recriada em estúdio) e foi o grande mentor dessa tentativa de fuga que inspirou a realização de um romance escrito por José Giovanni e que posteriormente se transformaria neste fantástico filme tão cheio de tensão, dirigido por Becker.
É também uma obra que trata de camaradagem masculina, comparável a muitos exemplares de Howard Hawks. A UM PASSO DA LIBERDADE até poderia explorar mais a tensão que é viver junto em um único cubículo, dormindo no chão e compartilhando aquele pequeno espaço, mas a intenção também é outra, já que todos estavam unidos por um objetivo único: sair dali. E difícil não torcer por eles. E o que dizer da cena da rua? Quase sentimos o ar da liberdade e o cheiro da noite naquele momento. Esses e outros detalhes fazem deste um filme singular.
A UM PASSO DA LIBERDADE é também um deleite para quem gosta de filmes sobre tentativas de fuga. É curioso, aliás, por que não fazem mais filmes desse subgênero, já que boa parte de obras desse tipo, como FUGINDO DO INFERNO, UM SONHO DE LIBERDADE, ALCATRAZ - FUGA IMPOSSÍVEL, PAPILLON, A GRANDE ILUSÃO, O SOBREVIVENTE etc. têm bastante apelo popular. Incluo nessa categoria o meu favorito, UM CONDENADO À MORTE ESCAPOU, de Robert Bresson.
O filme de Bresson é o que é mais frequentemente comparado ao A UM PASSO DA LIBERDADE. Tanto pelo intervalo pequeno de tempo de cada produção quanto pelo fato de ambos os filmes não terem um viés tão comercial. No caso do filme de Becker, a trama se passa quase que exclusivamente em um cubículo, a cela onde convivem quatro prisioneiros que planejam uma fuga e mais um novato que acabou de chegar e que deixa os demais desconfortáveis: eles devem desistir do plano ou contar ao rapaz? Será ele de confiança?
Pouco sabemos sobre Gaspard (Marc Michel), mas, como o filme começa sendo narrado pelo seu ponto de vista (ou quase isso), é de se esperar que ele seja um personagem de confiança, embora saibamos muito pouco dos motivos de ele estar na prisão e também do porquê de ele ter sido transferido de cela. De todo modo, ele parece se integrar bem ao grupo, ainda que seja sempre tratado de maneira diferente pelos demais.
Um dos aspectos bem curioso de A UM PASSO DA LIBERDADE é que todo o elenco é composto por então não-atores e que um deles, Jean Keraudy, o Roland do filme, interpreta a si mesmo. Ele esteve naquela prisão (recriada em estúdio) e foi o grande mentor dessa tentativa de fuga que inspirou a realização de um romance escrito por José Giovanni e que posteriormente se transformaria neste fantástico filme tão cheio de tensão, dirigido por Becker.
É também uma obra que trata de camaradagem masculina, comparável a muitos exemplares de Howard Hawks. A UM PASSO DA LIBERDADE até poderia explorar mais a tensão que é viver junto em um único cubículo, dormindo no chão e compartilhando aquele pequeno espaço, mas a intenção também é outra, já que todos estavam unidos por um objetivo único: sair dali. E difícil não torcer por eles. E o que dizer da cena da rua? Quase sentimos o ar da liberdade e o cheiro da noite naquele momento. Esses e outros detalhes fazem deste um filme singular.
terça-feira, julho 11, 2017
A GAROTA OCIDENTAL - ENTRE O CORAÇÃO E A TRADIÇÃO (Noces)
Certos filmes se fazem necessários menos por suas implicações estéticas e mais por sua necessidade de mostrar ao mundo certas injustiças sociais. Afinal, vivemos na era da informação e certas coisas que a mulher tem suportado durante séculos e séculos precisam ser, a princípio, conhecido de todos, para que então algo possa ser feito, mesmo em se tratando de uma cultura muito resistente, que é a cultura muçulmana, que se subdivide em variados povos, etnias e crenças, mas que em qualquer lugar que se vá, vemos a mesma situação que coloca a mulher como a que mais sofre violência, abuso e falta de liberdade.
No caso de A GAROTA OCIDENTAL - ENTRE O CORAÇÃO E A TRADIÇÃO (2016), de Stephan Streker, somos apresentados à história de Zahira (Lina El Arabi), uma jovem paquistanesa que é obrigada pela tradição familiar a escolher um homem paquistanês, mesmo morando em uma moderna cidade belga e bastante disposta a se opor às vontades de sua família. Para piorar ainda mais a situação da pobre moça, ela está grávida de um rapaz que não quer assumir a paternidade. Ela tenta, em algum momento, fazer o aborto, mas é impedida por sua consciência. Ela pede para que o procedimento seja interrompido.
Um dos grandes méritos do filme é nos colocar no lugar de Zahira, já que desde o começo do filme sentimos uma angústia que permanece até o fim da projeção. Aliás, que permanece um bom tempo depois que os créditos sobem e voltamos às nossas casas, um bocado tristes pela situação de uma entre tantas mulheres paquistanesas (ou de outra nacionalidade mesmo) que acabam tendo o mesmo fim. E será que a culpa do destino de Zahira (que eu não disse qual foi) é da religião e da cultura, que aprisionam as pessoas, ou há algo que se aproxima de maldade pura nisso? Sei que no que é mostrado no filme é uma questão complexa, mas não deixamos de fazer esse tipo de questionamento.
