domingo, agosto 29, 2021

FALE COM ELA (Hable com Ella)



Alguns filmes são tão especiais que até temos medo de rever e o impacto inicial diminuir. No caso de FALE COM ELA (2002), creio que houve sim um impacto um pouco menor na revisão, mas continua sendo uma obra-prima para mim. Ocorre que filmes que utilizam a música como elemento de intensidade dramática acabam se beneficiando muito mais da experiência da imersão da tela grande. Então, na época que vi este filme no Cinema do Dragão, saí tão impactado com sua beleza e tão comovido com o drama de Benigno (Javier Cámara), que me vi chorando ainda na parada de ônibus, no caminho de volta para casa. Alguém que estivesse ali me vendo pode ter imaginado que eu estivesse passando por um problema muito grave.

É bom demais poder rever o trabalho de um cineasta que havia chegado ao ápice de suas habilidades, até então. Ao contrário do anterior, TUDO SOBRE MINHA MÃE (1999), que acho mais preocupado com a forma, este aqui (talvez por não ter a direção de fotografia dos colaboradores habituais de Almodóvar, os mestres Affonso Beato e José Luís Alcaine) me pareceu mais preocupado com a narrativa e com seus personagens masculinos, Benigno e Marco (o argentino Darío Grandinetti). É, dentro da classificação que se poderia fazer dos filmes do cineasta, que vão de masculinos ou femininos, um filme masculino, mais até do que CARNE TRÊMULA (1997), já que em FALE COM ELA as mulheres são silenciadas, em suas condições comatosas.

E aqui, Almodóvar, mais do que nunca, embaralha as convenções dos sexos masculino e feminino em seus personagens, sem necessariamente tratar de homens ou mulheres trans, como no filme anterior. Benigno, por exemplo, suas colegas enfermeiras acreditam que ele é gay; Lydia (Rosario Flores) é uma toureira, profissão geralmente masculina; e Marco é um homem extremamente sensível. Na primeira cena do filme, se destacam suas lágrimas na apresentação de “Café Müller”, balé de Pina Bausch. No livro Conversas com Almodóvar, de Frederic Strauss, o diretor diz: “a abertura de Café Müller de fato me fez chorar, tal como a primeira vez que ouvi a versão de Caetano de ‘Cucurrucucú Paloma’. É uma canção de uma ternura tão comovente que se torna quase violenta...”.

E, de fato, tanto a cena da canção, quanto as cenas do balé, correspondem a esses dois elementos que o diretor menciona: a ternura e a violência, que comparecem no ato ao mesmo tempo terrível, mas, muito provavelmente inocente, perpetrado por Benigno, ao violar o corpo de Alicia (Leonor Watling). Isso se deve ao fato de que Benigno parece uma espécie de stalker/psicopata do bem, por assim dizer, já que ele acaba agindo inspirado em um curta-metragem mudo (genial, aliás!) que ele assistira e que mexeu com sua cabeça. E entra-se em um tema muito espinhoso que nos dias de hoje traria muita dor de cabeça para o cineasta. O ato de Benigno, aliás, lembra o apresentado em A MARQUESA D’O, de Éric Rohmer.

Almodóvar, no entanto, prefere não trazer sensacionalismo para o ocorrido, nem julgar o personagem. Vale lembrar que esses atos de violência masculina apareceram em obras anteriores do cineasta, como ATA-ME! (1989) e KIKA (1993), em tons de comédia, e pelo menos em um posterior, A PELE QUE HABITO (2011), em tom de horror. Em todas as vezes, porém, se explicita um desejo sexual tão intenso que ultrapassa a linha da moralidade. É algo tão espinhoso que é difícil até falar a respeito, mas que, justamente por isso, acho ousado da parte do cineasta em trazer para suas obras.

Uma das coisas que mais me encantou nesta revisão de FALE COM ELA foi o quanto as transições de tempo - os flashbacks, as elipses, os saltos – são apresentadas de forma tão sutil, tão delicada, tão perfeita. E se lembrarmos que o roteiro é um tanto intrincado, o feito de Almodóvar é ainda mais louvável. Talvez por isso ele tenha sido indicado ao Oscar nas categorias de direção e roteiro – surpreendentemente ganhou roteiro, coisa que eu havia esquecido. Assim, esse seu trabalho com uma narrativa mais clássica muito me fez lembrar o cinema da velha Hollywood, como melodramas ou filmes noir (graças à excelente trilha sonora de Alberto Iglesias, que traz ares de mistério). 

É importante lembrar também que FALE COM ELA é um filme sobre solidão. E talvez por isso ele tenha me comovido tanto na primeira vez que o vi. A solidão está presente principalmente em Benigno, uma pessoa que passou a vida inteira cuidando da mãe doente, e que não tinha muita noção da vida lá fora. Mas há também a solidão dos corpos em estado de coma da toureira Lydia e da jovem Alicia. Ou a solidão de Marco, que não consegue dialogar com o corpo inerte de Lydia. Mas nada tão capaz de comover tanto quanto o diálogo entre Marco e Benigno, e a necessidade tamanha deste último de um abraço amigo. Quem nunca?

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

sábado, agosto 28, 2021

A FÚRIA (The Fury)



Seguindo a peregrinação pelo cinema de Brian De Palma, chego a esta espécie de continuação espiritual de CARRIE, A ESTRANHA (1976). A FÚRIA (1978) também lida com personagens com capacidades paranormais sendo vistos como monstros dentro do universo em que vivem. Na verdade, aqui eles são vistos mais como armas poderosas e perigosas em tempos de guerra fria. Amy Irving sai de CARRIE para este filme como uma das personagens com esse tipo de poder. No caso, ela consegue visualizar a mente das pessoas e até fazê-las sangrar.

Mas o filme se inicia em tom de thriller de espionagem com uma ótima cena de ação com a presença do veterano Kirk Douglas ainda em forma e de um John Cassavetes mais uma vez interpretando um vilão (funcionou muito bem em O BEBÊ DE ROSEMARY, de Polanski). Há alguns problemas de ritmo no filme e talvez a ambição da produção e a falta de mais cuidado no roteiro tenham prejudicado um pouco o resultado final. Ainda assim, De Palma imprime sua marca e nos oferece alguns ótimos momentos. No mais, é curioso como nos anos 1970 havia um forte interesse pela paranormalidade.

O filme, embora mal visto pelo próprio diretor, funcionou muito bem como uma forma dele praticar o entrecruzamento de histórias. Ao contrário de CARRIE, que é mais linear e se passa em apenas um espaço, uma escola de uma cidadedinha e seus habitantes, aqui temos um filme que já começa em um outro país, com um agente secreto do governo americano chamado Peter (Kirk Douglas), passando as férias com seu filho adolescente Robin (Andrew Stevens) em um resort no Oriente Médio. Presente também está o suposto amigo de Peter, Childress (Cassavetes), que se revelaria um sujeito disposto a matar Peter e a capturar Robin para usar sua capacidade de telecinese em um projeto secreto.

O entrelamento de histórias se dá quando o filme passa a nos apresentar a Gillian (Irving), uma jovem atormentada por seus próprios poderes. A presença de Gillian é o que mais aproxima o filme de CARRIE, até por ser seu aspecto mais feminino, por assim dizer. Novamente há o sangue, tão presente no filme anterior de De Palma, bem como a citação à menstruação.

A FÚRIA passa a impressão de ser uma obra mais convencional, do ponto de vista do tom, se comparado com CARRIE mas também com as outras obras, com algum apelo para a comédia. Os momentos de humor aparecem mais em algumas cenas com o personagem de Douglas, como quando ele foge de seus algozes usando apenas um calção, invadindo um apartamento e levando umas roupas frouxas “emprestadas”. Em seguida há uma divertida cena de perseguição de carros.

Um dos pontos fracos do filme é a interpretação de Andrew Stevens. O rapaz é bem ruim e chega a incomodar sempre que entra em cena. Isso é potencializado nos instantes finais, quando Robin, envenenado psicologicamente por Childress, e enlouquecido por uma espécie de síndrome de deus, passa a mostrar seu poder de levitação e de destruição em pessoas. Destaque para a cena em que ele mata a mulher com quem estava dormindo por ciúme, rodopiando-a em pleno ar, tão rapidamente que seu corpo é dilacerado. A ideia é boa e a cena poderia ser assustadora se melhor executada e com um intérprete mais talentoso.

Falando em ator talentoso, impressionante como Cassavetes está bem como o grande vilão da história, por mais que apareça pouco. Seu olhar transmite um ar de malignidade suficiente para trazer uns pontos positivos para o filme. A cena final, um tanto brusca, dele sofrendo a vingança de Gillian, não deixa de ser memorável, além de antecessora de SCANNERS – SUA MENTE PODE DESTRUIR, de David Cronenberg.

