segunda-feira, outubro 28, 2019

O REI DA COMÉDIA (The King of Comedy)

Uma das coisas que têm me deixado triste nos últimos anos é o fato de eu não poder mais ler livros velhos. A laringite alérgica tem incomodado bastante e basta eu pegar um livro empoeirado ou com qualquer coisa que faça minha garganta formigar que eu já vejo que aquilo é material para eu manter distância. Para quem tem uma mini-biblioteca com livros de cinema e quadrinhos, entre outros gêneros (romances, poesia, livros sobre música, espiritualidade etc.), isso é motivo para algum desânimo.

Por isso estava demorando para ir lá no "quarto dos livros" buscar o meu livro de entrevistas do Martin Scorsese, por Richard Schickel, a propósito de ter assistido a O REI DA COMÉDIA (1982) recentemente, muito por culpa da turma do Cinema na Varanda, mas também, por tabela, pelo efeito CORINGA. E para poder ler com tranquilidade as páginas em que o diretor trata do filme eu as fotografei. Que bom que ao menos os dias de hoje oferecem algum tipo de compensação: certas facilidades que um smartphone pode trazer, por exemplo.

Quanto à entrevista, o que me incomodou foi que o aspecto desagradável que o filme passa em nos colocar no lugar do personagem de Robert De Niro também se apresenta em toda a entrevista do Scorsese. É como se ele tivesse guardado todo o mal estar provocado por aquele período das filmagens e o materializasse para aquele momento. O fato de ele ter lembrado de um momento das gravações, quando Jerry Lewis o chama para conversar e lhe pedir para avisar quando não precisar dele naquela gravação, e como isso o deixou um pouco transtornado, tudo isso tem a ver com o que o filme passa.

O conceito de vergonha alheia talvez nunca tenha sido tão bem explorado por outro diretor. E se nos filmes de gângster do diretor isso aparece poderosamente (basta lembrar da cena do Joe Pesci sendo lembrado que foi engraxate em OS BONS COMPANHEIROS), aqui essa vergonha é elevada à enésima potência. Não basta apenas o sujeito chegar com uma fitinha para visitar o seu ídolo e ser reconhecido como ótimo comediante a ponto de ser apresentado na televisão; é preciso que ele seja tão inconveniente que passa a humilhação de ser jogado para fora pelos seguranças.

O personagem me lembrou muito um colega meu, da época do estágio no Banco do Nordeste. O sujeito, com o tempo, foi cada vez mais trazendo delírios sobre ter tido contado com tal artista, ou diretor, ou produtor, que iria viajar para os Estados Unidos para fazer curso de cinema etc. Um dia, encontrei-o na rua e ele falou que tinha acabado de tomar um café com a Norah Jones. É o tipo de coisa que me deixa bem perturbado, já que todos nós temos sonhos e temos frustrações, mas há pessoas que não conseguem lidar com a realidade. Talvez ela seja dura demais para elas.

No caso de Rupert Pupkin, o personagem de De Niro, ele nem se mostra engraçado em momento algum. A montagem do filme também não oferece nenhum momento que justifique o fato de ele ser minimamente engraçado ou inteligente (a inteligência e o humor andam lado a lado). Talvez apenas quando ele não se dá conta de sua doença, ao conversar com fotos em tamanho grande de Liza Minelli e Jerry Langford (o personagem de Jerry Lewis). Mas talvez nem seja realmente engraçado, apenas patético.

No mais, impressionante ver o filme e notar o tanto de citações e referências explícitas usadas por Todd Phillips para compor o seu CORINGA. Ou seja, o que Phillips fez foi uma nova versão de O REI DA COMÉDIA, ainda que menos brilhante e mais explícito na violência - o filme de Scorsese, por sua vez, eu tinha a má recordação de que era mais tenso na cena do sequestro.

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VICE

Acabei gostando mais do que de A GRANDE APOSTA, talvez por já saber o que me esperava. E também por tratar de um assunto mais importante, no sentido de ter uma repercussão maior no mundo como um todo. E também por mostrar os bastidores do jogo de poder nas últimas décadas. Gosto da primeira metade do filme e acho que ele perde a força quando se aproxima do final. A gente fica um pouco esgotado do ritmo, aborrecido um pouco. E às vezes o diretor parece querer só mostrar que é inteligente ou engraçado. Se bem que eu até que gostei de algumas brincadeiras. Então tá valendo. Direção: Adam McKay. Ano: 2018.

A PÉ ELE NÃO VAI LONGE (Don't Worry, He Won't Get Far on Foot)

Gosto do filme, mas não sei por que Gus Van Sant optou por uma cinebiografia tão convencional. Por outro lado, a entrega emocional que ele pretende fazer do personagem vivido por Joaquin Phoenix é muito bonita. Não há o menor pudor em lidar com seus problemas, seus traumas, etc. Jonah Hill está quase tão bom quanto Phoenix aqui. E Rooney Mara está mais uma vez apaixonante. Ano: 2018.