O filme tem uma aproximação tão forte com a protagonista que quase se aproxima de um registro documental, com uso de câmera na mão em diversos momentos. Mesmo os momentos em que Zahira tenta se libertar, fugindo de casa ou mesmo da cidade, com um rapaz que diz gostar dela, parece inquietante, pois há sempre uma impressão de algo muito ruim que está prestes a acontecer. Isso demonstra a força da direção de Streker, este cineasta belga que está tendo sua primeira obra lançada no Brasil em circuito comercial. E talvez tenha chamado atenção dos distribuidores justamente pela temática mais apelativa, no bom sentido do termo.
No caso de A GAROTA OCIDENTAL - ENTRE O CORAÇÃO E A TRADIÇÃO (2016), de Stephan Streker, somos apresentados à história de Zahira (Lina El Arabi), uma jovem paquistanesa que é obrigada pela tradição familiar a escolher um homem paquistanês, mesmo morando em uma moderna cidade belga e bastante disposta a se opor às vontades de sua família. Para piorar ainda mais a situação da pobre moça, ela está grávida de um rapaz que não quer assumir a paternidade. Ela tenta, em algum momento, fazer o aborto, mas é impedida por sua consciência. Ela pede para que o procedimento seja interrompido.
Um dos grandes méritos do filme é nos colocar no lugar de Zahira, já que desde o começo do filme sentimos uma angústia que permanece até o fim da projeção. Aliás, que permanece um bom tempo depois que os créditos sobem e voltamos às nossas casas, um bocado tristes pela situação de uma entre tantas mulheres paquistanesas (ou de outra nacionalidade mesmo) que acabam tendo o mesmo fim. E será que a culpa do destino de Zahira (que eu não disse qual foi) é da religião e da cultura, que aprisionam as pessoas, ou há algo que se aproxima de maldade pura nisso? Sei que no que é mostrado no filme é uma questão complexa, mas não deixamos de fazer esse tipo de questionamento.
O filme tem uma aproximação tão forte com a protagonista que quase se aproxima de um registro documental, com uso de câmera na mão em diversos momentos. Mesmo os momentos em que Zahira tenta se libertar, fugindo de casa ou mesmo da cidade, com um rapaz que diz gostar dela, parece inquietante, pois há sempre uma impressão de algo muito ruim que está prestes a acontecer. Isso demonstra a força da direção de Streker, este cineasta belga que está tendo sua primeira obra lançada no Brasil em circuito comercial. E talvez tenha chamado atenção dos distribuidores justamente pela temática mais apelativa, no bom sentido do termo.
domingo, julho 09, 2017
CERTAS MULHERES (Certain Women)
Entre os filmes que não chegaram aos cinemas brasileiros, CERTAS MULHERES (2016), de Kelly Reichardt, talvez seja o que mais fez falta na telona. Não que seja uma obra de muitos planos gerais ou coisas do tipo. É justamente essa aproximação mais requerida entre personagem e espectador que seria importante na telona. Porém, na falta de uma telona, ver o filme com o espírito tranquilo, numa madrugada dessas, também funciona que é uma beleza. Inclusive para nos deixar desconfortáveis com suas histórias, sendo que a minha preferida e mais impactante, no sentido de trazer dor e angústia para o lado de cá, é a que traz Kristen Stewart como uma professora de Direito e Lily Gladstone como a vaqueira de jeito simples que fica encantada com aquela jovem mulher que leva quatro horas para chegar até aquela cidadezinha.
A beleza de cada palavra não dita, os momentos em que os olhares se encontram e principalmente não se encontram – Kristen é ótima em fazer o tipo tímida e imaginem ela dentro de uma sala de aula, toda desconcertada –, tudo neste terceiro segmento contribui para que seja uma leve e gentil facada no peito. E este segmento é o que mais torna a obra de Reichardt valiosa e muito parecida com alguns contos modernistas que lidam com problemas simples e do dia a dia de certas mulheres. É possível se lembrar de Clarice Lispector, Katherine Mansfield ou Virginia Woolf. O que, aliás, é muito bom, levando em consideração que muitas vezes o cinema parece estar um pouco parado no tempo, em sua estrutura convencional.
As demais histórias, ainda que menos impactantes, não deixam de ter também o seu valor, principalmente pela força das atrizes que as interpretam. A primeira traz a grande Laura Dern como uma advogada que tenta ajudar um cliente frustrado. É a história em que mais coisas acontecem, ainda que o tom seja exatamente o oposto de um filme de plot, levando em consideração que há uma situação envolvendo polícia e refém.