Do ponto de vista da vida privada de De Palma, o filme traz a questão do inveja do irmão. Em A FÚRIA, Robin tem ciúme de Gillian, a moça que apareceria e, muito provavelmente, o substituiria. Esse interesse do diretor pelos perigos do orgulho e do excesso de competitividade vem de seu relacionamento com os irmãos Bruce e Bart. Da sua família, Bruce era o dotado de inteligência, de ter uma mente extraordinária para a ciência, e Brian se sentia isolado pelos pais por não conseguir acompanhá-lo.

A FÚRIA veio de um sucesso gigante de CARRIE e acabou desapontando as expectativas. Custou bem mais e rendeu cerca de um terço do filme anterior. Talvez tenha sido por causa de um boca a boca negativo ou mesmo porque as pessoas esperavam algo mais próximo do terror adolescente de CARRIE e não uma trama de espionagem com elementos fantásticos.

quinta-feira, agosto 26, 2021

A LENDA DE CANDYMAN (Candyman)



O MISTÉRIO DE CANDYMAN (1992), de Bernard Rose, já foi representativo ao trazer o primeiro personagem sobrenatural negro em um slasher americano. Jordan Peele quis reivindicar o personagem para si, para a população negra, e também trazer personagens negros para o protagonismo – e não uma fotógrafa branca, como a personagem de Virginia Madsen, no primeiro filme. Passados quase 30 anos, muita coisa mudou na sociedade e, consequentemente, no cinema também. As pautas dos últimos anos se tornaram cada vez mais urgentes e o número de cineastas negros cresceu, inclusive dentro do gênero horror.

Com a estreia de A LENDA DE CANDYMAN (2021), dirigido por Nia DaCosta (PASSANDO DOS LIMITES, 2018), e com produção e participação no roteiro de Jordan Peele, verifica-se uma tendência de se preocupar mais com as heranças da escravidão e da ainda muito presente questão racial nos Estados Unidos. Mas, se por um lado, do ponto de vista do envolvimento que geralmente se espera de filmes de horror, eu não tive tanta conexão com esta continuação, isso não quer dizer que não tenha sido uma obra que não tenha me causado um impacto pela beleza de sua construção visual, que ajuda a compensar um pouco a simplicidade do enredo original. Destaques para as cenas criativas das mortes das vítimas de Candyman, de uma beleza plástica admirável.

DaCosta redimensiona a entidade dentro de um novo momento do cinema e da sociedade. Logo, é um filme reflexivo até quando não precisa dizer nada explicitamente, como nos momentos em que aparecem mais pessoas negras na galeria de arte do que pessoas brancas. Outro elemento muito bonito do filme é a questão do artista se transformando em arte, o que leva, mais à frente, à discussão sobre o fato de que os brancos sempre gostarem da arte produzida pelos negros, mas não gostavam dos negros.

Na trama, Anthony McCoy (Yahya Abdul-Mateen II) é um artista plástico à procura de um tema, de uma inspiração. Ele divide o apartamento com sua namorada, Brianna Cartwright (Teyonah Parris), diretora de uma galeria de arte. Ele se inspira nos casos ocorridos em um espaço abandonado de Chicago, onde nasceu uma lenda urbana um tanto esquecida de uma entidade que aparece no espelho, quando invocada cinco vezes, Candyman.

O filme possui alguns problemas de ritmo, não sei se por causa da direção ou da montagem. Talvez seja o caso de terem cortado mais cenas do que deveriam – as sequências finais são as mais prejudicadas. Ainda assim, diria que isso é um detalhe e talvez A LENDA DE CANDYMAN seja um dos mais importantes lançamentos do ano, pelo que se propõe e pelo que apresenta formalmente.

segunda-feira, agosto 23, 2021

CINCO FILMES DE HORROR



Gostaria muito de estar podendo escrever todos os dias textos maiores e mais aprofundados sobre cada filme que vejo, mesmo aqueles que imagino não ter muito a dizer. Mas a falta de tempo e as preocupações com certas coisas da vida acabam prejudicando o processo de escrita. Sem falar que demora um bocado fazer pesquisa, se a minha opção for não fazer apenas um texto impressionista, mas algo também calcado em informações sobre a obra ou o realizador. De todo modo, para não deixar este espaço parado, vamos de textos feitos no calor do momento, que costumo postar no meu letterboxd.

O HOMEM NAS TREVAS 2 (Don’t Breathe 2)

Interessante eu não me lembrar de quase nada do primeiro filme. De todo modo, gostei desta continuação, agora sob as mãos do roteirista dos outros dois filmes de terror de Fede Alvarez, A MORTE DO DEMÔNIO (2013) e O HOMEM NAS TREVAS (2016). E ele estreou muito bem como diretor, com um filme redondinho, inclusive no roteiro, e trabalhando a questão da redenção do personagem principal, uma espécie de anti-herói cheio de pecados a pagar. Em O HOMEM NAS TREVAS 2 (2021), dirigido agora por Rodo Sayagues, o protagonista cuida de uma garota órfã que ele encontrou há oito anos em um cenário de incêndio. Ele cuida dela com muito cuidado, como uma filha, mas tem o problema de um excesso de proteção, para usar de eufemismo. O filme começa mesmo, por assim dizer, com a chegada de um grupo de homens que invadem a casa onde o homem cego mora. E agora são homens também advindos de experiências militares em guerras. Há muita tensão e suspense, muito disso apenas dentro de uma casa, mas o filme ainda reserva alguns surpresas em seu terceiro ato, e isso acaba por valorizá-lo ainda mais. Muito bom o novo vilão, vivido por Brendan Sextan III.

ATÉ O VENTO TEM MEDO (Hasta el Viento Tiene Miedo)

Primeiro filme que vejo de Carlos Enrique Taboada, e aqui, nesta que é uma de suas primeiras obras, a contaminação entre horror e um forte tom melodramático é bem aparente, e nem sempre é possível evitar, levando em consideração questões culturais. A história de ATÉ O VENTO TEM MEDO (1968) é relativamente simples e por isso há uma intenção de se trabalhar mais a atmosfera. Na trama, um grupo de garotas é obrigada, pela diretora da escola, a passar as férias na instituição. As meninas ficam inconformadas, mas aos poucos isso se torna a menor das preocupações, já que passam a ser assombradas pela presença do fantasma de uma ex-aluna morta. Gosto de como essa questão mais espiritual é equilibrada com os momentos de conversa entre as meninas, até por revelarem alguns pudores da sociedade da época. Há uma cena em que uma delas faz um striptease, e isso gera escândalo para as colegas. Pena que a cópia existente ainda não faça jus ao filme, especialmente o som. Mas isso é um problema sério de muitas cinematografias. Ainda assim, as cores vibrantes, com destaque para o vermelho, se destacam belamente ao longo de todo o filme. Filme presente no box Obras-Primas do Terror – Horror Mexicano.

THE ALLIGATOR PEOPLE

Um filme que só soube da existência depois de ver a tal cena do sujeito com cabeça de jacaré saindo de uma casa e uma moça aterrorizada. Até virou meme nestes tempos de Covid-19. THE ALLIGATOR PEOPLE (1959), de Roy Del Ruth, é um sci-fi/horror B bem característico daquela época e, por mais que muita coisa soe engraçada ou até ridícula, o andamento é agradável e há o recurso que funciona muito bem do flashback para se contar a história. Na trama, jovem acaba de se casar, mas o noivo sai correndo quando recebe um telegrama que o deixa desconcertado. Ela segue seus passos e consegue encontrá-lo nos pântanos de Louisana. Lon Chaney aparece como um bêbado que perdeu a mão por um jacaré e sonha matar todos os jacarés do mundo. A cópia existente é excelente. De dar gosto ver que mesmo filmes B são respeitados, a ponto de ganharem restaurações lindas como essa. Meu sonho é um dia esse respeito chegar ao Brasil também.