DENTE CANINO (Kynodontas)

Depois de apreciar tanto os últimos filmes de Yorgos Lanthimos, é natural querer conhecer um pouco de sua obra pregressa. Acabei não entrando muito no clima deste DENTE CANINO, mas é um filme coerente com o que se veria depois. O diretor gosta de brincar com o patético e de mostrar histórias que lidam com regras bem bizarras. Ano: 2009.

domingo, outubro 27, 2019

QUATRO SÉRIES

Em outras circunstâncias eu teria facilmente dedicado um tempo para escrever textos maiores para cada uma destas séries, mas nem é preciso mais dizer os motivos. Então, vamos de texto menores, mas tentando não ser tão sucinto assim. São duas séries da HBO e duas da Netflix. Com a Netflix eu costumo ser bem mais seletivo, já que eles lançam muito lixo, mas de vez em quando temos obras que são ótimas e que merecem a nossa atenção até mais que as da HBO. Como tempo virou artigo de luxo e como eu sou mais consumidor de filmes do que de séries (pelo menos quero ser assim), as séries precisam ser bem escolhidas.

EUPHORIA - A PRIMEIRA TEMPORADA COMPLETA (Euphoria - The Complete First Season)

Que final foi esse dessa série, hein? Acabei me lembrando do final de NEON GENESIS EVANGELION. Tanto por ser sombrio quanto por ser diferente e cheio de simbolismos. Ainda tem o fato de nos confundir. Como fiquei bastante encantado com Jules, a personagem de Hunter Schafer, fui primeiro procurar saber mais sobre a atriz. Gostei, mas acabei entrando em um desses vídeos explicativos do final da série. Se eu tinha achado tudo muito estranho e menos atraente do que toda a temporada, essa teoria acabou fazendo com que a série ganhasse mais pontos. E Zendaya está ótima como a jovem viciada em drogas Rue. Gosto também de como ela narra as histórias dos outros jovens. E de como a série é capaz de criar um personagem tão odioso como o Nate (Jacob Elordi), representante comum de um tipo de homem homofóbico e que tem problemas com sua masculinidade, no caso, talvez um pouco herdado do pai. Trata-se de uma série importante também para entendermos um pouco mais essa nova geração, suas angústias e suas alegrias, embora a série foque mais nas angústias, nos infernos pessoais. Muito a fim de uma segunda temporada. Alguns momentos são dignos de lembrança: a cena de Rue com uma depressão tão imensa que não tem coragem de sair da cama para ir ao banheiro, segurando o xixi até ficar muito doente. Outra: Jules, ansiosa para descobrir o admirador secreto que tem lhe enviado mensagens pelo whatsapp, vai até lá se encontrar com ele. Outra: Rue totalmente desesperada para falar com a amiga depois que não consegue aguentar e lhe dá um beijo. Enfim, é uma série que só cresce no meu conceito. Dos oito episódios, cinco são dirigidos pelo criador, Sam Levinson. Ah, e quanto a Zendaya, se eu não havia gostado tanto dela como MJ nos filmes do Homem-Aranha, passei a amar esta menina extraordinária nesta série. Baita atriz.

MINDHUNTER - SEGUNDA TEMPORADA (Mindhunter - Season Two)

A segunda temporada mantém o bom nível da primeira, ainda que eu tenha sentido falta da atriz que interpretou a namorada de Holden (Jonathan Groff) na primeira (Hannah Gross). Simplesmente fazem de conta que a personagem nunca existiu, privando Holden de uma vida privada, ao contrário de seus parceiros Bill (Holt McCallany) e Wendy (Anna Torv). A pegada diferente desta nova temporada está menos nas entrevistas a assassinos seriais e mais no caso dos meninos desaparecidos em Atlanta, a história principal que os detetives do FBI terão que resolver, já que são eles os grandes especialistas no assunto. Em paralelo, há um caso envolvendo o filho pequeno de Bill e a inclusão de uma namorada para Wendy, que procura ser discreta na exposição de suas preferências sexuais. Ainda gosto bem mais da primeira, mas se essa série conseguir manter a constância, continuará sendo uma das melhores produções da Netflix. Quanto aos assassinos entrevistados, os que chamam a atenção nesta temporada são Charles Mason (vivido pelo mesmo ator que fez o personagem em ERA UMA VEZ EM... HOLLYWOOD) e o Filho de Sam. Não destaco nenhuma cena em particular, mas todas as sequências tensas que se passam em Atlanta são ótimas.

BIG LITTLE LIES - A SEGUNDA TEMPORADA COMPLETA (Big Little Lies - The Complete Second Season)

Pode até não ser tão boa quanto a primeira temporada, mas é nesta aqui que o amor que sentimos pelas personagens ganha força, se solidifica. Reese Witherspoon está maravilhosa, sua personagem ganha muito com uma situação dramática no lar e que acaba sendo um dos pontos altos da temporada. E aquilo que quase me fez chorar no final. E o que dizer do duelo de Celeste (Nicole Kidman) e Mary Louise (Meryl Streep)? Além de tenso e empolgante, traz um debate sério, sobre a agressão doméstica. A série aprofunda ainda mais o sentimento de sororidade que já se manifestava na primeira, já que aqui temos as cinco de Monterey, unidas por um segredo. Ainda achei que a personagem de Shailene Woodley ficou pequena e sem muita força em comparação com as demais. E Laura Dern é aquela força da natureza. Bom demais. Dos homens da série, como não são muitos, destaque, de longe, para o Ed (Adam Scott). Personagem que a gente respeita. Aguardemos uma possível terceira temporada. Difícil é juntar esse time de novo, hein? Haja grana e agendas que não conflitem. Momento de destaque: quando Ed descobre a traição de Madeline e as repercussões. Atriz de destaque: Meryl Streep como a odiosa sogra de Madeline, pronta para descobrir o que de fato aconteceu com o filho, morto em circunstâncias estranhas. No mais, David E. Kelley capricha nos textos.

