quarta-feira, setembro 30, 2015
UM SENHOR ESTAGIÁRIO (The Intern)
Interessante como Robert De Niro se reinventou como ator de comédia a partir do finalzinho dos anos 1990, com MÁFIA NO DIVÃ, e teve bem poucos bons momentos no chamado cinema sério, ou cinema ligado aos filmes de gângster, que é como ele era geralmente associado, por causa principalmente de sua associação com Martin Scorsese. E não dá pra dizer que não deu certo.
UM SENHOR ESTAGIÁRIO (2015), de Nancy Meyers, está aí para provar mais uma vez que ele tem tino para o humor e ainda brinca com sua carreira pregressa, como na cena em que precisa arranjar um jeito de evitar que a mãe da personagem de Anne Hathaway leia determinado e-mail.
O novo trabalho de Meyers é mais do que o que se vende no trailer, que passa a ideia de que é uma comédia ligeiramente boba, ainda que estrelada por um par de astros tão bons quanto De Niro e Hathaway. Ambos já tiveram tempo mais do que suficiente para provarem seus talentos e aqui a química funciona muito bem. O único medo era de que UM SENHOR ESTAGIÁRIO sofresse de um excesso de fofura, o que dá para pensar lá pela metade do filme.
Porém, uma vez que somos tragados pelo drama dos personagens, que vamos nos aprofundando em seus problemas pessoais, esse exagerar na dose do açúcar acaba funcionando a seu favor no final, embora seja bem possível que alguns torçam o nariz pelo fato de o filme entrar sem medo no terreno do melodrama, que talvez seja o gênero que continua mais ligado à velha Hollywood, o que eu vejo como algo positivo.
UM SENHOR ESTAGIÁRIO convida o espectador para pensar também em várias situações do mundo contemporâneo, desde o modo como a sociedade digital rejeita a experiência dos mais velhos; passando pela vida complicada de uma mulher no mercado de trabalho, tendo que também ser boa mãe e boa esposa; e pela necessidade das pessoas de se sentirem-se úteis, mesmo estando aposentadas. No caso, há vários casos de pessoas que morrem logo que se aposentam, principalmente homens, pois não encontram mais nada que faça sentido na vida.
E é o caso de Ben, personagem de De Niro, um senhor viúvo que depois que perdeu a esposa já experimentou de quase tudo – viajou pelo mundo, teve casos com mulheres da sua idade, pratica atividade física –, mas que vê na possibilidade de recomeçar, ainda que como estagiário, aos 70 anos, uma chance de ver sentido na vida.
Ben sente um profundo respeito por sua nova patroa, Jules (Hathaway), uma jovem mulher que conseguiu em pouco tempo transformar uma pequena empresa em uma companhia de sucesso, uma loja dedicada a vender roupas femininas pela internet. Mas Jules é extremamente reservada e o fato de Ben ser bastante observador faz com que a relação dos dois seja um pouco difícil no começo, embora saibamos que aos poucos eles se tornarão amigos.
Aliás, o tema da amizade, que é tão bem-vindo em filmes, raramente lida com a amizade entre sexos opostos. Há casos como o de APENAS UMA VEZ e de MESMO SE NADA DER CERTO, ambos de John Carney, mas nesses filmes há uma tensão amorosa entre os protagonistas. No caso de UM SENHOR ESTAGIÁRIO, é uma amizade que se aproxima mais de uma relação entre pai e filha, até porque em nenhum momento o pai de Jules é citado.
