terça-feira, agosto 03, 2021
TRÁGICA OBSESSÃO (Obsession)
A revisão da obra de Brian De Palma está sendo mais prazerosa e surpreendente do que eu imaginava. Não apenas ver os filmes: ler sobre eles tem sido uma experiência fantástica. Tanto que as informações interessantes são tantas que fico até meio perdido, sem saber por onde começar. No caso de TRÁGICA OBSESSÃO (1976), para muitos o melhor filme de Brian De Palma, é um título que eu acreditava ter uma memória melhor dele que os demais, já que o vi pela primeira vez em 2011. Talvez pelo aspecto onírico, esse seja um dos trabalhos que mais carrega esse tipo de sensação pouco palpável. A fotografia, inclusive, ajuda nesse sentido, embora não seja uma fotografia que me agrade tanto, pelas cores não serem mais vivas.
A trama reflete bastante o filme homenageado, UM CORPO QUE CAI, mas também outro Hitchcock, REBECCA, A MULHER INESQUECÍVEL. Com roteiro de Paul Schrader, a partir de uma história criada por De Palma e Schrader, a história se inicia com uma festa de aniversário de 10 anos do casamento de Michael e Elizabeth Courtland (Cliff Robertson e Geneviève Bujold). É uma noite alegre, mas que termina em tragédia ao final, com Elizabeth e a filha de nove anos, Amy, sendo sequestradas.
Michael, em vez de pagar aos sequestradores a quantia pedida, resolve tomar uma atitude mais perigosa, envolvendo a polícia, uma mala com de cédulas de papel e um rádio transmissor para que a polícia encontre facilmente os criminosos. A operação, porém, dá errado, com os sequestradores fugindo com as vítimas e o carro deles colidindo a um caminhão de petróleo. Depois disso, a trama avança de 1959 para 1975, embora o rosto de Robertson permaneça o mesmo. Aliás, seria interessante se a trama fosse iniciada em 1958, ano de lançamento de UM CORPO QUE CAI, hein?!
Na trama de 1975, Michael, ao visitar uma igreja em Florença, na Itália, dá de cara com uma mulher que se parece tremendamente com sua falecida esposa Elizabeth. Como se fosse uma espécie de reencarnação dela. Sandra, vivida pela mesma Geneviève Bujold, aceita os flertes e os convites para almoço, jantar, passeio etc. de Michael. E não demora muito para que ela aceite se casar com o empresário e conhecer sua mansão em Nova Orleans, um espaço habitado pelo fantasma de Elizabeth nos quadros e em todo o lugar. Elizabeth é como uma madonna, talvez por não mais existir de fato. Ou talvez a questão católica também seja interferência de Paul Schrader no roteiro. Mas De Palma imprime uma assinatura fortíssima. A sua vida está em seus filmes, como já pudemos conferir em outros textos, sobre outros filmes.
Em TRÁGICA OBSESSÃO, a própria Sandra quer também se parecer com Elizabeth; não é apenas Michael que deseja ter uma versão de sua falecida esposa de volta. É curioso como a trama do filme é mais lenta do que o que normalmente estamos acostumados a ver em obras do diretor, mas ainda assim muita coisa acontece de maneira bastante rápida, como a questão envolvendo o sócio de Michael, Bob (John Lithgow), e a conclusão cheia de surpresas e um plot twist embasbacante.
Através de entrevistas ficamos sabendo que De Palma se identificava muito com a personagem de Sandra, uma pessoa que queria se vingar do pai e por isso aceita participar de uma trama para, mais do que ganhar dinheiro, principalmente resolver os daddy issues que a atormentam. Ela se sentiu abandonada pelo pai no sequestro, enquanto também nutre uma espécie de atração por ele. Dançar com Michael é uma espécie de realização de um sonho. E a questão do incesto (que provavelmente não se consumou) foi um problema inclusive para a distribuição do filme.
A identificação de De Palma com Sandra tinha a ver com o fato de que ele, assim como a personagem, também se sentiu abandonado pelo pai. O pai do cineasta era um workaholic, passava dias fora de casa, no trabalho, e ainda foi descoberto que ele traía a esposa com uma enfermeira. Essa questão da traição levaria a mãe do cineasta a tentar o suicídio e imagina-se o quanto esse tipo de situação pode levar alguém a demonizar o pai e elevar à mãe a uma imagem de santa, ou algo do tipo. Anos depois, De Palma teria rancor da mãe, por ela ter manipulado a ele e a seus irmãos para que culpassem o pai deles por tudo; para que não tivessem acesso à versão do pai “traidor”.
Outro elemento muito interessante do filme é a identificação de Sandra/Amy com Elizabeth, como aconteceu de certa forma em IRMÃS DIABÓLICAS (1972), o filme sobre as gêmeas siamesas. Isso acontece já no momento em que mãe e filha estão presas pelos sequestradores. Ela se identifica tanto com sua mãe que, ao crescer, lembra-se que elas estiveram, lado a lado, amarradas pelos sequestradores, como gêmeas siamesas. Agora, adulta, ela teria a chance de cumprir o que sua mãe não conseguiu, dando uma segunda oportunidade a Michael, ao mesmo tempo que o punia. No final, De Palma entrega uma cena magnífica do ponto de vista formal, mas também impressionantemente aflitiva e enternecedora do ponto de vista dramático.
No ano do último filme de Alfred Hitchcock, TRAMA MACABRA, De Palma estava ali, não para ser o maior discípulo do mestre, mas também para mostrar, para quem tivesse olhos para ver, o gigante que já havia se transformado. Ainda que TRÁGICA OBSESSÃO não tivesse sido um grande sucesso de bilheteria, o sucesso popular viria naquele mesmo ano. Mas isso nem é o mais importante. O mais importante é o quanto aqui e em outros tantos filmes De Palma se mostraria tanto um mestre na forma, quanto um cineasta disposto a usar o cinema como um divã para ajudar a curar suas feridas.
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