Numa dessas histórias em que nada parece estar acontecendo, vemos Michelle Williams fazendo um papel bem distinto do visto em MANCHESTER À BEIRA-MAR. O tom é mais sutil, mas ela traz igualmente aquele sorriso sem graça que lhe caracteriza há algum tempo. Ela está acampando com o marido e a filha adolescente e percebemos que há um atrito entre ela e a filha. Mas o que mais torna a história incômoda é a conversa que ela tem com um senhor que mora isolado. Ela deseja comprar dele umas pedras que remontam a tempos históricos dos Estados Unidos. O velho senhor não parece muito feliz com a proposta, embora não negue doar as pedras. No fim do segmento, fica aquele gosto amargo. Mal sabíamos que um amargo maior ainda estaria por vir no melhor segmento, o que traz a já citada história estrelada por Kristen Stewart, que está cada vez mais se mostrado uma atriz de primeira grandeza. De dar gosto mesmo.
Quanto à diretora Kelly Reichardt (vou demorar um pouco para aprender a escrever o nome dela) , é bem o caso de ir atrás de outras de suas obras, até porque este é apenas o sexto longa-metragem dela. Um deles, inclusive, WENDY AND LUCY (2008), traz Michelle Williams como protagonista.
A beleza de cada palavra não dita, os momentos em que os olhares se encontram e principalmente não se encontram – Kristen é ótima em fazer o tipo tímida e imaginem ela dentro de uma sala de aula, toda desconcertada –, tudo neste terceiro segmento contribui para que seja uma leve e gentil facada no peito. E este segmento é o que mais torna a obra de Reichardt valiosa e muito parecida com alguns contos modernistas que lidam com problemas simples e do dia a dia de certas mulheres. É possível se lembrar de Clarice Lispector, Katherine Mansfield ou Virginia Woolf. O que, aliás, é muito bom, levando em consideração que muitas vezes o cinema parece estar um pouco parado no tempo, em sua estrutura convencional.
As demais histórias, ainda que menos impactantes, não deixam de ter também o seu valor, principalmente pela força das atrizes que as interpretam. A primeira traz a grande Laura Dern como uma advogada que tenta ajudar um cliente frustrado. É a história em que mais coisas acontecem, ainda que o tom seja exatamente o oposto de um filme de plot, levando em consideração que há uma situação envolvendo polícia e refém.
Numa dessas histórias em que nada parece estar acontecendo, vemos Michelle Williams fazendo um papel bem distinto do visto em MANCHESTER À BEIRA-MAR. O tom é mais sutil, mas ela traz igualmente aquele sorriso sem graça que lhe caracteriza há algum tempo. Ela está acampando com o marido e a filha adolescente e percebemos que há um atrito entre ela e a filha. Mas o que mais torna a história incômoda é a conversa que ela tem com um senhor que mora isolado. Ela deseja comprar dele umas pedras que remontam a tempos históricos dos Estados Unidos. O velho senhor não parece muito feliz com a proposta, embora não negue doar as pedras. No fim do segmento, fica aquele gosto amargo. Mal sabíamos que um amargo maior ainda estaria por vir no melhor segmento, o que traz a já citada história estrelada por Kristen Stewart, que está cada vez mais se mostrado uma atriz de primeira grandeza. De dar gosto mesmo.
Quanto à diretora Kelly Reichardt (vou demorar um pouco para aprender a escrever o nome dela) , é bem o caso de ir atrás de outras de suas obras, até porque este é apenas o sexto longa-metragem dela. Um deles, inclusive, WENDY AND LUCY (2008), traz Michelle Williams como protagonista.
sexta-feira, julho 07, 2017
HOMEM-ARANHA – DE VOLTA AO LAR (Spider-Man – Homecoming)
O novo filme do Homem-Aranha chega, dessa vez, em parceria com os estúdios Marvel, o que, em parte, é algo bom. O ideal seria se todos os heróis da Marvel pudessem fazer parte desse Universo Compartilhado, embora toda essa coisa tenha uma aspecto comercial que acaba exigindo do espectador um conhecimento de todos os outros filmes do estúdio. Afinal, todos eles estão conectados.
No caso de HOMEM-ARANHA – DE VOLTA AO LAR (2017), do pouco conhecido Jon Watts, a principal conexão é com CAPITÃO-AMÉRICA – GUERRA CIVIL (2016), que trouxe a primeira aparição do personagem dentro desse universo. E o interessante é que a intenção é mostrar um Aranha/Peter Parker mais próximo das histórias de Stan Lee e Steve Ditko, ou seja, um adolescente desajeitado e com pouca popularidade na escola.
Ao mesmo tempo, há uma simbiose com a versão Ultimate do personagem, já que temos aqui a figura de um melhor amigo, Ned (Jacob Batalon), um gordinho trazido da versão de um universo alternativo criada pelo roteirista Brian Michael Bendis para o personagem. Como Ned é um personagem simpático, não deixa de ser bem-vindo. O problema é que ele, assim como tantos outros elementos do filme, são feitos para fazer o público rir e não são eficientes nesse sentido. O que, aliás, é quase uma constante em grande parte dos filmes da Marvel, mas que aqui sofre muito mais com esse problema.
Só para efeito de comparação, MULHER-MARAVILHA, de Patty Jenkins, sem se esforçar muito para fazer o público rir, consegue fazer isso com muito mais naturalidade e alcança um público muito maior. Sabemos que são dois estúdios diferentes e rivais, mas com a distância de lançamento tão curta entre os dois filmes, fica inevitável a comparação, levando em consideração esse quesito pouco ou nada eficiente. Aliás, também não funcionam em quase nenhum momento as cenas de ação, sem impacto.