Assim, depois de tantos filmes abordando o chamado bromance, desde os antigos trabalhos de Howard Hawks até as comédias recentes, temos, enfim, uma obra que lida com muita sensibilidade da relação de amizade entre um homem mais velho e mais seguro de si e uma forte empresária que está passando por uma crise no casamento. Ambos pintam para o mundo imagens de pessoas fortes, mas não é isso que a sociedade exige da gente? Não é assim que devemos nos portar, até para não desabarmos em algum momento? Nessas situações, um abraço de um grande amigo nos ajuda a seguirmos em frente, mais fortes e mais determinados.
domingo, setembro 27, 2015
ORESTES
Tem um professor colega meu que tem umas opiniões bem controversas e ele é daqueles que procuram todos os dias o pior que está acontecendo na política brasileira e já amanhece o dia falando mal do PT, da Dilma, do quanto está torcendo pelo impeachment etc. Segundo ele, o Governo só quer saber de ajudar os gays e contribui com a impunidade, ao beneficiar os grupos de direitos humanos (coisa que eu nem sei se é verdade). Ele também é desses que é a favor da pena de morte e disse que aqui devia ser como a Indonésia. Já falei pra outros colegas que falar essas coisas todos os dias é meio que se autoenvenenar, provocar câncer em si mesmo etc.
Por outro lado, a questão do direito de matar (existe isso?) impregna até mesmo aqueles que assistem a um filme de ficção ou uma telenovela. Fui com uma amiga minha ver O LOBO ATRÁS DA PORTA, e ela achou justo a protagonista ter feito o que fez com a garotinha por causa do que foi feito com ela. Do mesmo modo, uma irmã minha, comentando o final da novela VERDADES SECRETAS, achou que a mocinha fez bem ao matar o sacana que a seduziu. A impressão que fica é que matar por vingança pode.
ORESTES (2015), o filme de Rodrigo Siqueira que está em cartaz em poucas salas do país, trata justamente desse tipo de discussão: até que ponto matar é justo ou aceitável? Matar o assassino de sua mãe, mesmo sendo ele o seu pai é algo que deve ser considerado? Essa pergunta é feita tanto a partir da peça grega Orestes, de Eurípedes (458 a.C.), quanto a partir da possibilidade de busca de justiça de uma jovem cuja mãe foi entregue pelo próprio amante/marido, o Cabo Anselmo, um militar que havia se infiltrado no grupo comunista de que fazia parte Soledad Barret Viedma, ao Delegado Fleury, do DOPS.
A filha de Soledad é uma das participantes e um dos casos que mais tornam ORESTES uma obra interessante e forte. Filha de uma tragédia, as fotos que ela possui dela com o pai ou a com a mãe foram muito provavelmente tiradas pelo Cabo Anselmo. Acabamos criando um ódio por esse indivíduo a partir de trechos de uma entrevista que ele deu ao Roda Viva. Inclusive, fiquei bem interessado em ver a entrevista completa, que está disponível no youtube.
O documentário ORESTES ainda apresenta outros casos dolorosos, como a de um dos sobreviventes da ditadura que visita um dos lugares em que foi torturado, ou a de uma mãe cujo filho foi morto e enterrado como indigente depois de uma ação da polícia. Há também um posicionamento que não poderia deixar de haver no filme, que é o de uma mulher que busca justiça e que põe tudo preto no branco, achando que a polícia tem sempre razão e que todo garoto que anda armado é merecedor do seu fim.
Embora eu goste mais da primeira parte do filme, que é a da apresentação dos “personagens” e principalmente dos casos relacionados à ditadura militar, não deixa de ser muito interessante tanto a encenação inspirada na peça de Eurípedes por um grupo de atores, quanto o psicodrama que leva todas aquelas pessoas para uma espécie de expurgo encenado das suas vidas. Um trabalho bem diferente do que costuma-se ver nos cinemas, ORESTES mereceria mais atenção do público.
quinta-feira, setembro 24, 2015
EX-MACHINA – INSTINTO ARTIFICIAL (Ex Machina)
Como muitas vezes uma coisa leva à outra e atrizes belas e carismáticas tendem a ser chamarizes para vermos determinadas produções, ainda mais quando já são suficientemente elogiadas por público e crítica, foi Alicia Vikander que me levou a EX-MACHINA – INSTINTO ARTIFICAL (2015), que no Brasil foi lançado direto em vídeo.