ESCURIDÃO DA MORTE (Fade to Black)

Slasher especialmente agradável de ver, especialmente pelas inúmeras referências a filmes, frutos, em sua maioria, das lembranças, da imaginação ou mesmo da indumentária do protagonista para perpetrar alguma coisa. Na trama de ESCURIDÃO DA MORTE (1980), de Vernon Zimmerman, temos um rapaz louco por cinema, em especial o cinema americano, que trabalha em uma produtora de filmes B, sofre bullying e tem dificuldade de alcançar aquilo que deseja. Começa a pirar depois de levar um bolo de uma moça parecida com a Marilyn Monroe e de ser atormentada pela tia. A partir de então o filme segue pelo caminho do slasher de vingança. O jovem passa a usar referências cinematográficas para se vingar daqueles que o humilharam de alguma maneira. Gosto especialmente da cena dele caminhando pelas ruas de Los Angeles, cheias de cinemas de rua por todos os lados. Fiquei curioso para saber como uma produção tão barata conseguiu os direitos de tantas imagens de produções das majors. De ator conhecido, há o jovem Mickey Rourke antes da fama, em papel pequeno. Filme presente no box Slashers Vol. IX.

VIOLATION

Gosto de como VIOLATION (2020), de Madeleine Sims-Fewer e Dusty Mancinelli, utiliza o tempo, seja para expandir o respiro das cenas de conversa, seja para acentuar as imagens às vezes em close-up da natureza, seja para nos expor a uma dose de violência bem explícita. Talvez tenha sentido falta de uma maior motivação por parte da protagonista para executar seu ato - estaria eu o minimizando? De todo modo, não é todo dia que nos deparamos com um filme que traz sentimentos e sensações tão fortes. Destaque também para a performance da diretora/atriz Madeleine Sims-Fewer, principalmente nos instantes de maior exasperação.

sábado, agosto 21, 2021

CARRIE, A ESTRANHA (Carrie)



Ah, nada como as revisões! Associadas ao passar do tempo, às nossas experiências de vida e de compreensão da obra e da poética dos cineastas, elas contribuem e muito para que certos filmes anteriormente vistos como obras pouco atraentes se transformem, em nossa memória afetiva, em obras-primas. Foi o caso de CARRIE, A ESTRANHA (1976), que, confesso, estava um pouco com má vontade de rever, já que, da primeira vez que vi, dublado, em um Corujão da Rede Globo, não me impressionou muito. Ao contrário, tudo parecia meio óbvio, como se eu já tivesse visto antes. Depois revi em um DVD importado – tem comentário rápido aqui no blog, em 2005, mas tive raiva quando li o que escrevi na época.

Acontece que, no caso de CARRIE, estamos falando de um clássico. Não um clássico no sentido formal, já que se trata de uma obra pós-moderna, mas um clássico no sentido de obra que já ingressou no inconsciente coletivo; mesmo pessoas que nunca o viram integralmente sabem do que se trata. É mais ou menos o que acontece com filmes como PSICOSE, de Hitchcock, ou E.T. – O ESTRATERRESTRE, de Spielberg, ou 2001 – UMA ODISSEIA NO ESPAÇO, de Kubrick. Ou seja, todo mundo, de uma maneira ou de outra, já entrou em contato com essas obras, que são filmes-referência, mesmo que através de homenagens ou sátiras.

Pois bem, agora chegou a minha chance de rever CARRIE, dessa vez em alta definição, através da minha vontade de ver e rever toda a filmografia de Brian De Palma. Talvez o mais famoso filme do cineasta, este foi também seu primeiro grande hit. Custou apenas 1,8 milhão de dólares e rendeu mais de 33 milhões, só nos Estados Unidos. E olha que o lançamento não foi o ideal. Lançaram o filme em sessões duplas como um filme B, quando ele merecia estar no circuito de filmes A. Os executivos devem ter percebido a falha depois que viram o filme recebendo duas indicações ao Oscar, algo raro para produções de horror. As indicações foram para melhor atriz (Sissy Spacek) e melhor atriz coadjuvante (Piper Laurie). Até eu fiquei surpreso com essa informação.

A primeira cena do filme é a das garotas da escola jogando vôlei e já vermos, de cara, Carrie (Spacek) sendo alvo de bullying das outras meninas. Mas essa cena é meio que esquecida, pois logo depois entra a cena dos créditos iniciais, extremamente bonita e ousada, ao mostrar, em câmera lenta, as meninas nuas ou seminuas no vestiário. A beleza da cena é exponenciada pela trilha sonora absolutamente tocante de Pino Donaggio, em sua primeira colaboração com De Palma. Os dois trabalhariam juntos em mais outros sete filmes do realizador. A música de Donaggio é de um romantismo tão lindo e triste que um suposto erotismo dessa sequência de nudez e voyeurismo fica de lado. Aliás, essa cena foi uma dor de cabeça para o diretor, pois a maioria das atrizes estava muito incomodada com o fato de aparecerem nuas. Quem acabou dando um empurrão para elas foi a própria Sissy Spacek.

Ainda sobre a falta de aviso de spoilers do filme, o próprio cartaz já entrega o momento em que a protagonista tomará um banho de sangue, e o trailer também entrega todas as cenas mais importantes. Muito diferente de Alfred Hitchcock, que na época do lançamento de PSICOSE, pedia para que todo mundo que visse o filme não revelasse nada para ninguém, além de criar um trailer totalmente fora do comum, mostrando apenas o motel onde se passaria a cena-chave de seu filme.

A lembrança constante de PSICOSE vem tanto das referências e homenagens óbvias que De Palma usa em seu filme, como também do fato de que o filme de Hitchcock é considerado o primeiro filme de horror moderno por muitos estudiosos, enquanto CARRIE seria o primeiro horror pós-moderno. Muito provavelmente esse tipo de afirmação não deve ser uma unanimidade, mas é possível traçar um paralelo entre a cena do chuveiro de PSICOSE e a cena do balde de sangue de CARRIE, como cenas absolutamente icônicas. A cena de PSICOSE seria um “motivo magistral”, como li em um texto escrito por Luiz Carlos Oliveira Jr., em seu livro A Mise em Scène no Cinema, ao tratar do maneirismo:

“A imagem maneirista, segundo Delorme, é aquela que se propõe não exatamente ao remake de uma obra clássica (reapropriar-se de seu conteúdo narrativo, com suas situações de base e personagens) nem à sua reprise (submetê-la a um novo tratamento figurativo), mas à anamorfose, isto é, ao estudo visual sistemático e obsessivo de um “motivo magistral” (a cena do chuveiro de Psicose), talvez a mais refilmada da história do cinema, é o melhor exemplo do que seria um “motivo magistral”). O papel do maneirista é fazer trabalhar à exaustão as energias figurativas de uma imagem, esgarçando, alongando ou distorcendo seus elementos até que eles resultem em outra coisa – que pode ser o surgimento ou a explicação de tudo aquilo que havia ficado recalcado na imagem anterior (ver o modo como o sexo, a nudez e a potência destrutiva do par olhar/desejo se intensificam e vêm à tona nos filmes hitchcockianos de Brian De Palma..” (2013, p. 124, 125).

CARRIE caiu nas mãos de Brian De Palma quase como por sorte. Os produtores não acreditavam muito na força do cineasta, que na época ainda era mais lembrado por suas comédias godardianas do que propriamente por IRMÃS DIABÓLICAS (1972), suspense hitchcockiano feito de maneira independente. A adaptação do primeiro romance de Stephen King caiu como uma luva na poética do cineasta e em suas obsessões. Se temos o cuidado de ver CARRIE pela perspectiva da protagonista, uma garota que sofre bullying constante, que é rejeitada e humilhada pelas colegas, e ainda sofre um terror cotidiano com a mãe, uma fanática religiosa, é possível fazer uma conexão rápida com o sofrimento do protagonista de O FANTASMA DO PARAÍSO (1974). Ou seja, De Palma estaria mais uma vez tratando de pessoas vistas como monstros ou aberrações.

Algo que impressiona em CARRIE também é o quanto De Palma sabe estender o momento, criar o suspense na cena imediatamente anterior ao balde de sangue sendo despejado na garota, na cena da festa de formatura, e depois explodir tudo numa catarse tão intensa que ganha identificação total com o cinema de horror do período. O tom que o diretor adota para seu filme é um misto de comédia com melodrama, que parece bem estranho. Tanto que Piper Laurie, ao receber o roteiro para o filme, só percebe que teria que adotar um tom mais carregado de cores cômicas para a personagem da mãe depois de saber do passado do diretor em comédias.

As outras atrizes importantes de CARRIE também lidaram de maneira curiosa com o filme: Amy Irving queria o papel principal, mas acabou recebendo um papel coadjuvante. Sue, sua personagem, em determinado momento, tem uma dubiedade que parece vir de um ciúme ou inveja. Já Nancy Allen, a garota malvada, não percebia que sua personagem era tão má assim. Só percebeu isso depois que viu o filme montado. Até então, ela achava que estava apenas se divertindo, como de fato estava, especialmente nas cenas com John Travolta. Por outro lado, deve ter sido um tanto doloroso para ela receber tapas de verdade da professora de educação física. De Palma fazia questão que o tapa fosse doloroso e que repercutisse em uma reação forte de Allen. 