Então, o que afinal funciona em DE VOLTA AO LAR? Funciona Michael Keaton no papel do Abutre. Genial, aliás, terem escalado o ator, logo depois de ele ter interpretado um super-herói alado, Birdman, no premiado filme de Alejandro González Iñárritu. Sem falar que Keaton já foi o Batman também. Aqui seu personagem está presente duas das poucas cenas que realmente funcionam bem no filme: a cena da visita à casa de Liz (Laura Harrier), o interesse amoroso de Peter; e a cena no carro, em conversa com Peter. Ambas trazem elementos de suspense que até então o filme não havia explorado. Vendo a filmografia do diretor, temos pelo menos dois filmes dos gêneros suspense e terror, CLOWN (2014) e A VIATURA (2015), e é bem provável que isso seja o forte de Watts.
Então, é possível que estejamos diante de um jovem diretor talentoso que, tendo que se submeter às regras de um grande estúdio para fazer um filme de ação sem tempo para o público pensar ou sentir, prejudica a si e à sua realização milionária. A ideia da realização não é ruim. Vendo os créditos finais, com imagens de desenhos parecidos com os de uma criança e ao som de "Blitzkrieg Bop", dos Ramones, nota-se que a vontade de voltar às origens do herói falou forte, embora, paradoxalmente isso tenha que conviver com a alta tecnologia do traje criado por Tony Stark (Robert Downey Jr.), o que faz com que às vezes pensamos estar vendo um filme de um Homem de Ferro mais desastrado.
Mas isso não deveria ser um obstáculo. Afinal, as aparições do Homem de Ferro são apenas pontuais, e o Homem-Aranha muitas vezes procura enfrentar situações mais corriqueiras do seu bairro, como ladrões pouco perigosos ou coisas do tipo. A luta com o Abutre, que demora tempo demais para acontecer, é, portanto, seu batismo de fogo. Há outros vilões conhecidos dos fãs do herói aracnídeo no filme, mas suas aparições são mais discretas e, quem sabe, funcionem como um aperitivo para um segundo filme.
No mais, também podemos ver como um acerto a controversa escalação de Marisa Tomei como a Tia May. É inusitado ver uma mulher tão jovem e bonita fazendo o papel de uma personagem clássica representada nos quadrinhos tradicionalmente como uma senhora idosa. A May de Marisa Tomei funciona até mesmo para que o mulherengo do Tony Stark lhe faça uma piada/elogio em uma cena no início do filme. Outras opções curiosas envolvem uma cota de etnias que muda a caracterização de alguns personagens de apoio. De todo modo, o mais importante é que os produtores consigam acertar de verdade no segundo filme. Senão, os pedidos de "volta, Sam Raimi!" só tenderão a aumentar.
No caso de HOMEM-ARANHA – DE VOLTA AO LAR (2017), do pouco conhecido Jon Watts, a principal conexão é com CAPITÃO-AMÉRICA – GUERRA CIVIL (2016), que trouxe a primeira aparição do personagem dentro desse universo. E o interessante é que a intenção é mostrar um Aranha/Peter Parker mais próximo das histórias de Stan Lee e Steve Ditko, ou seja, um adolescente desajeitado e com pouca popularidade na escola.
Ao mesmo tempo, há uma simbiose com a versão Ultimate do personagem, já que temos aqui a figura de um melhor amigo, Ned (Jacob Batalon), um gordinho trazido da versão de um universo alternativo criada pelo roteirista Brian Michael Bendis para o personagem. Como Ned é um personagem simpático, não deixa de ser bem-vindo. O problema é que ele, assim como tantos outros elementos do filme, são feitos para fazer o público rir e não são eficientes nesse sentido. O que, aliás, é quase uma constante em grande parte dos filmes da Marvel, mas que aqui sofre muito mais com esse problema.
Só para efeito de comparação, MULHER-MARAVILHA, de Patty Jenkins, sem se esforçar muito para fazer o público rir, consegue fazer isso com muito mais naturalidade e alcança um público muito maior. Sabemos que são dois estúdios diferentes e rivais, mas com a distância de lançamento tão curta entre os dois filmes, fica inevitável a comparação, levando em consideração esse quesito pouco ou nada eficiente. Aliás, também não funcionam em quase nenhum momento as cenas de ação, sem impacto.
Então, o que afinal funciona em DE VOLTA AO LAR? Funciona Michael Keaton no papel do Abutre. Genial, aliás, terem escalado o ator, logo depois de ele ter interpretado um super-herói alado, Birdman, no premiado filme de Alejandro González Iñárritu. Sem falar que Keaton já foi o Batman também. Aqui seu personagem está presente duas das poucas cenas que realmente funcionam bem no filme: a cena da visita à casa de Liz (Laura Harrier), o interesse amoroso de Peter; e a cena no carro, em conversa com Peter. Ambas trazem elementos de suspense que até então o filme não havia explorado. Vendo a filmografia do diretor, temos pelo menos dois filmes dos gêneros suspense e terror, CLOWN (2014) e A VIATURA (2015), e é bem provável que isso seja o forte de Watts.