BLACK MIRROR - QUINTA TEMPORADA (Black Mirror - Series 5)

A menos inspirada das temporadas de BLACK MIRROR, esta quinta tem, inclusive, um segmento que eu acho difícil de comprar deste o começo, embora seja divertido: "Rachel, Jack and Ashley Too". Exageram no vilanismo da tia da cantora pop (vivida por Miley Cyrus) e não gosto da solução que elas encontram para resolver o problema da rebeldia da cantora. Afinal, para fabricar uma cantora pop basta uma equipe de compositores boa. O melhor episódio é "Smithereens", e nem é pela inventividade no que se refere ao uso da tecnologia como elo de ligação de todos os capítulos. O tal aplicativo viciante acaba sendo apenas um detalhe em uma trama de suspense e tensão normal, ainda que bem conduzida. Já a história "Striking Vipers" lida com a questão da realidade virtual, e traz uma boa reflexão sobre sexo dentro de um ambiente usado principalmente para jogar. Não deixa de ser divertido ver os personagens questionando sua heterossexualidade. Uma pena ter caído tanto de qualidade, em comparação com a temporada anterior, que, inclusive, contou com o dobro de episódios. Parece que Charlie Brooker não está mais conseguindo ter tantas ideias boas como antes. Mesmo assim, para quem nunca viu a série, não ligue para o efeito-modinha e veja principalmente as demais temporadas - as primeiras não tiveram nenhum dinheiro da Netflix envolvido.

quinta-feira, outubro 24, 2019

CORINGA (Joker)

O tempo vai passando, o corpo cansando devido à dura labuta e eu me peguei hoje lendo textos meus escritos para o blog em 2010. Era um tempo em que eu também reclamava da falta de tempo, de prazos para cumprir etc., mas tinha uma disciplina maior de escrever algo que justificasse a ida diária dos leitores ao espaço. Infelizmente, não é o que tem acontecido nos últimos anos por uma série de fatores. O maior deles, creio que seja o cansaço de estar dando aula durante dois turnos e o corpo ter reclamado bastante disso. Como estou também fazendo musculação, um dos outros motivos é o cansaço da academia, principalmente após um longo dia de trabalho.

Estou devendo meus dois tostões sobre um dos filmes mais badalados do ano. Confesso que me deu até um pouco de preguiça de escrever e mesmo refletir sobre, por mais que eu veja no filme várias qualidades. CORINGA (2019), de Todd Philips, chamou a atenção desde os primeiros trailers, mas, mais ainda, quando venceu o Leão de Ouro em Veneza. Afinal, não é todo dia que um filme de super-herói (super-vilão, no caso) ganha o prêmio máximo de um festival que tem o arthouse como produto principal.

Mas a verdade é que CORINGA não é um filme de super-herói como outro. Na verdade, Phillips poderia muito bem ter utilizado a imagem de qualquer palhaço que não o arquiinimigo do Batman para contar a sua história, derivada de O REI DA COMÉDIA. Aliás, só revendo o filme de Martin Scorsese que eu percebi o quanto CORINGA é devedor. É quase um remake ou uma reinvenção, inclusive com a participação especial de Robert De Niro, desta vez em um papel inverso, o papel de um comediante e apresentador de televisão famoso, e não o perseguidor maluco. Quem não reviu O REI DA COMÉDIA, veja. É impressionante a semelhança.

Mas CORINGA tem um ar mais trágico, é mais violento, e o sofrimento do protagonista, vivido com brilhantismo por Joaquin Phoenix, é até um pouco além da conta. Afinal, não basta sofrer bullying e ser rejeitado, ele também é espancado duas vezes no início do filme, em sequências que querem trazer o espectador para um sentimento de solidariedade, embora, nesse sentido, não seja bem-sucedido.

Afinal, por mais que possa haver uma identificação do público com o personagem, o que o filme parece querer é justificar os atos do personagem. Não necessariamente na primeira vez que ele mata, na cena no metrô, mas nas sequências mais próximas do final.

Por outro lado, a estranheza de certas cenas que parecem tentar trazer um pouco de glamour ou no mínimo dignidade para o personagem é um de seus maiores trunfos, e também o que mais deixa o espectador sem entender as motivações do realizador, como se o psicopata tivesse todo o direito de ser alçado a herói, com direito a canções e danças que remetem à velha Hollywood. A famosa cena da escada é um desses momentos bizarros.

Mas o que fica forte mesmo na memória do espectador é a risada de Arthur Fleck, uma risada que sai da dor e vem nos momentos mais inapropriados, como quando ele quer chorar e não consegue parar de rir. Isso acontece pelo menos umas três vezes em momentos bastante tensos do filme. Isso gera um desconforto impressionante. CORINGA também tem o mérito de trazer riso do público minutos após um momento de violência brutal, como na cena com o anão no apartamento. Enfim, é possível mesmo que CORINGA seja essa obra extraordinária que tantos críticos andam afirmando. O tempo dirá.