Meu encanto pela moça se deu recentemente, em O AGENTE DA U.N.C.L.E., de Guy Ritchie, mas já a havia visto em ação no ótimo O AMANTE DA RAINHA, de Nicolaj Arcel. Em EX MACHINA, ela interpreta a mais sexy andróide do cinema desde Sean Young em BLADE RUNNER, O CAÇADOR DE ANDRÓIDES.
E a semelhança entre os dois filmes não para aí: há uma entrevista avaliativa que muito lembra a vista no trabalho de Ridley Scott, um teste fictício que é baseado no teste de Turing, que consiste em determinar se o objeto testado é humano ou não. No caso, já se sabia que o objeto não era humano, mas havia a intenção de avaliar o grau de humanidade daquela máquina.
Na trama, Domhnall Gleeson é Caleb, um jovem programador que é sorteado para participar de um experimento secreto de inteligência artificial, tendo que avaliar as qualidades humanas de uma andróide bem especial (Alicia Vikander). Durante o teste, ele e a andróide começam a ter momentos de maior intimidade, ou mesmo de interesse sexual. Pelo menos, vemos isso do ponto de vista de Caleb e da boca de Ava, a andróide feminina.
O autor da façanha – da criação de Ava – é um cientista inescrupuloso, Nathan (Oscar Isaac), um homem meio amargo que é bastante controlador, tem hábitos etílicos que o deixam com uma baita ressaca no dia seguinte, e possui uma andróide particular como escrava sexual e realizadora de outras atividades.
O filme é dividido em capítulos, que são marcados pelos encontros de Caleb com Ava, que nos mostram a crescente aproximação dos dois, no medo dela de ser desligada (morta) – outro flerte com BLADE RUNNER – e na falta de confiança que Caleb passa a ter em relação a Nathan. Um dos aspectos mais positivos é o clima de suspense que se cria nos diálogos tensos e/ou de atrito desses três personagens ao longo do filme, que presenteia o espectador com cenas ousadas e até perturbadoras, que aproximam o filme do cinema de horror.
EX MACHINA é a estreia na direção de Alex Garland, que possui no currículo alguns trabalhos como roteirista. Inclusive, há trabalhos dele nessa função que guardam similaridade com o seu début, como os ótimos SUNSHINE – ALERTA SOLAR (2007) e NÃO ME ABANDONE JAMAIS (2010).
quarta-feira, setembro 23, 2015
SEIS COMÉDIAS
Mais uma postagem com o objetivo de despejar alguns títulos vistos há algum tempo e que precisam ser comentados para diminuir a lista interminável dessa minha obrigação de escrever sobre todos os filmes vistos. Será preciso mais posts como esses para que eu consiga diminuir pelo menos pela metade a lista atual, que tem cerca de 80 títulos.
O ÂNCORA - A LENDA DE RON BURGUNDY (Anchorman – The Legend of Ron Burgundy)
Engraçado que eu vi este filme em casa com a intenção de ver a sua continuação no cinema, coisa que acabou não rolando. O ÂNCORA – A LENDA DE RON BURGUNDY (2004) é um filme que tem os seus momentos e deve muito disso ao bom desempenho de Will Ferrell. Por mais que ele não seja uma unanimidade na comédia americana atual, ele consegue sim ser muito engraçado quando está inspirado ou dispõe de bons textos. Infelizmente O ÂNCORA é um pouco irregular, mas tem bons momentos, duelo de sexos, nos apresenta à misoginia típica das empresas da época, e ainda conta com um elenco de apoio mais do que respeitável, principalmente hoje em dia: Paul Rudd, Steve Carell, Christina Applegate, Seth Rogen, entre outros. A continuação se chamou aqui no Brasil TUDO POR UM FURO (2013) e também é dirigida por Adam McKay.