Então, é possível que estejamos diante de um jovem diretor talentoso que, tendo que se submeter às regras de um grande estúdio para fazer um filme de ação sem tempo para o público pensar ou sentir, prejudica a si e à sua realização milionária. A ideia da realização não é ruim. Vendo os créditos finais, com imagens de desenhos parecidos com os de uma criança e ao som de "Blitzkrieg Bop", dos Ramones, nota-se que a vontade de voltar às origens do herói falou forte, embora, paradoxalmente isso tenha que conviver com a alta tecnologia do traje criado por Tony Stark (Robert Downey Jr.), o que faz com que às vezes pensamos estar vendo um filme de um Homem de Ferro mais desastrado.
Mas isso não deveria ser um obstáculo. Afinal, as aparições do Homem de Ferro são apenas pontuais, e o Homem-Aranha muitas vezes procura enfrentar situações mais corriqueiras do seu bairro, como ladrões pouco perigosos ou coisas do tipo. A luta com o Abutre, que demora tempo demais para acontecer, é, portanto, seu batismo de fogo. Há outros vilões conhecidos dos fãs do herói aracnídeo no filme, mas suas aparições são mais discretas e, quem sabe, funcionem como um aperitivo para um segundo filme.
No mais, também podemos ver como um acerto a controversa escalação de Marisa Tomei como a Tia May. É inusitado ver uma mulher tão jovem e bonita fazendo o papel de uma personagem clássica representada nos quadrinhos tradicionalmente como uma senhora idosa. A May de Marisa Tomei funciona até mesmo para que o mulherengo do Tony Stark lhe faça uma piada/elogio em uma cena no início do filme. Outras opções curiosas envolvem uma cota de etnias que muda a caracterização de alguns personagens de apoio. De todo modo, o mais importante é que os produtores consigam acertar de verdade no segundo filme. Senão, os pedidos de "volta, Sam Raimi!" só tenderão a aumentar.
quarta-feira, julho 05, 2017
O TURISTA ACIDENTAL (The Accidental Tourist)
Considero 1989 o ano do início da minha cinefilia, quando comecei a ir ao cinema toda semana. Foi no início deste ano que comecei a comprar a então ótima revista SET – lembro da primeira que comprei, com o Clint Eastwood na capa, em uma matéria sobre o último filme da série Dirty Harry. E foi nessa época também que surgiram os candidatos ao Oscar, que pra mim foram marcantes até hoje, já que é a única edição que eu lembro de todo os candidatos à categoria principal. Junto com O TURISTA ACIDENTAL (1988), de Lawrence Kasdan, concorriam LIGAÇÕES PERIGOSAS, de Stephen Frears, MISSISSIPI EM CHAMAS, de Alan Parker, UMA SECRETÁRIA DE FUTURO, de Mike Nichols, e o grande vencedor da estatueta, RAIN MAN, de Barry Levinson.
O TURISTA ACIDENTAL era o único que eu não tinha visto por completo, mas tinha uma boa recordação dos trechos que vi numa madrugada na televisão. Vai saber o motivo de eu não ter tentado vê-lo integralmente até a noite de ontem. Mas, antes tarde do que nunca. E foi muito gostoso entrar nessa máquina do tempo e voltar a esse momento tão especial para mim e também ter a chance de ver mais um belo filme de Kasdan, um dos cineastas mais interessantes dos anos 1980, e também um grande roteirista, que é como ele costuma ser lembrado hoje.
O TURISTA ACIDENTAL é mais um acerto de um cara que começou chutando a porta na direção, com o neonoir quente CORPOS ARDENTES (1981), que também contava com o casal William Hurt e Kathleen Turner. Em O TURISTA ACIDENTAL, porém, a participação de Kathleen é bem menor do que se imagina, levando em consideração o nome dela aparecer em segundo lugar nos créditos, antes de Geena Davis, que aparece bem mais e que levou o Oscar de atriz coadjuvante. Aliás, foi um desses casos de atriz coadjuvante que não engrenou em Hollywood, por mais que neste filme sua personagem seja mesmo adorável em sua estranheza.
Temos aqui uma narrativa que fala de um casal que sofre há mais de um ano a perda do filho. O homem é um escritor de livros de viagem (Hurt). Logo no começo, ele sofre com a surpresa da esposa (Turner), que quer o divórcio, pois não consegue mais ver sentido na relação dos dois depois do ocorrido e depois que a depressão tomou conta dela. Ele fica sem chão, embora o personagem de Hurt já seja um tanto sem entusiasmo desde o começo da narrativa. Aliás, esse tipo de personagem costuma combinar com o ator.
O interessante de O TURISTA ACIDENTAL é que o filme não se atém a esse aspecto do fundo do poço dos personagens. Trata-se mais de uma história de reerguimento da vida de um homem, principalmente depois que ele conhece outra mulher (Davis), que é completamente o oposto dele, no que se refere a uma abordagem. Ela, com muito bom humor e bastante transparente; Ele, por sua vez, é o agente complicador da relação. Relação que fica mais bonita ainda quando entra em cena o filhinho dela.