A ideia da culpa, que se manifesta bem presente e forte em TRÁGICA OBSESSÃO (1976), reaparece aqui tanto em Carrie e sua relação complicada com a mãe, quanto em Sue, que no final acaba sendo uma das poucas sobreviventes ao massacre ocorrido na festa de formatura e fica muito traumatizada com os eventos. O próprio De Palma disse em entrevista que aquilo era a ideia da culpa, que estaria sempre com ela, por mais que ela tenha tido uma boa intenção ao “emprestar” o namorado para Carrie, de modo a fazê-la feliz na festa.

Quanto ao uso do split-screen na cena-chave, o diretor diz se arrepender de ter usado, pois isso pode ter dificultado um pouco a atenção da audiência. Mas eu não tenho do que reclamar. Acho maravilhoso o modo como a personagem aparece, ora do lado esquerdo, ora do lado direito da tela, ora como vítima, ora como vingadora. Além de todo o efeito da luz vermelha que combina com o sangue que banha seu corpo e a transforma em uma espécie de anjo de vingança, culminando na cena em que ela vai embora para casa para abraçar a mãe opressora, mas também vítima de sua própria opressão. Não à toa, a morte da mãe é mostrada como uma espécie de grande orgasmo final.

terça-feira, agosto 17, 2021

AMOR MODERNO – SEGUNDA TEMPORADA (Modern Love – Season Two)



Como havia gostado bastante da primeira temporada (2019) de MODERN LOVE, fiquei logo animado quando soube que neste mês de agosto estrearia a segunda (2021), também contando com alguns episódios dirigidos por John Carney, que também é o criador da série-antologia. Para quem não lembra, Carney é aquele cara que encantou muita gente com o drama musical APENAS UMA VEZ (2007), e depois foi seguindo caminhos igualmente belos, envolvendo música e relacionamentos, como foi o caso de MESMO SE NADA DER CERTO (2013) e SING STREET – MÚSICA E SONHO (2016). Sua marca transparece nos episódios que dirige em MODERN LOVE.

"On a Serpentine Road, with the Top Down"

Esta segunda temporada começou me fazendo chorar. Acho que, como se trata de uma história sobre apego e a memórias, vai encontrar abrigo fácil nos corações de cancerianos. Na história, Minnie Driver é uma médica que está no segundo casamento e tem um apego especial a um carro que costuma deixá-la na mão com frequência. Como estão passando por aperto financeiro em casa o marido sugere a venda do veículo. Eu fiquei com o coração na mão com a perspectiva da venda e isso se acentua ainda mais quando percebemos os motivos, a partir de flashbacks. Direção: John Carney.

"The Night Girl Finds a Day Boy"

O segundo episódio tem mais uma característica de história de amor convencional, do tipo “boy meets girl”. Mas há uma questão que diferencia a história de tantas outras. A garota (Zoe Chao) tem uma condição de saúde que faz com que ela só consiga viver à noite e durma durante o dia, enquanto o rapaz (Gbenga Akinnagbe) tem uma vida, digamos, normal. Isso acaba afetando de certa forma o relacionamento. Acho bonito o modo como a personagem de Zoe olha para a noite como um momento especial, poético. Como sou uma pessoa notívaga, rolou um pouco de identificação. Mas só um pouco. Direção: Jesse Peretz.

"Strangers on a (Dublin) Train"

Carney retorna aqui com a sensibilidade habitual, mas lembrando mais a leveza de filmes como MESMO SE NADA DER CERTO, especialmente numa cena envolvendo música no trem. Há uma diferença grande entre este, mais leve e engraçado, e o primeiro, mais direcionado ao luto. Aqui, rapaz (Kit Harington) e moça (Lucy Boynton) se conhecem em um trem, se gostam, se conectam, e fazem um pacto semelhante ao de um famoso filme. O tom cômico permeia a narrativa e há espaço até para brincadeiras metalinguísticas, como citação a GAME OF THRONES. Gosto tanto da tensão para o reencontro, quanto das escolhas de Carney para a conclusão, de modo a fugir do clichê. E ainda apresentar uma história que se passa no início da pandemia do Coronavírus. Miranda Richardson aparece com o peso da idade, no papel da mãe da garota. Direção: John Carney

"A Life Plan for Two, Followed by One"

O mais fraco dos episódios até agora, este aqui trata da relação de amizade entre um rapaz latino e uma moça negra desde a infância até o high school (e depois). Ela é apaixonada por ele; ele a tem como amiga. É um tipo de situação que certamente já aconteceu com muita gente e pode gerar identificação. Mas acredito que tenha faltado capacidade de nos solidarizar com os personagens. De positivo, tem a diversidade racial que comparece com certa naturalidade ao longo da narrativa. Direção: Martha Cunningham.

"Am I...? Maybe This Quiz Will Tell Me"

Belo coming of age sobre garota (Lulu Wilson, jovem atriz presente em vários títulos de horror) que tem uma quase certeza de que é lésbica. Conhece uma menina na escola por quem se apaixona e começa a aproveitar os momentos e possibilidades de estar junto dela. Como todo filme feito que aborda essa idade na vida, há sempre os momentos de falta de jeito em como lidar com aquilo que é tão novo, e há também, felizmente aqui, os momentos de alegria. Este episódio me pareceu mais compacto que os demais, mas talvez seja a boa edição. Direção: Logan George e Celine Held

"In the Waiting Room of Estranged Spouses"

Talvez o episódio mais comum no que se refere a histórias de amor. Por mais que não seja tão comum assim haver "troca de casal" no meio de uma separação. Muito da força deste episódio está nos seus protagonistas. Gosto muito de Anna Paquin, com quem tive um relacionamento de cinco anos, e seu parceiro de cena, Garrett Hedlund. Ambos se encontram no mesmo consultório de psicanálise para tratar dos traumas da separação de seus respectivos casamentos - isso na verdade é mesmo fora do comum - e começam um relacionamento bem agradável de acompanhar. Não tem nada de tão brilhante no episódio, mas sua simplicidade encanta. Direção: John Crowley

"How Do You Remember Me?"

Como aconteceu na primeira temporada, quando a atriz Emmy Rossum foi convidada para dirigir um dos episódios desta série-antologia (o meu favorito da temporada passada, inclusive), aqui temos Andrew Rannells, mais conhecido como o ator que faz o amigo das meninas da série GIRLS, dirigindo justamente uma história sobre um caso de amor (rápido, mas marcante) entre dois jovens homens. A força deste episódio está em saber lidar com a questão da memória, o quanto ela pode nos trair ou transformar momentos a partir de fragmentos que utilizamos. Quase todo o episódio é construído de flashbacks dúbios, o que não deixa de ser muito interessante para tratar da noção de verdade, mas também, claro, da noite inesquecível dos dois rapazes. Direção: Andrew Rannells.

"A Second Embrace, with Hearts and Eyes Open”

Como já é de se esperar, quando vemos o nome de John Carney nos créditos de abertura como diretor, este episódio de despedida da segunda temporada é bastante sensível. Temos a história de uma tentativa de reativação de um casamento, depois de anos da separação. A indicada ao Oscar Sophie Okonedo é uma mãe que anda um pouco cansada e se sente quase uma fraude no papel de mãe dedicada. Ao mesmo tempo, o pai das crianças (Tobias Menzes) começa a se tornar cada vez mais presente, atencioso e dedicado com as duas meninas que os dois tiveram no relacionamento. Como se trata de um episódio com um momento de virada, é melhor não falar muita coisa a respeito para não estragar as surpresas. Além do mais, adorei terem terminado com uma canção linda de Neil Young que tem tudo a ver com o tema do episódio: "Only love can break your heart"." Direção: John Carney.

Agradecimentos à Paula pela companhia ao longo dos episódios.

segunda-feira, agosto 16, 2021

ALL HANDS ON DECK (À l’Abordage)



Um dos filmes que mais me deu prazer de ver na semana passada foi ALL HANDS ON DECK (2020), de Guillaume Brac, cineasta que ainda está sendo descoberto aqui no Brasil, mas que já possui em seu currículo cinco longas, além de alguns curtas. Boa parte desses filmes, assim como ALL HANDS ON DECK, estão em cartaz na MUBI, e isso é uma excelente oportunidade para conhecer a poética do diretor e acompanhar sua evolução. Antes desse filme, ele havia feito um documentário chamado ILHA DO TESOURO (2018), sobre uma região de Paris que funciona como um escape para o estresse da vida cotidiana, fornecendo lazer e diversão especialmente durante o verão. Teria sido uma maneira do cineasta se aproximar do estado de espírito de ALL HANDS ON DECK. (Aliás, o título em inglês foi adotado pela MUBI, em vez de escolherem um em português ou manterem o original francês; portanto, até o momento este é o título oficial brasileiro.)