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PROJETO GEMINI (Gemini Man)

Minha primeira experiência com high frame rate e em 3D. Muito interessante, mas acho que talvez a incompatibilidade com os novos aparelhos de projeção compliquem um pouco: às vezes gera má sincronia nos diálogos. Pelo menos foi o que aconteceu aqui, mesmo sendo numa sala ótima a que eu vi (uma XPlus da UCI). A trama é tão mais ou menos que imagina-se que ela tenha sido criada apenas depois da decisão de fazer um filme com a tal tecnologia e também de ter pensado os efeitos especiais de transposição de uma versão jovem do Will Smith. E ainda falham lá perto do final, com uns efeitos toscos. Mas gosto de um bocado de coisas do filme, desde os diálogos de filme de espionagem B, passando pela cena meio videogame com as motos, e os diálogos tortos do Smith com a Mary Elizabeth Winstead. Vale a ida ao cinema, especialmente para ver em 3D. É um dos poucos filmes recentes que valem a pena ver com essa tecnologia. Direção: Ang Lee. Ano: 2019.

SILVIO E OS OUTROS (Loro)

Acho tão difícil gostar de verdade dos filmes do Paolo Sorrentino. Mas não há como não negar uma marca, uma obsessão do diretor, o que não quer dizer que isso seja agradável. Ao menos é bom de ver pelo visual, pela beleza dos corpos femininos nus e seminus, pelo contraste entre velhice e juventude já bastante explorada em sua obra. Mas é também importante a gente ver pelo contexto político atual, de governantes de extrema direita. Perto de um tosco Bolsonaro, Silvio Berlusconi é de uma elegância fascinante. Fiquei na dúvida, aliás, se Sorrentino queria torná-lo patético. Toni Servillo, ótimo ator, acabou lhe dando até um pouco de honradez. Destaque também para uma outra ótima performance de Riccardo Scamarcio. Ano: 2018.

O GÊNIO E O LOUCO (The Professor and the Madman)

Eis um daqueles filmes acadêmicos chatos que só mesmo a presença de Mel Gibson e Sean Penn faz com que a gente fique até o fim da projeção. Há também o curioso caso da realização de um dicionário ambicioso, com o intento de congregar todas as palavras da língua inglesa. Gibson faz o estudioso de línguas escocês que lidera a difícil missão; Penn é o prisioneiro louco que o ajuda bastante, apesar das tantas dificuldades que sofre, inclusive pelo peso da culpa de uma morte. As cenas mais supostamente dramáticas são as que mais atestam a incapacidade do filme de funcionar. Direção: Farhad Safinia. Ano: 2019.

segunda-feira, outubro 21, 2019

GRETA

O longa-metragem de estreia de Armando Praça, GRETA (2019), é baseado na peça Greta Garbo, Quem Diria, Acabou no Irajá, de Fernando Melo, escrita e encenada como comédia. A mudança da comédia para o melodrama foi uma opção do cineasta, que achava que aquela história era muito mais próxima de um drama do que de uma comédia. Aliás, é interessante quando um diretor busca um espaço entre o drama e a comédia para contar suas histórias, como fazia Almodóvar em seus primeiros filmes, que hoje podem ser vistos até como histórias cheias de envolvimento dramático.

No caso de GRETA, não que não haja espaço para o humor – há bastante –, mas é definitivamente uma história sobre dor, sobre busca de sentido para uma vida que está próxima do fim e muita, muita solidão e rejeição. Mesmo sendo um filme com protagonistas homossexuais, certas coisas são universais. Afinal, difícil encontrar quem nunca passou por sentimentos de solidão e rejeição.

Na trama de GRETA, Marco Nanini é Pedro, um enfermeiro septuagenário que procura ajudar sua amiga transexual Daniela (Denise Weinberg), que passa por uma doença terminal e sofre muitas dores. A escalação de uma mulher cis para viver uma mulher trans tem sido bastante questionada, com alguma razão, mas difícil não se emocionar com a performance de Denise cantando “Bate coração”, canção do repertório de Elba Ramalho. A carga dramática que ela empresta à canção e amplifica o sentido da letra é tocante.

Mas o filme está mesmo mais interessado na trajetória de Pedro e sua busca por prazer para aliviar a dor, sua busca por alguém que o ame. Ele é um homem que costuma masturbar alguns pacientes do hospital em que trabalha, tenta marcar encontros e frequenta saunas gay, um espaço favorável para o sexo casual. Há uma cena com um misto de humor e drama bem marcante que se passa nesse espaço. Vale destacar que há cenas em que o sexo aparece bastante pulsante dentro dos leitos de hospital, inclusive.

A vida de Pedro ganha novo sentido quando ele, para encontrar uma vaga para a amiga Daniela no hospital, leva um homem responsável pela morte de outra pessoa, ferido, para sua casa. Com esse homem potencialmente perigoso vivido por Démick Lopes, Pedro cria uma relação de ajuda, desejo e afeto. O homem, a princípio muito reticente em ter relações sexuais com aquele homem idoso, aos poucos começa a se aproximar. Há um diálogo muito bonito e doloroso em que Daniela pergunta a Pedro se ele ainda está tendo um caso com esse homem que cometeu um crime e é procurado pela polícia. “É o único que eu tenho”, Pedro diz, com um misto de alegria e tristeza.