QUERO MATAR MEU CHEFE 2 (Horrible Bosses 2)
Infelizmente a continuação do ótimo QUERO MATAR MEU CHEFE (2011), de Seth Gordon, não foi muito bem sucedida. Com a mudança de diretor – entrou Sean Anders, que por acaso ou não fez o ótimo FAMÍLIA DO BAGULHO (2013) – a coisa desandou um pouco. Mas talvez nem tenha sido culpa de Anders, mas de um roteiro mais esperto, já que a turma era praticamente a mesma e eles já estavam entrosados. Na trama, Dale, Kurt e Nick (Charlie Day, Jason Sudeikis e Jason Bateman, respectivamente) resolvem montar a própria empresa, mas acabam sendo ludibriados e perdem tudo. Optam, então, por uma outra solução drástica: um sequestro. Jennifer Aniston volta ao papel de ninfomaníaca, que, aliás, lhe cai muito bem. Sem falar que o restante do elenco de apoio, incluindo aqueles que retornam para os seus papéis (como Jamie Foxx), é um trunfo e tanto, embora não tenha tido resultado muito favorável no final.
A NOITE DA VIRADA
Curiosamente A NOITE DA VIRADA (2014) foi uma comédia que não foi muito bem recebida nos cinemas, o que já apontou para uma crise de um gênero que parecia ser certeza de sucesso para o grande público. E é um filme que mereceria um pouco mais de atenção, já que é um dos bons exemplares. Fábio Mendonça, que só havia dirigido coisas para a televisão e curtas-metragens, comanda um elenco bem divertido na história de uma festa em um apartamento cheia de muitas confusões. Na trama, Ana (Júlia Rabelo) resolve fazer uma festa de reveillon em seu apartamento, reunindo vários amigos. O que ela não sabe é que o marido (Paulo Tiefenthaler) a está traindo com a vizinha (Luana Piovani), que por sua vez é casada com um homem que considera meio molenga (Marcos Palmeira). Depois de confessar a traição, a festa vira um caos e os dois casais acabam formando uma espécie de quadrado amoroso, enquanto o banheiro é palco de confissões, uma suposta morte e até mesmo tráfico de drogas (Taumaturgo Ferreira é um traficante simpático). Bem divertido.
SEM DIREITO A RESGATE (Life of Crime)
Quem gosta de JACKIE BROWN, de Quentin Tarantino, deve ficar especialmente interessado nesta gostosa comédia inspirada em um livro de Elmore Leonard e que também conta com alguns personagens vistos no filme de Tarantino, só que aqui interpretados por outros atores. No caso, sai Bridget Fonda e entra Isla Fisher para o papel de Melanie, e sai Samuel L. Jackson e entra Yasiin Bay, para o papel do traficante Ordell. Trata-se, portanto, de uma história que antecede os eventos de JACKIE BROWN. Na trama de SEM DIREITO A RESGATE (2013), dois criminosos sequestram a mulher de um executivo (Jennifer Aniston), mas encontram dificuldades nas negociações pois o sujeito (Tim Robbins) não tem muito interesse em ter a mulher de volta ou pagar uma fortuna por ela. A conclusão acaba sendo não apenas divertida, mas até mesmo excitante.
A ESPIÃ QUE SABIA DE MENOS (Spy)
Por mais que eu ainda não seja fã de Melissa McCarthy, não dá pra negar que ela está muito bem neste A ESPIÃ QUE SABIA DE MENOS (2015, foto), de Paul Feig, responsável pelo ótimo MISSÃO MADRINHA DE CASAMENTO (2011), ainda o ponto alto de sua carreira. Mas o novo filme, além de ser a terceira parceria dele com McCarthy no cinema, segue também a cara de filme milionário que já possuía o seu trabalho anterior, AS BEM-ARMADAS (2013). Assim, há muitas explosões e perseguições e agora há também todo o luxo de locações na Europa, como nos thrillers de espionagem (James Bond, principalmente) que eles tentam homenagear. O filme ainda conta com boas participações de Rose Byrne, Jude Law, além de revelar o talento de comediante de Jason Stathan.