A delícia do filme de Brac está em trazer de volta um bocado do espírito dos filmes de verão de Éric Rohmer, especialmente CONTO DE VERÃO e PAULINE NA PRAIA. Mas, embora a influência de Rohmer pareça evidente, há aqui uma mudança profunda, até pelo diferencial do momento em que estamos vivendo. O fato de o filme contar com dois protagonistas negros já traz uma mudança e tanto. Estamos no século XXI e certas opções éticas ou antiéticas usadas anteriormente não cabem mais, por mais que o cinema francês seja um dos mais livres do mundo em tentar propor discussões mais polêmicas em se tratando de temas hoje mais complexos.

Basta lembrarmos dos casos recentes de filmes que lidaram de maneira pouco usual com os temas do estupro (ELLE, de Paul Verhoeven) e da gravidez não consentida (ENORME, de Sophie Letourneur). No caso da questão racial em ALL HANDS ON DECK, ela nem é citada em palavras. Pelo menos não explicitamente. E nem os protagonistas parecem sofrer preconceito por causa da cor da pele.

Na trama (que parece tão livre que talvez nem seja interessante chamar de trama), Félix (Eric Nantchouang) é um rapaz negro que conhece numa festa a jovem branca Alma (Asma Messaoudene). Eles passam a noite juntos no parque, mas logo ela corre para pegar um trem. Ela passaria uns dias com a família em uma cidade no sul da França, a fim de aproveitar o verão e o que aquele lugar tem para oferecer. Félix, sentindo-se confiante, acredita que é uma boa ideia fazer uma surpresa à moça, aparecendo por lá sem avisar. Assim, convida o amigo Chérif (Salif Cissé), um sujeito bem simpático e tranquilo, que, ao contrário do amigo, não tem muita sorte com as mulheres e vive há tempos sozinho. Para ele, aquela viagem seria uma maneira de desopilar do trabalho, tanto que ele inventa uma mentira de que sua mãe havia morrido.

O terceiro personagem masculino a entrar em cena é Édouard (Édouard Sulpice), que é meio que enganado pela dupla de amigos, que consegue carona com ele, sendo que ele acredita que daria carona para duas garotas (eles usaram um perfil feminino num aplicativo). Édouard, rapaz branco e meio mauricinho, que usa o carro da mãe, acaba aceitando levar os dois rapazes com ele, apesar de ser alvo de bullying no trajeto. Ele acaba ficando preso junto a eles, depois de um contratempo com o carro. Como o conserto do carro só se daria em uma semana, ele não tem alternativa a não ser ficar ali, inclusive dormindo na mesma barraca de um dos amigos, Chérif, o mais gentil.

E o filme vai seguindo por caminhos inesperados. Por ser meio road movie e meio filme de verão, há uma certa tranquilidade que contamina a narrativa. Não que os personagens não passem por situações infelizes ou inquietantes. A recepção de Alma a Éric não é tão boa quanto ele esperava; e Chérif começa a ficar bastante interessado em Héléna, uma simpática mãe solteira cuidando de um bebê que ele conhece nos momentos em que fica sozinho. Enquanto isso, Édouard vai também procurando se adaptar e viver aqueles dias da melhor maneira possível.

Adoro o modo como o filme se encaminha, em seus momentos finais, fazendo-nos sentir aquele calorzinho no coração, mesmo com alguns momentos agridoces na narrativa. O desenrolar da história de Chérif é que nos pega de maneira mais emotiva. Adoro a cena do karaokê, de seu clima alto astral. E creio que nunca mais ouvirei "Aline", clássico dos anos 1960 de Christophe, sem fazer associação à cena do filme.

sábado, agosto 14, 2021

A FONTE DA DONZELA (Jungfrukällan)



Se esses tempos de pandemia me fizeram ver mais filmes – menos do que gostaria, na verdade – e por um lado tive o prazer de retomar a fase de peregrinações que costumava fazer em outros tempos, por outro, notei que a quantidade de filmes essenciais de grandes diretores é tão imensa que vai demorar um bom tempo para que eu consiga vê-los, mesmo se eu tivesse muita dedicação e disciplina. Neste um ano e meio de pandemia, terminei apenas duas peregrinações: a de Abel Ferrara e a de Fritz Lang. E no momento, estou me dedicando à obra de Brian De Palma. Ou seja, ainda é muito pouco.

E aí me pego vendo uma obra de Ingmar Bergman, um cineasta que tem em seu currículo cerca de 70 créditos na direção. E fico um pouco assustado e triste, pois me interessa muito ver sua obra completa. Ou pelo menos tudo aquilo que estiver acessível. O meu caso com Bergman é curioso, pois as melhores experiências que tive foram no cinema, nas oportunidades de ouro que surgem de vez em quando. Ao sair, por exemplo, da sessão de PERSONA (1966), eu saí com a certeza de que jamais perderia outras oportunidades de rever esse filme. Talvez tenha se tornado o meu favorito. E olha que também tive a chance de ver na telona outras obras-primas, como O SÉTIMO SELO (1957), MORANGOS SILVESTRES (1957), GRITOS E SUSSURROS (1972) e SONATA DE OUTONO (1978).

Enquanto não é possível outras experiências desse tipo na sala escura, é no conforto do lar que temos uma maior possibilidade de ver seus filmes. O escolhido da vez foi A FONTE DA DONZELA (1960), um filme que, por se passar na Idade Média, guarda mais relação com O SÉTIMO SELO do que com os dramas contemporâneos que o cineasta costumava se debruçar com mais frequência. Para mim foi um deleite visual e catártico difícil de narrar. A beleza plástica encanta logo de cara. E fiquei me perguntando, assombrado, como um sujeito que veio do teatro tem um olhar tão cinematográfico. Mas talvez esse tipo de pergunta seja bobagem minha. Até porque eu acho que se William Shakespeare vivesse nos dias de hoje ele seria cineasta e não dramaturgo.

Muito da força visual de A FONTE DA DONZELA está no excelente trabalho de fotografia de Sven Nykvist. Sua fotografia linda em preto e branco valoriza tanto o céu (no formato “clássico” da janela de aspecto utilizada, o céu parece ser ainda maior frente aos mortais), quanto os rostos e as sombras. Naquele momento, Nykvist não era ainda o grande parceiro de Bergman que seria. Na verdade, ele entrou no filme por um desentendimento do cineasta com seu maior parceiro na fotografia, Gunnar Fisher. Nykvist passaria, a partir de então, a ser, nas próximas décadas, o seu maior parceiro de construção visual. Em fins dos anos 1970, inclusive, começaria a trabalhar em Hollywood também.

A FONTE DA DONZELA é um dos filmes mais acessíveis de Bergman, e também um dos mais compactos em sua estrutura narrativa. O que me impressionou logo de início foram os diferentes olhares para a vida, e depois há a questão da diferença de classes, a religião (o embate entre cristianismo e paganismo), e o tom de fábula que nos faz acompanhar a trajetória da jovem virgem Karin, uma espécie de princesa daquela família dos tempos do feudalismo.

A cena do ataque à garota (estupro, seguido de assassinato) é bem ousada, cruel e tensa. E aquele final de arrepiar, do pai (Max Von Sydow) olhando para o céu, para Deus, depois de tudo que houve, sendo que ele mesmo estava com as mãos sujas de sangue. Ele faz perguntas indignadas que normalmente também fazemos quando perdemos entes queridos, principalmente em circunstâncias extremamente cruéis. Será possível que Deus não está vendo nada? E, se está, por que não age para impedir?

Na verdade, o final até me pareceu uma concessão, levando em consideração o declarado ateísmo de Bergman, ou pelo menos o desencanto com sua herança cristã. Poderia ter acabado de maneira bem mais amarga, mas também gosto desse ar quase "dreyeriano" com que o filme se encerra, ao mostrar um milagre, a fonte que nasce debaixo da cabeça da jovem morta.