A entrega de Marco Nanini a esse papel é admirável. O grande ator não se incomodou em se entregar também de maneira física nas cenas que envolvem sexo e nudez. Isso contribui para que o filme ganhe ainda mais força na materialização desse universo marginal.

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AS FILHAS DO FOGO (Las Hijas del Fuego)

Aqui eu vejo mais o mérito pela coragem da diretora em fazer uma obra que trafega pela pornografia dentro do mainstream do que exatamente por conseguir um grau de erotismo que ultrapasse a provocação e os flertes com o S&M. Gosto do terço inicial do filme e quase nada do terço final. A questão de ser uma obra que quer ser mais política do que erótica acaba pesando um bocado. Essa coisa de querer questionar a objetificação dos corpos e a ditadura da beleza normativa e tal acabou não funcionando pra mim. Mas vai ver é só falta de identificação com a sensibilidade mesmo. Direção: Albertina Carri. Ano: 2018.

EUFORIA

Um dos grandes destaques deste filme de Valeria Golino é a forte presença de cena de Ricardo Scamarcio, mais conhecido do grande público por sua interpretação de Santino, o vilão de JOHN WICK 2. Aqui podemos vê-lo de maneira mais naturalista, como um irmão que esconde do outro que o outro está com câncer em estado terminal. Ele acredita que entretê-lo e trazer alegria para o seu dia a dia será melhor. O fato de o personagem do Scarmacio ser gay e o outro não também rende bons momentos de humor na história. Muito agradável de ver e com alguns momentos bem tocantes. Direção: Valeria Golino. Ano: 2018.

COMER, AMAR E VIVER INTENSAMENTE (Plaire, Aimer et Courir Vite)

Não tenho acompanhado todos os filmes de Christophe Honoré. Só vi os que passaram nos cinemas da cidade. Os três de homenagem à Nouvelle Vague dos anos 2000 e mais o BEM AMADAS. Este é talvez um dos melhores dele. E provavelmente um dos mais pessoais (minha suspeita apenas). O filme parece ter umas gorduras e uma duração maior do que eu gostaria, mas não sei o que tiraria. Ele cresce na memória e seus personagens são fortes e simpáticos o bastante para nos envolvermos com seus dramas. A questão da AIDS no início dos anos 1990 o aproxima bastante de 120 BATIMENTOS POR MINUTO (que prefiro). Ano: 2018.

quarta-feira, outubro 16, 2019

A NOITE AMARELA

"No estado que as coisas se encontram hoje, eu realmente acredito que o horror é o gênero narrativo que mais se aproxima da nossa realidade. Primeiro, porque nossa realidade está se dissolvendo, e essa é uma característica essencial das histórias de horror. Depois, porque nossa vida diária está infectada, como em um body horror de David Cronenberg minutos antes da metamorfose se completar e o monstro surgir entre nós. Logo, eu acredito que só o Horror mesmo pra salvar a gente de falar sobre esse mundo sem pé, nem cabeça que a gente vive." 
Ramon Porto Mota

Tem sido muito gratificando ler as entrevistas do cineasta paraibano Ramon Porto Mota, que estreia seu primeiro longa-metragem, depois da experiência em coletivo em O NÓ DO DIABO (2018), em um momento especialmente feliz para o cinema de gênero brasileiro. Vejam só: na mesma semana em que o seu filme estreou, entrou em cartaz também em outras salas do país MORTO NÃO FALA, de Dennison Ramalho, e AMOR ASSOMBRADO, de Wagner de Assis. E na semana anterior havia estreado O CLUBE DOS CANIBAIS, de Guto Parente. Ou seja, o que ele fala acima tem tudo a ver com esse momento tão especial em que o cinema de horror brasileiro está deixando de ser rejeitado e está sendo abraçado por uma parcela cada vez maior de espectadores, ao mesmo tempo em que estamos vivendo um momento político também singular.

Nas entrevistas de Mota, ele afirma que não tinha a menor intenção de que seu filme A NOITE AMARELA (2019) sequer fornecesse metáforas para o momento político brasileiro. Mas acontece que a percepção da obra de arte, ainda mais essa do tipo mais livre e cheia de espaços, pode trazer interpretações diversas, sim. E isso já não está mais nas mãos do artista. Além do mais, o artista costuma ter antenas que captam o espírito da época. Assim, o mal estar com o mundo contemporâneo se faz bastante presente.

A NOITE AMARELA, como experiência fílmica, está destinado a ser aquele tipo de filme que pode não ser apreciado por um público grande, por sua opção em quase se desvincular de uma trama no sentido convencional, especialmente a partir de seu terço final, e se deixar levar pela atmosfera de sonho/pesadelo, fazendo com que vejamos as pessoas sendo engolfadas pela escuridão, por algo não muito fácil de ser compreendido. O escuro é um aspecto predominante no filme. Quase todas as cenas se passam à noite, desde o começo, quando os jovens secundaristas chegam à ilha para passar uns dias e comemorar a formatura do ensino médio.

A opção de Ramon Porto Mota em adotar uma fotografia suja, áspera, com pouca iluminação, como se fosse um filme feito nas primeiras experiências com o digital, contribui para a sensação de que estamos vendo uma produção estranha a esses tempos em que as imagens são cada vez mais nítidas. Ao mesmo tempo, difícil não apreciar o belo trabalho de direção de arte e fotografia, com um uso de cores que remetem ao cinema italiano de horror dos anos 1970. Além do mais, reparem no cuidado com a realização do cartaz.