Outra coisa bacana de assistir a esses filmes dos anos 1980 e 90 é ver alguns atores mais jovens. Aqui temos Bill Pullman, dez anos antes de estrelar a obra-prima A ESTRADA PERDIDA, de David Lynch. Em O TURISTA ACIDENTAL ele é o jovem editor que se apaixona pela irmã do personagem de Hurt. Vê-se, mais uma vez, que o filme brinca com essa coisa de unir tipos diferentes, saídos de realidades distintas, fazendo par com pessoas estranhas ou geralmente não muito benquistas por uma sociedade que vê mais a superfície. E o filme de Kasdan trata isso com tanta delicadeza que chega a encher o coração ver aquele final, tão sutil, mas ao mesmo tempo tão carregado de sentimento.
O TURISTA ACIDENTAL era o único que eu não tinha visto por completo, mas tinha uma boa recordação dos trechos que vi numa madrugada na televisão. Vai saber o motivo de eu não ter tentado vê-lo integralmente até a noite de ontem. Mas, antes tarde do que nunca. E foi muito gostoso entrar nessa máquina do tempo e voltar a esse momento tão especial para mim e também ter a chance de ver mais um belo filme de Kasdan, um dos cineastas mais interessantes dos anos 1980, e também um grande roteirista, que é como ele costuma ser lembrado hoje.
O TURISTA ACIDENTAL é mais um acerto de um cara que começou chutando a porta na direção, com o neonoir quente CORPOS ARDENTES (1981), que também contava com o casal William Hurt e Kathleen Turner. Em O TURISTA ACIDENTAL, porém, a participação de Kathleen é bem menor do que se imagina, levando em consideração o nome dela aparecer em segundo lugar nos créditos, antes de Geena Davis, que aparece bem mais e que levou o Oscar de atriz coadjuvante. Aliás, foi um desses casos de atriz coadjuvante que não engrenou em Hollywood, por mais que neste filme sua personagem seja mesmo adorável em sua estranheza.
Temos aqui uma narrativa que fala de um casal que sofre há mais de um ano a perda do filho. O homem é um escritor de livros de viagem (Hurt). Logo no começo, ele sofre com a surpresa da esposa (Turner), que quer o divórcio, pois não consegue mais ver sentido na relação dos dois depois do ocorrido e depois que a depressão tomou conta dela. Ele fica sem chão, embora o personagem de Hurt já seja um tanto sem entusiasmo desde o começo da narrativa. Aliás, esse tipo de personagem costuma combinar com o ator.
O interessante de O TURISTA ACIDENTAL é que o filme não se atém a esse aspecto do fundo do poço dos personagens. Trata-se mais de uma história de reerguimento da vida de um homem, principalmente depois que ele conhece outra mulher (Davis), que é completamente o oposto dele, no que se refere a uma abordagem. Ela, com muito bom humor e bastante transparente; Ele, por sua vez, é o agente complicador da relação. Relação que fica mais bonita ainda quando entra em cena o filhinho dela.
Outra coisa bacana de assistir a esses filmes dos anos 1980 e 90 é ver alguns atores mais jovens. Aqui temos Bill Pullman, dez anos antes de estrelar a obra-prima A ESTRADA PERDIDA, de David Lynch. Em O TURISTA ACIDENTAL ele é o jovem editor que se apaixona pela irmã do personagem de Hurt. Vê-se, mais uma vez, que o filme brinca com essa coisa de unir tipos diferentes, saídos de realidades distintas, fazendo par com pessoas estranhas ou geralmente não muito benquistas por uma sociedade que vê mais a superfície. E o filme de Kasdan trata isso com tanta delicadeza que chega a encher o coração ver aquele final, tão sutil, mas ao mesmo tempo tão carregado de sentimento.
segunda-feira, julho 03, 2017
Z – A CIDADE PERDIDA (The Lost City of Z)
Para um filme de James Gray, não deixa de sentirmos um tantinho de desapontamento com este novo Z – A CIDADE PERDIDA (2016), por mais que seja, no fim das contas, um trabalho que possa se beneficiar com o tempo, como acontece com muitas outras obras de grandes cineastas. Isso é o meu lado fã de James Gray falando forte e torcendo para que não seja um sinal de um declínio na excelência que se via em seus filmes desde o primeiro longa, FUGA PARA ODESSA (1994).
Como tema comum a outros títulos do diretor está a questão da fuga (ou tentativa de fuga) da família por parte do protagonista. Isso se vê de forma forte em AMANTES (2008), em que a família é vista como algo opressivo. Mas Z – A CIDADE PERDIDA acaba trilhando um caminho da grandiloquência épica que ERA UMA VEZ EM NOVA YORK (2013) já sinalizava, com uma história um tanto intimista, mas contada em tom grandioso e trágico.
Os horizontes geográficos são ampliados em Z, que nos apresenta a Percy Fawcett (Charlie Hunnam), um coronel do exército britânico vivido que desapareceu na selva amazônica nos anos 1920 à procura de uma cidade inexplorada que renderia para ele e para o Império Britânico um feito inédito. Na primeira expedição ele quase morre sob o ataque de uma tribo de índios canibais, mas tem a sorte de conseguir dialogar com os nativos e de voltar para casa, ainda que por pouco tempo, dizendo, junto com seu fiel escudeiro Henry Costin, vivido por um irreconhecível Robert Pattinson, que tinha motivos mais do que suficientes para retornar àquele lugar perigoso, a fim de encontrar enfim a tal cidade perdida.