A água aparece aqui como um símbolo mais próximo do cristianismo, enquanto o fogo, presente logo no começo, com a figura de Kateri, a garota grávida e indignada por ser bastarda e estar prestes a dar à luz a um filho bastardo, amaldiçoa a virgem, clamando por Odin e preparando um feitiço. Essa questão água e fogo até tem sentido do ponto de vista da astrologia: Jesus veio instaurar a Era de Peixes (água), ajudando a enterrar a Era de Áries (fogo), dos deuses tidos como pagãos.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

sexta-feira, agosto 13, 2021

PAULO JOSÉ E TARCÍSIO MEIRA, A PARTIDA DE DOIS GIGANTES



Nesta semana recebemos duas tristes notícias em menos de 24 horas. Dois dos maiores atores do cinema e da televisão brasileiros foram embora deste plano astral. No caso de Paulo José (1937-2021), fiquei mais triste, pois a própria figura que ele encarnava já me era muito simpática. Na minha infância, assistia com prazer na televisão preto e branco da minha casa a série SHAZAM, XERIFE & CIA. (1972-1974), em que Paulo José (Shazam) é parceiro de Flávio Migliaccio (Xerife). Minha memória dessa série é bem nebulosa, mas ficou uma sementinha de carinho imenso por esses dois atores (Migliaccio se foi no ano passado, tirando a própria vida, com desgosto do país). E depois, mais velho, pude me encantar com o personagem Paulo, de TODAS AS MULHERES DO MUNDO (1966), de Domingos de Oliveira, filme feito como uma forma de reconquistar um grande amor. 

Já Tarcísio Meira (1935-2021), é mais conhecido como um ator de televisão, mas contribuiu com filmes importantes nas décadas de 1960 a 1990. Aliás, há a curiosidade de que tanto Paulo José quanto Tarcísio Meira interpretaram o personagem mais icônico da filmografia de Walter Hugo Khouri, o mulherengo inconformista e existencialista Marcelo. Paulo José o interpretou como um jovem inquieto em AS AMOROSAS (1968), enquanto Tarcísio o personificou como quase um vampiro em EU (1987). Ambos são filmes fabulosos.

Ainda sobre Tarcísio, guardo também com carinho certos personagens que ele incorporou na televisão. Quando era criança e era apaixonado por uma menina da terceira série, estava sendo exibida a novela cômica GUERRA DOS SEXOS (1983-84), em que ele contracena principalmente com Glória Menezes. (Mas na época eu ficava mesmo era fascinado com a beleza de Maitê Proença e Maria Zilda.) Outro papel de Tarcísio muito marcante para mim foi o do bruto Hermógenes, em GRANDE SERTÃO: VEREDAS (1985). Além disso, destaco o momento em que ele interpretou o escritor Euclides da Cunha em DESEJO (1990), uma história trágica de infidelidade.

Quando morre algum cineasta ou algum ator querido, eu me sinto na obrigação de homenageá-lo. Então, estes dois filmes foram frutos da vontade de vê-los em cena, mas também da vontade de ver bons ou ótimos trabalhos. Pois, ao contrário do que muita gente pensa ou imagina, o nosso cinema é imenso.

DIAS DE NIETSCHE EM TURIM

Escolhi o filme errado para homenagear Paulo José. Afinal, o ator só aparece muito rapidamente no começo e no final de DIAS DE NIETSCHE EM TURIM (2001), e sem pronunciar nenhuma palavra. Assim, fico devendo uma real homenagem ao tão querido ator. O lado bom foi poder finalmente ver esta maravilha de experimentação de Júlio Bressane, que brinca brilhantemente com os poucos recursos (financeiros) que tinha à disposição e mais uma vez presta tributo a figuras históricas. Ele já havia feito SERMÕES – A HISTÓRIA DE ANTÔNIO VIEIRA (1989), SÃO JERÔNIMO (1999) e ainda faria o maravilhoso CLEÓPATRA (2007), talvez o meu favorito dele. A opção por fazer um filme mudo, exceto pela música, pela voz do narrador (Nietzsche, interpretado por Fernando Eiras) e por sons de ruas, outros ruídos e música, estabelece as regras, mas a partir de então há toda uma liberdade para brincar com a câmera, que às vezes rodopia como que para mostrar o estado de espírito do personagem.

O filme é também uma celebração da beleza e da arte, pelas próprias palavras de Nietzsche, que escreve mui alegremente em suas cartas, feliz por estar gostando muito da cidade de Turim (ficou encantado com Carmen de Bizet, que viu pela primeira vez no teatro), após passar por um período muito ruim na Alemanha (ele diz ter se sentido crucificado lá). A celebração da alegria dionisíaca também comparece com entusiasmo em suas falas/escritos. E como a beleza, para Bressane, também está presente nos corpos nus femininos, ele dá um jeito de mostrar, ainda que muito rapidamente, imagens de corpos nus - ou partes de corpos -, como que mais um motivo para a alegria de viver terrena.

Aliás, achei muito interessante ter uma imagem do filósofo, que pra mim sempre me pareceu muito raivoso, aqui aparecendo feliz. Bressane demorou uns cinco anos filmando a cidade e depois partiu para a montagem. As personagens de Mariana Ximenes e Leandra Leal, tão lindas quanto jovens, parecem figuras divinas a olhar com sabedoria e sorrisos enigmáticos para o nada (ou para o tudo). No mais, o filme é um incentivo para que nós nos aprofundemos na obra (e um pouco na biografia) do filósofo, a fim de desfrutar mais essa experiência, e ter mais um motivo para revê-lo. No final, há a surpresa de ver imagens reais de Nietzsche, já bastante abatido e muito doente, completando o elenco nos créditos.

MÁSCARA DA TRAIÇÃO

O título escolhido por mim para homenagear Tarcísio Meira foi MÁSCARA DA TRAIÇÃO (1969), um filme de golpe bem rocambolesco e divertido, envolvendo um triângulo amoroso formado pela mulher (Glória Menezes ) de um chefe autoritário (Tarcísio) e um empregado da companhia (Claudio Marzo) com talento para as artes. A trama começa a empolgar depois de uns 25 minutos de filme, quando o golpe fica estabelecido, mas não o suficiente para que saibamos de tudo. Vamos sabendo à medida em que as coisas vão acontecendo. Tarcísio Meira está ótimo fazendo papéis diferentes e o filme ainda traz a simpatia do já citado Flávio Migliaccio.

Achei bom demais descobrir a existência deste filme, o que só prova que o nosso cinema é uma caixinha de surpresas. Existem pérolas escondidas em épocas variadas. Filmes que fogem do que normalmente se espera de uma produção brasileira do período. Assim, por mais que eu não tenha ficado totalmente satisfeito com a conclusão da trama, não dá pra negar a inventividade do filme e a coragem de não se importar com a inverossimilhança. Agora, é impressão minha ou perto do final os rolos estão trocados?

MÁSCARA DA TRAIÇÃO é considerado um filme bem atípico na carreira do diretor Roberto Pires, que é mais conhecido por trabalhos de temática social, como A GRANDE FEIRA (1961) e TOCAIA NO ASFALTO (1962). E o que vemos aqui é um filme que se assemelha muito ao cinema de ação americano ou a séries como MISSÃO: IMPOSSÍVEL, mas principalmente a A OUTRA FACE, de John Woo.   

segunda-feira, agosto 09, 2021

VAL



“Now that it’s more difficult to speak, I want to tell my story more than ever.”
(Val Kilmer)

Ver o documentário VAL (2021), dirigido por Ting Poo e Leo Scott, me fez pensar sobre o que perdemos ou podemos perder na vida. Perder a voz não é tão triste quanto perder a visão ou a audição ou algum membro, superior ou inferior, mas certamente é um baque para uma pessoa que construiu sua carreira com o rosto, o corpo e a voz. Val Kilmer passou por uma traqueostomia recentemente, parte da luta contra um câncer de garganta iniciada em 2017.

Como não estava sabendo das condições físicas do ator, fiquei bastante comovido com seu momento atual, mas também com toda a história de vida que ele, muito sensivelmente, resolve contar, aproveitando que sempre teve por hábito, desde a infância, filmar coisas de sua vida, com diferentes tipos de tecnologia acessíveis – há muitos registros em VHS, por exemplo.

Assim, há desde momentos com seu irmão pequeno Wes, a decadência do pai (aliás, como este é um filme sobre decadência triste de figuras masculinas, hein!), os primeiros filmes, o evento THE DOORS, a vez em que ele foi o Batman, sua oportunidade de ter um contato com Marlon Brando em um filme cheio de confusões nos bastidores etc. Mas o tanto que o filme nos aproxima da vida pessoal de Kilmer é também uma maneira de mostrar o carinho dele pelos filhos, sua fragilidade emocional nos momentos difíceis, como a morte de um ente querido, frustrações no meio do show business e situações mais recentes de cortar o coração.