A NOITE AMARELA é um filme marcado por sua geografia, seu sotaque paraibano, seus diálogos aparentemente espontâneos, mas que na verdade foram memorizados pelos atores. O tipo de dramaturgia também é diferente, estranho. Nas entrevistas, Mota vem comentando que seu filme é mais herdeiro das experiências com o cinema de horror de Walter Hugo Khouri e Jean Garrett do que com o cinema de horror estrangeiro. De fato, quem viu os filmes de Khouri e Garrett sabe do que ele está falando e vai concordar. A intenção é fazer uma obra atemporal, cuja estranheza atravessará décadas.

Na trama, um grupo de adolescentes chega a uma ilha praticamente desabitada e sem sinal de celular. Depois de se estabeleceram em uma casa, uma das meninas, Karina (Rana Sui), desaparece, e a missão da turma passa a ser procurar pela amiga pela noite escura. Eles resolvem se separar e acabam se deparando com estranhas coisas que lhes assombram, como a presença de duplos. No meio disso tudo, há um grande flashback que dá uma quebrada no filme, como se o tirasse do gênero horror e o colocasse em um daqueles filmes dos anos 1950, com jovens duelando. Isso contribui para a estranheza, mas não deixa de ser no mínimo divertido.

Além do mais, a presença desses jovens atores e de um cinema que não tem medo de experimentar, traz um frescor necessário para este momento em que há filmes de gênero que se esforçam para dialogar mais com grandes audiências. Quanto mais pluralidade, melhor.

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PYEWACKET - ENTIDADE MALIGNA (Pyewacket)

Um baita exemplo de como às vezes ter um orçamento muito baixo, mas muita criatividade e senso de direção pode ser recompensador. Se PYEWACKET não estreasse no circuito, não saberia sequer de sua existência. Por isso é preciso que as distribuidoras façam mais um trabalho de curadoria, para nos apresentar obras tão impressionantes como essa. Um dos grandes méritos do filme é o quanto se constrói uma atmosfera de medo, apreensão, arrependimento e outras coisas apenas com expressões faciais e movimentos de câmera precisos, nada mirabolantes. Na história, garota, revoltada com a mãe que quer tirá-la da escola e da cidade, tenta se vingar dela através de um feitiço de magia negra. Vi o filme em casa, mas certamente é filme que merece ser visto no cinema. Direção: Adam MacDonald. Ano: 2017.

IT - CAPÍTULO 2 (It - Chapter Two)

Uma tarefa muito difícil tornar crível e assustadora esta continuação, agora com os personagens adultos, na faixa de 40 anos, tendo que se comportar como em filme de adolescente para matar o monstro, o palhaço assassino de crianças (e adultos também). Infelizmente o filme funciona em alguns momentos, mas, à medida que vai se aproximando de sua conclusão, vai perdendo a força. A escalação do elenco adulto foi boa (Jessica Chastain, James McAvoy e Bill Hader, principalmente) e as várias cenas pequenas de flashback com o elenco infantil e carismático são legais, mas o principal, que é a metodologia para matar a criatura talvez só funcione no romance. É muito complicado tornar gráfico e ao mesmo tempo assustador tudo aquilo. Também senti falta de uma maior conexão afetiva com os personagens adultos. Enfim, uma pequena decepção para um filme ambicioso como esse. Direção: Andy Muschietty. Ano: 2019.

KARDEC

Eis o candidato a filme mais chato e aborrecido do ano. Perderam a oportunidade de contar uma história interessante de maneira agradável e o que temos é um filme que mais se parece com aquelas produções de época de quinta categoria lançadas diretamente em home video. Além do mais, há um tom solene que enche o saco, com uma música que traz a tentativa de exaltar o legado de Allan Kardec e sua coragem de peitar a Igreja Católica e as instituições. Pode ser uma pá de cal na chamada nova era dos filmes espíritas. Direção: Wagner de Assis. Ano: 2019.

segunda-feira, outubro 07, 2019

UM AMOR IMPOSSÍVEL (Un Amour Impossible)

No ano passado, o blog esteve praticamente entregue às baratas, de tão parado que estava. E os poucos leitores que ainda me seguem talvez não imaginem o quanto isso me incomodou. E essa fase continuou neste 2019, embora mais recentemente eu tenha procurado mudar um pouco a situação. Por isso, muita coisa boa que eu vi no cinema e em casa acabou não sendo escrita ou pensada neste espaço. Penso que a experiência fílmica só se torna completa quando a obra em questão é refletida, seja através de um bate-papo bem direcionado, seja através da escrita. E é essa a minha forma de dar continuidade à experiência, inclusive para saber qual o tamanho da minha relação de afetividade com o filme.

Por isso acho importante falar aqui de UM AMOR IMPOSSÍVEL (2018), de Catherine Corsini, que vi já faz alguns meses, mas que ainda está passeando por algumas cidades no circuito alternativo. Pelo título, parece uma dessas obras bem água com açúcar, mas o que temos aqui é uma verdadeira pedrada.