O que chega a incomodar um pouco é mais uma vez a performance um tanto apagada de Sienna Miller, como a esposa de Fawcett. Ela é mais uma vez a esposa do sujeito que vive perigosamente, mas que continua cuidando da casa e dos filhos. Esse papel lembrou o de SNIPER AMERICANO, de Clint Eastwood. Não sei o que acontece com a atriz, mas ela costuma ser tão bela quanto esquecível. E neste filme de Gray não é diferente.
Por outro lado, o jovem Tom Holland, que será mais famoso a partir desta semana como o novo Peter Parker, está muito bem no papel do filho que tem ao mesmo tempo raiva do pai (por sua ausência) e uma admiração e vontade de seguir seus passos como explorador. Sua passagem pelo filme é breve, mas marcante. Ainda mais porque ele entra em um momento em que a narrativa parece estar cansando e funciona para dar um novo gás em seu momento final. Vale dizer que o melhor é ver Z sem saber nada sobre a história da vida de Fawcett, até para aproveitar também os momentos de surpresa, tensão e aventura que o filme proporciona.
Como tema comum a outros títulos do diretor está a questão da fuga (ou tentativa de fuga) da família por parte do protagonista. Isso se vê de forma forte em AMANTES (2008), em que a família é vista como algo opressivo. Mas Z – A CIDADE PERDIDA acaba trilhando um caminho da grandiloquência épica que ERA UMA VEZ EM NOVA YORK (2013) já sinalizava, com uma história um tanto intimista, mas contada em tom grandioso e trágico.
Os horizontes geográficos são ampliados em Z, que nos apresenta a Percy Fawcett (Charlie Hunnam), um coronel do exército britânico vivido que desapareceu na selva amazônica nos anos 1920 à procura de uma cidade inexplorada que renderia para ele e para o Império Britânico um feito inédito. Na primeira expedição ele quase morre sob o ataque de uma tribo de índios canibais, mas tem a sorte de conseguir dialogar com os nativos e de voltar para casa, ainda que por pouco tempo, dizendo, junto com seu fiel escudeiro Henry Costin, vivido por um irreconhecível Robert Pattinson, que tinha motivos mais do que suficientes para retornar àquele lugar perigoso, a fim de encontrar enfim a tal cidade perdida.
O que chega a incomodar um pouco é mais uma vez a performance um tanto apagada de Sienna Miller, como a esposa de Fawcett. Ela é mais uma vez a esposa do sujeito que vive perigosamente, mas que continua cuidando da casa e dos filhos. Esse papel lembrou o de SNIPER AMERICANO, de Clint Eastwood. Não sei o que acontece com a atriz, mas ela costuma ser tão bela quanto esquecível. E neste filme de Gray não é diferente.
Por outro lado, o jovem Tom Holland, que será mais famoso a partir desta semana como o novo Peter Parker, está muito bem no papel do filho que tem ao mesmo tempo raiva do pai (por sua ausência) e uma admiração e vontade de seguir seus passos como explorador. Sua passagem pelo filme é breve, mas marcante. Ainda mais porque ele entra em um momento em que a narrativa parece estar cansando e funciona para dar um novo gás em seu momento final. Vale dizer que o melhor é ver Z sem saber nada sobre a história da vida de Fawcett, até para aproveitar também os momentos de surpresa, tensão e aventura que o filme proporciona.
sábado, julho 01, 2017
DUAS GAROTAS ROMÂNTICAS (Les Demoiselles de Rochefort)
Que sorte a minha poder ver no cinema duas obras fundamentais de Jacques Demy, ainda que com um espaçamento considerável. Minha experiência com OS GUARDA-CHUVAS DO AMOR (1964) foi tão intensa que alçou o filme a uma categoria muito difícil para alguém que já tem quase 30 anos de cinefilia: em recente lista solicitada pelo amigo Chico Fireman para uma enquete em seu belo blog, ele pediu a várias pessoas que listassem seus 20 filmes favoritos de todos os tempos. Nem pensei duas vezes em incluir o premiado musical de Demy entre eles.
Diferente da produção romântica vencedora da Palma de Ouro em Cannes, o filme seguinte de Demy é muito mais solar, quase que como um contraponto ao anterior. Se OS GUARDA-CHUVAS fez milhões de pessoas chorarem com o drama da separação de um casal, DUAS GAROTAS ROMÂNTICAS (1967) foi feito como uma celebração da vida e dos amores. E ainda mais devedor dos musicais de Hollywood, com direito até mesmo a uma participação muito especial de Gene Kelly. E que bom que é ver Kelly em cena neste filme!