BELAS E PERSEGUIDAS (Hot Pursuit)
Anne Fletcher continua privilegiando personagens femininas em situações engraçadas, como já pudemos ver em filmes bem melhores e mais simpáticos, como VESTIDA PARA CASAR (2008) e A PROPOSTA (2009). BELAS E PERSEGUIDAS (2015) traz Reese Whiterspoon como uma policial correta que acaba levando a pior ao ser traída por uma corporação corrupta, durante o processo de testemunha da mulher de um mafioso, vivida por Sofía Vergara. A policial acaba entrando em maus lençóis, tanto por estar ainda querendo desempenhar a sua boa função, mas as coisas não ficam fáceis quando ela passa a ser tida como criminosa foragida. BELAS E PERSEGUIDAS, no final, acaba sendo uma diversão bem despretensiosa que conta com alguns bons momentos, muito por causa do bom desempenho do par de atrizes. Sofía Vergara, em especial, com um acento hispânico carregado, acaba ficando bem engraçada. Faltou pouco para ser uma boa comédia.
terça-feira, setembro 22, 2015
EU ESTAVA JUSTAMENTE PENSANDO EM VOCÊ (Comet)
Engraçado os rumos que as paixões nos levam. E por paixão, pelo menos inicialmente, não estou me referindo ao sentimento que nutrimos por pessoas, mas pela arte mesmo. Livros, discos, filmes, séries acabam nos levando a outros livros, discos, filmes e séries. No caso, o que me levou a EU ESTAVA JUSTAMENTE PENSANDO EM VOCÊ (2014) foi o fato de ser dirigido por Sam Esmail, a mente brilhante por trás da série mais surpreendentemente foda do ano, MR. ROBOT (2015). Em seu currículo de direção, havia apenas este filme estrelado pela lindíssima Emmy Rossum (virei fã) e pelo gente boa Justin Long.
O filme é praticamente só com eles dois. Há alguns poucos coadjuvantes, mas a história até poderia ser uma peça de teatro, mudando apenas o cenário de vez em quando. Mas que bom que é cinema, pois o cinema tem um alcance tão maior e é capaz de tantas coisas. E Esmail tem um cuidado especial com a edição. Como a história se passa durante seis momentos de seis anos da vida amorosa de Dell (Long) e Stephanie (Emmy), mostrados de maneira não cronológica, mas até que bastante fácil de entender e juntar o quebra-cabeças, a edição é fundamental. Se fosse uma peça de teatro teria que abrir mão desse recurso.
Pois bem, mas voltando às paixões, incrível como alguns filmes são capazes de pegar o nosso coração sofrido e esfregá-lo num ralo como este. Pelo menos foi mais ou menos assim que eu me senti ao acompanhar a trajetória de Dell e Stephanie, desde o momento em que se conhecem até a crise mais difícil de seu relacionamento, a busca pelo outro novamente e o sentimento de gratidão que fica quando se sabe que aquele relacionamento foi mais do que especial.
O primeiro momento, quando eles se conhecem, é mesmo mágico. E Esmail sabe contar isso muito bem. Claro que ter a Emmy Rossum ali toda linda ajuda pra caramba a se apaixonar junto com o personagem, mas sabemos que isso não é o suficiente para que uma história de amor seja capaz de nos pegar de tal maneira. No caso, conseguimos captar o sentimento de desespero de Dell em não deixar de jeito nenhum aquela moça escapar dele. Havia algo em sua memória embaralhada (de presente, passado e futuro) que sabia que ele estava diante da mulher da sua vida e que deixar passar aquele momento seria um vacilo tremendo. E certamente nos solidarizamos e sofremos com esses momentos especiais, que não têm nada de calmo e sereno, não. É desesperador mesmo.
Dá pra comparar com ANTES DO PÔR-DO-SOL, de Richard Linklater, quando o casal Jesse e Celine só tem uma hora para conversar antes que ele pegue o avião de volta para casa. O sentimento de urgência, de estar junto o máximo de tempo possível, chega a ser perturbador. A vantagem de Dell, no caso, é que ele não tinha um avião para pegar, mas ele tinha que conquistar aquela moça ali, não importando que ela já estivesse com um namorado ou ficante no evento da chuva de meteoros.