A história é contada por Chantal (Jehnny Betty, na fase adulta) e a personagem principal é sua mãe, Rachel (Virginie Efira, que vive a mesma personagem desde a tenra juventude até a velhice, o que é um risco). A princípio, o foco da narrativa se prende ao relacionamento entre Rachel e Philippe (Niels Schneider). Ela vem de uma classe mais humilde da sociedade; ele é um rapaz que conseguiu escapar da guerra da Argélia por influências de sua família rica e culta.

A relação dos dois parece correr muito bem, mas Rachel começa a ficar um tanto triste quando Philippe diz que tem entre seus princípios jamais se casar. E essa decisão não muda nem mesmo quando Rachel se vê grávida. A posição covarde de Philippe em não reconhecer oficialmente a paternidade de Chantal se torna até pequena diante do que veremos perto do final do filme.

Ainda que a figura de Philippe continue sendo de fundamental importância para a história, mesmo ele aparecendo para visitar a filha e Rachel de vez em quando, lá pelo meio, UM AMOR IMPOSSÍVEL se transforma em um filme sobre a relação de proximidade entre mãe e filha, e do quanto, mais adiante, Philippe fará parte de maneira mais próxima da vida de Chantal.

A cineasta Catherine Corsini vem de um belo filme sobre a relação afetiva entre duas jovens mulheres de estilos diferentes – UM BELO VERÃO (2015) – e aqui novamente mostra um cinema interessado em lidar com as questões relativas ao lugar da mulher no mundo moderno. No novo filme, entretanto, vemos uma protagonista por demais sofrida, seja por causa de uma paixão não correspondida, seja pela sociedade que não vê com bons olhos uma mãe solteira, entre outros problemas. Nesse sentido, é também um estudo sobre a evolução da mulher na sociedade ocidental (ou pelo menos francesa) a partir do final dos anos 1950.

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O SÉTIMO CÓDIGO (Sebunsu Kôdo)

Resolvi finalmente ver este filme do Kiyoshi Kurosaw devido às comparações feitas com o maravilhoso O FIM DA VIAGEM, O INÍCIO DE TUDO (2019). E embora haja muitas coisas em comum (a atriz, a locação em país estrangeiro, uma personagem desolada, a música), aqui há uma trama de espionagem/suspense que traz uma reviravolta na segunda metade. Gosto mais da primeira, mas é bom ver que temos um cineasta que não tem medo de arriscar e de fugir do lugar comum, trazendo sempre filmes para nos deixar desconfortáveis ou admirados. A duração é bem curtinha: apenas uma hora. Ano: 2013.

LUCIA CHEIA DE GRAÇA (Tropa Grazia)

É difícil desde já se envolver com a proposta inicial: a de uma jovem mulher que recebe um pedido de Maria Mãe de Deus para construir uma igreja. Há um humor que não funciona, situações inusitadas que parecem despropositadas, personagens sem força e sem carisma. Enfim, há tudo que podia ser necessário para que um filme como esse despertasse o mínimo interesse. E nem é pela questão religiosa, que é tratada com certa leveza. É por não saber lidar com o que tem em mãos mesmo. Direção: Gianni Zanasi. Ano: 2018.

FILHAS DO SOL (Les Filles du Soleil)

A diretora (cujo trabalho eu desconhecia até então) pesa a mão neste drama de guerra sobre um batalhão de mulheres curdas em uma guerra no Curdistão. O diferencial está no fato de ser uma história verídica em que mulheres assumem o protagonismo em uma guerra contemporânea. Mas achei difícil me emocionar e me importar com as personagens, por mais que algumas cenas dentro da edição de idas e vindas no tempo sejam boas, como a fuga de um cativeiro, por exemplo. Direção: Eva Husson. Ano: 2018.

sábado, outubro 05, 2019

O CLUBE DOS CANIBAIS

Estamos passando por um momento muito especial do cinema brasileiro, em que uma pluralidade cada vez maior de estilos, gêneros, maneiras de se fazer filmes está surgindo. O CLUBE DOS CANIBAIS (2018) representa tanto este momento especial do cinema de gênero no Brasil, quanto também uma espécie de consolidação de uma chamada "primavera do cinema cearense", como alguns já vêm denominando este momento próspero e rico.

O CLUBE DOS CANIBAIS é também a afirmação de um cinema voltado para o horror e com um cuidado muito especial com a forma. Seu diretor, Guto Parente, já havia mostrado isso no ótimo A MISTERIOSA MORTE DE PÉROLA (2014), feito sem recurso algum do Estado, com um valor de produção próximo do zero. Parente escreveu o roteiro de O CLUBE DOS CANIBAIS em 2013, aplicou o projeto em edital em 2014 e finalizou as filmagens em 2016, tendo suas primeiras exibições em festivais ligados ao gênero fantástico em 2018.

Ou seja, o filme atravessou todo esse turbilhão de situações de pesadelo pelo que tem passado o Brasil ao longo desta década. A crítica à elite, que come os mais pobres - e pardos e pretos - e que elogia o "primeiro mundo" continua atual. Na verdade, ela nunca deixou de ser uma realidade do nosso país. Apenas as máscaras caíram.

O CLUBE DOS CANIBAIS conta a história de Otávio (Tavinho Teixeira), dono de uma empresa de segurança privada, e Gilda (Ana Luiza Rios), sua esposa, que adora ficar na piscina tomando uns drinques enquanto sensualiza para o caseiro. Os caseiros, logo veremos, passam por uma rotatividade intensa na casa, já que são sugados para a cilada de seus patrões. Gilda os atrai para o sexo enquanto o patrão está supostamente indo para Fortaleza.