Minha aproximação com os filmes estrelados por Val Kilmer começou provavelmente com a comédia TOP SECRET – SUPERCONFIDENCIAL (1984), uma estreia no cinema já como protagonista. Em seguida, houve o sucesso de TOP GUN – ASES INDOMÁVEIS (1986), em que ele contracenou com Tom Cruise e até hoje é conhecido pelo apelido de “Iceman”. Hoje, na decadência, inclusive, quando sai em turnê para promover filmes do passado e assinar cartazes, muitos o chamam por esse apelido.

O documentário conta também uma história bonita em que ele conhece aquela que seria sua esposa, uma atriz de teatro inglesa chamada Joanne Whalley, que o destino tratou de uni-los nas filmagens da fantasia WILLOW – NA TERRA DA MAGIA (1988). O documentário tratará de mostrar o início, o casamento e a situação atual da relação entre Val e Joanne. Algumas imagens são bem comoventes.

Mas foi com THE DOORS (1991), que comecei a admirar o ator. Até porque ele passa por uma transformação fantástica ao incorporar Jim Morrison. Vi no cinema e foi uma das experiências mais intensas que já tive na telona. E que me transformou em fã da banda também. Antes de viver o vocalista, ele já havia tentado, com muito esforço, trabalhar com grandes diretores, como Martin Scorsese (em OS BONS COMPANHEIROS) e Stanley Kubrick (em NASCIDO PARA MATAR). Seu esforço para viver Jim Morrison, porém, valeu a pena, embora tenha afetado seu casamento, já que ele personificou o personagem por cerca de um ano, inclusive dentro de sua casa, o que não agradava muito a esposa.

Val Kilmer não faria outro personagem tão marcante em sua vida. Ficou frustrado com o fato de mal poder se mover naquela “armadura” de BATMAN ETERNAMENTE (1995) e recusou repetir o papel na continuação. Muitos ficaram admirados. Afinal, quem é que recusa o papel de Batman em Hollywood? Em vez disso, ele teve prazer em fazer FOGO CONTRA FOGO (1995) no mesmo ano, com bem mais liberdade, mesmo sendo um filme de grande porte – feito por um grande autor e com dois grandes astros à frente.

Há também o caso envolvendo as complicadas filmagens do desastre que foi A ILHA DO DR. MOREAU (1996), em que ele só trabalhou praticamente para ter a oportunidade de contracenar com Marlon Brando. Já os demais filmes, são citados muito rapidamente. É como se o restante da filmografia de Kilmer fosse pouco importante. Talvez sejam. Dos filmes posteriores que ele fez, eu destacaria VÍCIO FRENÉTICO (2009), de Werner Herzog, e PALO ALTO (2012), de Gia Coppola, mas em ambos ele é coadjuvante.

Nos anos 2000 em diante, momento em que o cinema passou a ter um valor menor em detrimento da vida privada de Kilmer, o documentário também tende a se aproximar mais das situações do cotidiano, das crises no casamento, da relação com os filhos, das questões financeiras etc. 

Um detalhe importante de VAL é que é um documentário que não lida muito com o aspecto mais problemático da personalidade do ator, e alguns vêem isso como uma falha. Porém, como me emocionei bastante com o filme, narrado por Jack, seu filho, que usa escritos de Val, para ser a voz do ator, não senti falta de nenhum mea culpa do astro em sua trajetória profissional ou pessoal. Afinal, todos somos falhos.

sábado, agosto 07, 2021

O ESQUADRÃO SUICIDA (The Suicide Squad)



Talvez um ponto fraco da Marvel estando na Disney seja essa falta de liberdade para fazer filmes mais direcionados a públicos mais adultos. Tanto que a Fox até tomou a liberdade de usar os heróis da Casa das Ideias em filmes mais carregados na violência e mais apropriados para certos personagens, como foi o caso dos filmes do Logan e do Deadpool. Já a Warner tem uma tradição nascida dos filmes de gângsters e isso acaba combinando com a proposta de certos heróis e vilões (Batman e Coringa, por exemplo) ou com certos diretores (Christopher Nolan, Zack Snyder).

Fazer esse tipo de comparação faz sentido, pois o diretor de O ESQUADRÃO SUICIDA (2021) é James Gunn, um cara saído da Troma, que começou com filmes B de horror, e que teve a oportunidade de fazer na Marvel GUARDIÕES DA GALÁXIA (2014) e sua sequência (2017). E dentro de um esquema que costuma despersonalizar o trabalho dos diretores, é bom dizer que os filmes de Gunn, dentro do MCU, são os que mais têm uma personalidade própria, ainda que podado de maiores liberdades, por ser um filme-família e isso é totalmente compreensível.

Por causa de uma demissão da Marvel, devido a problemas de “cancelamento” (embora depois ele fosse recontratado para o terceiro filme vindouro dos Guardiões da Galáxia), ele foi convidado pela Warner/DC para desfazer a tristeza que foi o primeiro ESQUADRÃO SUICIDA (2016), de David Ayer. E felizmente, a carta branca que deram a Gunn funcionou muito bem e temos aqui uma obra que brinca com as possibilidades do gore, da ultraviolência em filmes de super-heróis - ou supervilões, no caso - e com certas liberdades na própria estrutura narrativa.

Embora seja um filme de “homens em missão”, a missão não importa tanto. Talvez importe mais perto do final. O que mais importa é a jornada dos “heróis”, homens e mulheres e um tubarão com pernas, muitos deles psicopatas, trocando experiências, traumas e explicitando seus distúrbios. Destaque para a conversa entre o Sanguinário (Idris Elba) e a Caça-Ratos 2 (a portuguesa Daniela Melchior) no ônibus sobre inseguranças e promessas de proteção mútua. Eles, junto com o líder Rick Flag (Joel Kinnaman), são os personagens com mais pé no chão no grupo, composto de zoados da cabeça.

E existem umas criaturas bem estranhas no grupo, como o Tubarão Rei (voz de Sylvester Stallone), o Pacificador (John Cena, em momentos inspirados), o Bolinha (David Dastmalchian) e a já nossa conhecida e muito querida Arlequina (Margot Robbie), que ganha um momento-solo lindíssimo: sangrento, colorido e com uma excelente coreografia.

Então, é curioso como em meio ao caos que é esse olhar mais diferenciado de Gunn, ele consegue estabelecer uma espécie de harmonia entre os personagens, tanto os mais psicóticos, quanto aqueles que funcionam como uma bússola moral no grupo e que acabam por transformar esses vilões em quase heróis no final.

Além do mais, por mais que seja um filme que já comece de maneira bem rápida e objetiva, sem muitas explicações a não ser o básico, com as ordens da chefe vivida por Viola Davis, há esses momentos de respiro que trazem o filme para um caminho menos óbvio dentro de uma narrativa de filmes de super-seres, como é o caso da cena do bar, quando o grupo chega a Corto Maltese (homenagem a Hugo Pratt?), a nação latino-americana que faz lembrar Cuba e que talvez seja um dos calcanhares de Aquiles do filme, em se tratando de usar os velhos arquétipos de nações latinas invadidas ou salvas por americanos, tão comuns em fitas de ação dos anos 1980.

Lá pelo final, como se não bastassem os excessos, há ainda uma homenagem a certos filmes de monstros gigantes, só que de um jeito bem mais colorido. Além de tudo, o gosto de Gunn por um bom rock´n´roll na trilha sonora enche o filme de muita porrada na orelha. Assim, com muito humor, gore, transgressão e até uma breve cena de nudez que parece uma homenagem a BACURAU (será?), tanto a tradição sangrenta da Warner segue firme e forte, quanto Gunn consegue tirar o gosto ruim que havia ficado com o filme de 2016.

terça-feira, agosto 03, 2021

TRÁGICA OBSESSÃO (Obsession)



A revisão da obra de Brian De Palma está sendo mais prazerosa e surpreendente do que eu imaginava. Não apenas ver os filmes: ler sobre eles tem sido uma experiência fantástica. Tanto que as informações interessantes são tantas que fico até meio perdido, sem saber por onde começar. No caso de TRÁGICA OBSESSÃO (1976), para muitos o melhor filme de Brian De Palma, é um título que eu acreditava ter uma memória melhor dele que os demais, já que o vi pela primeira vez em 2011. Talvez pelo aspecto onírico, esse seja um dos trabalhos que mais carrega esse tipo de sensação pouco palpável. A fotografia, inclusive, ajuda nesse sentido, embora não seja uma fotografia que me agrade tanto, pelas cores não serem mais vivas.

