segunda-feira, agosto 16, 2021
ALL HANDS ON DECK (À l’Abordage)
Um dos filmes que mais me deu prazer de ver na semana passada foi ALL HANDS ON DECK (2020), de Guillaume Brac, cineasta que ainda está sendo descoberto aqui no Brasil, mas que já possui em seu currículo cinco longas, além de alguns curtas. Boa parte desses filmes, assim como ALL HANDS ON DECK, estão em cartaz na MUBI, e isso é uma excelente oportunidade para conhecer a poética do diretor e acompanhar sua evolução. Antes desse filme, ele havia feito um documentário chamado ILHA DO TESOURO (2018), sobre uma região de Paris que funciona como um escape para o estresse da vida cotidiana, fornecendo lazer e diversão especialmente durante o verão. Teria sido uma maneira do cineasta se aproximar do estado de espírito de ALL HANDS ON DECK. (Aliás, o título em inglês foi adotado pela MUBI, em vez de escolherem um em português ou manterem o original francês; portanto, até o momento este é o título oficial brasileiro.)
A delícia do filme de Brac está em trazer de volta um bocado do espírito dos filmes de verão de Éric Rohmer, especialmente CONTO DE VERÃO e PAULINE NA PRAIA. Mas, embora a influência de Rohmer pareça evidente, há aqui uma mudança profunda, até pelo diferencial do momento em que estamos vivendo. O fato de o filme contar com dois protagonistas negros já traz uma mudança e tanto. Estamos no século XXI e certas opções éticas ou antiéticas usadas anteriormente não cabem mais, por mais que o cinema francês seja um dos mais livres do mundo em tentar propor discussões mais polêmicas em se tratando de temas hoje mais complexos.
Basta lembrarmos dos casos recentes de filmes que lidaram de maneira pouco usual com os temas do estupro (ELLE, de Paul Verhoeven) e da gravidez não consentida (ENORME, de Sophie Letourneur). No caso da questão racial em ALL HANDS ON DECK, ela nem é citada em palavras. Pelo menos não explicitamente. E nem os protagonistas parecem sofrer preconceito por causa da cor da pele.
Na trama (que parece tão livre que talvez nem seja interessante chamar de trama), Félix (Eric Nantchouang) é um rapaz negro que conhece numa festa a jovem branca Alma (Asma Messaoudene). Eles passam a noite juntos no parque, mas logo ela corre para pegar um trem. Ela passaria uns dias com a família em uma cidade no sul da França, a fim de aproveitar o verão e o que aquele lugar tem para oferecer. Félix, sentindo-se confiante, acredita que é uma boa ideia fazer uma surpresa à moça, aparecendo por lá sem avisar. Assim, convida o amigo Chérif (Salif Cissé), um sujeito bem simpático e tranquilo, que, ao contrário do amigo, não tem muita sorte com as mulheres e vive há tempos sozinho. Para ele, aquela viagem seria uma maneira de desopilar do trabalho, tanto que ele inventa uma mentira de que sua mãe havia morrido.
O terceiro personagem masculino a entrar em cena é Édouard (Édouard Sulpice), que é meio que enganado pela dupla de amigos, que consegue carona com ele, sendo que ele acredita que daria carona para duas garotas (eles usaram um perfil feminino num aplicativo). Édouard, rapaz branco e meio mauricinho, que usa o carro da mãe, acaba aceitando levar os dois rapazes com ele, apesar de ser alvo de bullying no trajeto. Ele acaba ficando preso junto a eles, depois de um contratempo com o carro. Como o conserto do carro só se daria em uma semana, ele não tem alternativa a não ser ficar ali, inclusive dormindo na mesma barraca de um dos amigos, Chérif, o mais gentil.
E o filme vai seguindo por caminhos inesperados. Por ser meio road movie e meio filme de verão, há uma certa tranquilidade que contamina a narrativa. Não que os personagens não passem por situações infelizes ou inquietantes. A recepção de Alma a Éric não é tão boa quanto ele esperava; e Chérif começa a ficar bastante interessado em Héléna, uma simpática mãe solteira cuidando de um bebê que ele conhece nos momentos em que fica sozinho. Enquanto isso, Édouard vai também procurando se adaptar e viver aqueles dias da melhor maneira possível.
Adoro o modo como o filme se encaminha, em seus momentos finais, fazendo-nos sentir aquele calorzinho no coração, mesmo com alguns momentos agridoces na narrativa. O desenrolar da história de Chérif é que nos pega de maneira mais emotiva. Adoro a cena do karaokê, de seu clima alto astral. E creio que nunca mais ouvirei "Aline", clássico dos anos 1960 de Christophe, sem fazer associação à cena do filme.
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