A cena que mostra o sexo de Gilda com o caseiro, a masturbação de Otávio, o machado na cabeça da vítima, o êxtase, tudo isso é tudo muito cheio de sensualidade, assim como a visão de Gilda, descendo as escadas, com o corpo nu banhado de sangue, como uma espécie de versão maligna e poderosa da inocente Carrie (difícil não lembrar do filme do De Palma).

O interessante é que o gore, a violência gráfica, não parecem tão perturbadores neste filme que conta com um senso de humor satírico muito agradável. Sem falar que Guto Parente, sendo um esteta, preza pela beleza das imagens. Assim, o vermelho do sangue e tudo o mais que compõem essas cenas fazem parte de uma intenção de fazer cinema mais ligado ao prazer visual, à valorização da fotografia e do desenho de produção, do que ao choque pelo choque, muito comum em alguns filmes do subgênero torture porn, em moda na década passada.

Além do mais, percebemos que o filme não se atém simplesmente a uma repetição desses eventos na casa de Otávio e Gilda. Na verdade, há uma cena em especial que mudará o destino dos personagens. Isso acontece quando, em uma festa do tal clube, Gilda flagra o grande líder, Borges (Pedro Domingues), um deputado influente, em um ato secreto. Impagável a cena de Gilda indo conversar com Borges no dia seguinte. Um convite à gargalhada e um sinal de que Guto Parente e seu filme já haviam ganhado o espectador.

O CLUBE DOS CANIBAIS conta com uma equipe de dar gosto. Fernando Catatau, guitarrista célebre de Fortaleza, faz a trilha sonora, que valoriza tanto os sintetizadores quanto a bateria, amplificando o prazer fílmico. A supervisão de efeitos especiais é de Rodrigo Aragão, famoso por sua filmografia voltada ao horror gore. E há toda uma turma que vem crescendo cada vez mais no cinema cearense, como Ticiana Augusto Lima, Breno Baptista, Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Samuel Brasileiro, Lia Damasceno, Luciana Vieira, entre outros, que fazem parte do filme em variadas funções.

Por isso, não seria um exagero colocar O CLUBE DOS CANIBAIS na mesma lista de obras como AS BOAS MANEIRAS, de Julian Rojas e Marco Dutra; O ANIMAL CORDIAL, de Gabriela Amaral Almeida; e, por que não?, BACURAU, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles, filme que, segundo Parente, é um divisor de águas deste momento. Sem falar que há toda uma questão muito ligada ao ataque por parte da elite às classes menos favorecidas, que permeia todas essas obras.

No mais, difícil terminar este texto sem elogiar a elegante performance de Ana Luiza Rios, como Gilda, e também de Tavinho Teixeira, claro. Nosso cinema está cada vez mais pulsante, nadando contra a maré de ataques do governo federal. Haveremos de sobreviver gloriosamente.

+ TRÊS FILMES

SOLDADOS DA BORRACHA

Este é outro daqueles serviços de utilidade pública muito importante para que saibamos mais sobre essas pessoas que foram invisibilizadas pelo Governo e pela sociedade, mesmo sendo tão importantes, tanto para a vitória dos aliados na Segunda Guerra quanto para o sucesso do Brasil nas exportações de borracha em tempos de guerra, quando Getúlio Vargas fez um negócio da China com os Estados Unidos. O que esse povo passou não é mole. Ainda assim, o documentário de Wolney Oliveira é cheio de momentos divertidos, os personagens são muito bons e ele teve uma sorte tremenda de encontrar velhinhos cheios de alegria e vivacidade, e com histórias fascinantes para contar. Ano: 2019.

CURRAIS

Um filme necessário. A histórias dos campos de concentração no Ceará na seca de 32 são muito pouco mencionados em filmes e se existem em livros de História eles ganham pouca repercussão. Algo que a elite daquele época sempre quis: acobertar os atos criminosos e bestiais que faziam com os flagelados da seca. Ver este filme é lembrar mais uma vez que a máscara de bom moço do brasileiro esconde muita coisa suja e feia. O recurso dos diretores aqui se mostrou feliz, ao trazer para a ficção algo que seria puramente documental. E Rômulo Braga é um baita ator. Funcionou muito bem como o sujeito que faz a investigação. Um verdadeiro filme de horror. Direção: David Aguiar e Sabina Colares. Ano: 2019.

NOTÍCIAS DO FIM DO MUNDO

O que há de melhor e mais gostoso neste filme é o tom anárquico, que muito lembra os filmes brasileiros da época do Cinema Marginal. Mas a sintonia é mesmo com os tempos de hoje, inclusive fazendo uma boa sessão dupla com BACURAU, já que se trata também de uma espécie de filme "perigoso". Ao que parece, já passou da hora de ficar triste e agir. O filme às vezes parece ter sido feito a partir de sobras do figurino de OS POBRES DIABOS, mas, se parece não haver o mesmo cuidado com as imagens, há bem mais ousadias de discurso, com destaque para as falas do Everaldo Pontes, grande ator. Direção: Rosemberg Cariry. Ano: 2019.