A trama reflete bastante o filme homenageado, UM CORPO QUE CAI, mas também outro Hitchcock, REBECCA, A MULHER INESQUECÍVEL. Com roteiro de Paul Schrader, a partir de uma história criada por De Palma e Schrader, a história se inicia com uma festa de aniversário de 10 anos do casamento de Michael e Elizabeth Courtland (Cliff Robertson e Geneviève Bujold). É uma noite alegre, mas que termina em tragédia ao final, com Elizabeth e a filha de nove anos, Amy, sendo sequestradas.

Michael, em vez de pagar aos sequestradores a quantia pedida, resolve tomar uma atitude mais perigosa, envolvendo a polícia, uma mala com de cédulas de papel e um rádio transmissor para que a polícia encontre facilmente os criminosos. A operação, porém, dá errado, com os sequestradores fugindo com as vítimas e o carro deles colidindo a um caminhão de petróleo. Depois disso, a trama avança de 1959 para 1975, embora o rosto de Robertson permaneça o mesmo. Aliás, seria interessante se a trama fosse iniciada em 1958, ano de lançamento de UM CORPO QUE CAI, hein?!

Na trama de 1975, Michael, ao visitar uma igreja em Florença, na Itália, dá de cara com uma mulher que se parece tremendamente com sua falecida esposa Elizabeth. Como se fosse uma espécie de reencarnação dela. Sandra, vivida pela mesma Geneviève Bujold, aceita os flertes e os convites para almoço, jantar, passeio etc. de Michael. E não demora muito para que ela aceite se casar com o empresário e conhecer sua mansão em Nova Orleans, um espaço habitado pelo fantasma de Elizabeth nos quadros e em todo o lugar. Elizabeth é como uma madonna, talvez por não mais existir de fato. Ou talvez a questão católica também seja interferência de Paul Schrader no roteiro. Mas De Palma imprime uma assinatura fortíssima. A sua vida está em seus filmes, como já pudemos conferir em outros textos, sobre outros filmes.

Em TRÁGICA OBSESSÃO, a própria Sandra quer também se parecer com Elizabeth; não é apenas Michael que deseja ter uma versão de sua falecida esposa de volta. É curioso como a trama do filme é mais lenta do que o que normalmente estamos acostumados a ver em obras do diretor, mas ainda assim muita coisa acontece de maneira bastante rápida, como a questão envolvendo o sócio de Michael, Bob (John Lithgow), e a conclusão cheia de surpresas e um plot twist embasbacante. 

Através de entrevistas ficamos sabendo que De Palma se identificava muito com a personagem de Sandra, uma pessoa que queria se vingar do pai e por isso aceita participar de uma trama para, mais do que ganhar dinheiro, principalmente resolver os daddy issues que a atormentam. Ela se sentiu abandonada pelo pai no sequestro, enquanto também nutre uma espécie de atração por ele. Dançar com Michael é uma espécie de realização de um sonho. E a questão do incesto (que provavelmente não se consumou) foi um problema inclusive para a distribuição do filme.

A identificação de De Palma com Sandra tinha a ver com o fato de que ele, assim como a personagem, também se sentiu abandonado pelo pai. O pai do cineasta era um workaholic, passava dias fora de casa, no trabalho, e ainda foi descoberto que ele traía a esposa com uma enfermeira. Essa questão da traição levaria a mãe do cineasta a tentar o suicídio e imagina-se o quanto esse tipo de situação pode levar alguém a demonizar o pai e elevar à mãe a uma imagem de santa, ou algo do tipo. Anos depois, De Palma teria rancor da mãe, por ela ter manipulado a ele e a seus irmãos para que culpassem o pai deles por tudo; para que não tivessem acesso à versão do pai “traidor”.

Outro elemento muito interessante do filme é a identificação de Sandra/Amy com Elizabeth, como aconteceu de certa forma em IRMÃS DIABÓLICAS (1972), o filme sobre as gêmeas siamesas. Isso acontece já no momento em que mãe e filha estão presas pelos sequestradores. Ela se identifica tanto com sua mãe que, ao crescer, lembra-se que elas estiveram, lado a lado, amarradas pelos sequestradores, como gêmeas siamesas. Agora, adulta, ela teria a chance de cumprir o que sua mãe não conseguiu, dando uma segunda oportunidade a Michael, ao mesmo tempo que o punia. No final, De Palma entrega uma cena magnífica do ponto de vista formal, mas também impressionantemente aflitiva e enternecedora do ponto de vista dramático.

No ano do último filme de Alfred Hitchcock, TRAMA MACABRA, De Palma estava ali, não para ser o maior discípulo do mestre, mas também para mostrar, para quem tivesse olhos para ver, o gigante que já havia se transformado. Ainda que TRÁGICA OBSESSÃO não tivesse sido um grande sucesso de bilheteria, o sucesso popular viria naquele mesmo ano. Mas isso nem é o mais importante. O mais importante é o quanto aqui e em outros tantos filmes De Palma se mostraria tanto um mestre na forma, quanto um cineasta disposto a usar o cinema como um divã para ajudar a curar suas feridas.

domingo, agosto 01, 2021

UM LUGAR SILENCIOSO – PARTE II (A Quiet Place – Part II)



Quando John Krasinski apresentou ao mundo o primeiro UM LUGAR SILENCIOSO (2018), houve muita surpresa. Afinal, sua pouca experiência com um tipo de produção de larga escala, ou mesmo com filmes de horror, sci-fi ou suspense era inexistente. O que ele havia feito até então como diretor eram dois filmes pequenos e pouco conhecidos. Para a grande maioria das pessoas, Krasinski era Jim Halpert, aquele cara simpático e querido da série THE OFFICE. Mas o seu filme de mundo pós-apocalíptico habitado por sobreviventes tentando se manter vivos com a presença de monstros alienígenas ganhou a muitos.

Nem Krasinski nem a Paramount esperavam tanto sucesso e o sucesso chamou logo uma continuação, que deveria estrear no ano passado, mas que foi adiada até que houvesse uma melhora no quadro da pandemia nos Estados Unidos. Para o diretor, o filme não merecia ser lançado diretamente em streaming. E de fato UM LUGAR SILENCIOSO – PARTE II (2020) merece a apreciação na telona, de preferência na melhor sala de cinema disponível na cidade. Se houver uma sala IMAX, melhor ainda. Perfeito, eu diria. Tive o prazer de ver numa IMAX e só fiquei pensando no quanto o filme se perde na telinha, já que se trata de uma experiência bastante imersiva.

Sem ter mais a novidade a seu favor, como tinha quando fez o primeiro filme, Krasinski retoma de onde o primeiro acaba para seguir sua história com momentos tão bons ou às vezes até melhores que no anterior. A segunda parte já nos ganha no prólogo, e embora o restante do filme não consiga ser tão bom quanto esse início, o cineasta tem um senso de timing admirável, fazendo uma obra compacta, enxuta, sem gorduras.

Seu senso de timing se mostra muito bom na montagem paralela das cenas de ação e na maneira como ele introduz novos personagens e novas situações que fogem da estrutura habitual do estar sempre fugindo e se esquivando dos monstros cegos, como a cena do barco ou a cena na ilha. Em alguns momentos, com os heróis de posse de suas armas e enfrentando os monstros frente a frente, até lembra filmes de super-heróis, mas heróis que não sabemos se sobreviverão, conforme ocorre no primeiro filme.

Foi ótima a adição de Cillian Murphy no elenco e por mais que sintamos falta do personagem de Krasinski, essa falta faz parte do sentimento de luto que compartilhamos com os personagens, inclusive com o sentimento da jovem Regan (Milicent Simmons), a filha mais velha e deficiente auditiva dos Abbots. Aliás, a personagem ganha um peso maior que a própria mãe, Evelyn (Emily Blunt). Os verdadeiros protagonistas da ação nesta segunda parte são Regan e Emmett, o personagem de Murphy.

Algumas cenas memoráveis e que fazem a gente ficar com as mãos grudadas na poltrona: além de todo o prólogo, com suas sequências assustadoras e cheias de vida, há a cena do barco, a invasão na ilha, a armadilha machucando o pé do pequeno Marcus (Noah Jupe); a tentativa de fugir de um dos monstros usando água; a falta de oxigênio no espaço de maior segurança contra a criatura; entre outras. Ao final, fica a certeza de que virá um terceiro filme, sendo essa parte dois um filme do meio de uma provável trilogia. 

O terceiro filme, inclusive, já está em pré-produção e será dirigido por Jeff Nichols, um cineasta que tem em seu currículo dramas familiares, sendo que um deles, O ABRIGO, é sobre uma família se protegendo de algo e com toques de horror psicológico e um clima de apocalipse iminente. Pode dar muito certo.