Ver DUAS GAROTAS ROMÂNTICAS pela primeira vez neste momento é também constatar o quanto LA LA LAND – CANTANDO ESTAÇÕES, de Damien Chazelle, bebeu da fonte do filme de Demy. A primeira cena, com vários carros parados antes de entrar na cidade de Rochefort, é bem similar à vista em LA LA LAND. Mas se o filme de Chazelle é feito para abarcar as quatro estações e diversos estados de espírito, DUAS GAROTAS ROMÂNTICAS é puro verão, com muita luz e muitas cores, e muita gente dançando como se as coisas ruins do mundo não existissem. Aliás, a guerra até é citada, mas aquela pequena cidade funciona como um oásis de felicidade, por mais que as pessoas prefiram sair de lá e ir para Paris. Ali é só um porto, onde os mais jovens não devem se demorar muito.
Na segunda de três colaborações com Jacques Demy – a terceira seria em PELE DE ASNO (1970) –, Catherine Deneuve está muito à vontade no papel de uma das talentosas irmãs que moram em Rochefort à procura do amor perfeito. A outra é a irmã de Deneuve, Françoise Dorléac, que teve carreira curta. Ela morreu em um acidente de carro em Nice com apenas 25 anos justamente no ano de lançamento de DUAS GAROTAS ROMÂNTICAS, o que não deixa de ser uma nota muito triste para se falar de um filme que exalta tanto a alegria.
Este trabalho de Demy também conta com a excepcional música de Michel Legrand, que tanto emocionou em OS GUARDA-CHUVAS DO AMOR. Aqui, seu desafio é sair das lágrimas do filme anterior e partir para uma felicidade contagiante, e dessa vez tentando emular um pouco mais o espírito dos musicais americanos. O trabalho de coreografia, pelo menos, é bem parecido e sabemos o quanto os franceses foram (e são) admiradores dos cineastas americanos por mais diferenças que tenham entre si.
Em um momento em que os musicais estavam chegando ao fim em Hollywood (com o advento da contracultura era natural que isso acontecesse), Demy presta um tributo lindo ao gênero, fazendo algo que os americanos achariam imperfeito, já que seus bailarinos não têm a mesma precisão dos vistos em musicais americanos. Essa imperfeição, no entanto, faz parte do charme do filme, e acaba lembrando outro musical por assim dizer imperfeito, o belo TODOS DIZEM EU TE AMO, de Woody Allen, feito cerca de 30 anos depois.
Diferente da produção romântica vencedora da Palma de Ouro em Cannes, o filme seguinte de Demy é muito mais solar, quase que como um contraponto ao anterior. Se OS GUARDA-CHUVAS fez milhões de pessoas chorarem com o drama da separação de um casal, DUAS GAROTAS ROMÂNTICAS (1967) foi feito como uma celebração da vida e dos amores. E ainda mais devedor dos musicais de Hollywood, com direito até mesmo a uma participação muito especial de Gene Kelly. E que bom que é ver Kelly em cena neste filme!
Ver DUAS GAROTAS ROMÂNTICAS pela primeira vez neste momento é também constatar o quanto LA LA LAND – CANTANDO ESTAÇÕES, de Damien Chazelle, bebeu da fonte do filme de Demy. A primeira cena, com vários carros parados antes de entrar na cidade de Rochefort, é bem similar à vista em LA LA LAND. Mas se o filme de Chazelle é feito para abarcar as quatro estações e diversos estados de espírito, DUAS GAROTAS ROMÂNTICAS é puro verão, com muita luz e muitas cores, e muita gente dançando como se as coisas ruins do mundo não existissem. Aliás, a guerra até é citada, mas aquela pequena cidade funciona como um oásis de felicidade, por mais que as pessoas prefiram sair de lá e ir para Paris. Ali é só um porto, onde os mais jovens não devem se demorar muito.
Na segunda de três colaborações com Jacques Demy – a terceira seria em PELE DE ASNO (1970) –, Catherine Deneuve está muito à vontade no papel de uma das talentosas irmãs que moram em Rochefort à procura do amor perfeito. A outra é a irmã de Deneuve, Françoise Dorléac, que teve carreira curta. Ela morreu em um acidente de carro em Nice com apenas 25 anos justamente no ano de lançamento de DUAS GAROTAS ROMÂNTICAS, o que não deixa de ser uma nota muito triste para se falar de um filme que exalta tanto a alegria.
Este trabalho de Demy também conta com a excepcional música de Michel Legrand, que tanto emocionou em OS GUARDA-CHUVAS DO AMOR. Aqui, seu desafio é sair das lágrimas do filme anterior e partir para uma felicidade contagiante, e dessa vez tentando emular um pouco mais o espírito dos musicais americanos. O trabalho de coreografia, pelo menos, é bem parecido e sabemos o quanto os franceses foram (e são) admiradores dos cineastas americanos por mais diferenças que tenham entre si.
Em um momento em que os musicais estavam chegando ao fim em Hollywood (com o advento da contracultura era natural que isso acontecesse), Demy presta um tributo lindo ao gênero, fazendo algo que os americanos achariam imperfeito, já que seus bailarinos não têm a mesma precisão dos vistos em musicais americanos. Essa imperfeição, no entanto, faz parte do charme do filme, e acaba lembrando outro musical por assim dizer imperfeito, o belo TODOS DIZEM EU TE AMO, de Woody Allen, feito cerca de 30 anos depois.
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