E mal dá tempo para que o coração fique calmo, pois COMET (acho lindo esse título original) nos joga num turbilhão de emoções e D.R.s em diferentes momentos das vidas deles dois que aquela história de ficar feliz para sempre já é mesmo coisa do passado. Há fins para determinadas histórias, alguns agradáveis, outros extremamente dolorosos, mas é nisso que está a graça do filme, é nisso que está a sua força em mexer com os nossos sentimentos e até reviver certos momentos pessoais, sejam as mancadas, sejam os acertos.
E há também o momento em que a realidade é questionada, que é um ponto de interseção com MR. ROBOT. Há determinado segmento que parece um sonho. A fotografia ganha uma tonalidade diferente; a sensação é de que estamos numa espécie de limbo, algo entre o sonho e o desejo, a vida e a morte. Além do mais, quem diria que eu fosse gostar de Roxette alguma vez na vida?
segunda-feira, setembro 21, 2015
A VÊNUS LOURA (Blonde Venus)
Talvez seja o menos barroco dos filmes de Josef von Sternberg estrelado por Marlene Dietrich. Até por se passar nos Estados Unidos e não em nenhum lugar distante ou exótico, há uma economia na direção de arte que é compensada com um sentimentalismo que não foge exatamente ao que é mostrado em filmes como MARROCOS (1930), DESONRADA (1931) e O EXPRESSO DE SHANGAI (1932). Marlene tenta parecer mais cínica e amarga do que a doce mãe de família que pretende salvar o marido de um câncer, voltando a cantar em um cabaré e, com isso, acaba se apaixonando por outro homem.
Sternberg entra aí numa linha perigosa do melodrama, que para muitos pode incomodar, mas que para mim ganha pontos. Pode até ser que em alguns momentos essas emoções passem do ponto, como acontece provavelmente perto da cena final, mas mesmo assim é até difícil não cair um cisco no olho, depois de vermos a nossa heroína passando por tantas tribulações, fugindo com o filho nos lugares mais ermos dos Estados Unidos.
A VÊNUS LOURA (1932) não deixa de também apresentar a Dietrich cantora, a Dietrich capaz de encantar dezenas de homens, seja no palco, seja em meio a outras mulheres. Há uma cena particularmente marcante, que até quem não gosta do filme deve achar curiosa, que é quando ela se apresenta vestida de gorila. A fantasia é tão realista que a princípio parece mesmo um gorila de verdade. Então, presenciamos uma espécie de strip-tease daquela roupa.
Aliás, como o filme foi feito antes do Código Hays, podia ter algumas ousadias, como a cena inicial das moças tomando banho nuas num lago, enquanto o personagem de Herbert Marshall teima em não sair de perto da moita. Somos transpostos então para o futuro, quando os dois estão casados, têm um filho pequeno e o marido agora enfrenta um caso raro de câncer, que até tem uma chance de cura, mas que é um tratamento experimental e que necessita de dinheiro. É quando a doce mãe e esposa resolve voltar aos cabarés, fazendo aquilo que sempre fez tão bem.
Infelizmente as canções não são o forte dessa vez. Mas, como são poucas, não há muito problema. Afinal, A VÊNUS LOURA também conta com o jovem Cary Grant no papel do milionário que banca a cirurgia do marido da cantora e ainda oferece uma vida de luxo e amor, o que faz com que isso balance o coração dela. Como o personagem de Grant é tão generoso e cheio de amor, acabamos por torcer por ele, o que não deixa de ser também algo curioso, levando em consideração que estamos optando aqui pela infidelidade, pelo adultério, ao invés do sagrado matrimônio.
Não fosse o filho, seria tão mais fácil jogar tudo para o alto, mesmo havendo toda uma história pregressa com o marido, que é romantizada quando os dois contam para o filho sobre a noite em que se conheceram, e o garoto acha a história mais bela de todas, gosta de ouvir antes de dormir. Acaba sendo uma estratégia um tanto estranha para uma história para fazer dormir, especialmente para um menino, mas funciona para os propósitos do filme.
Considerado por alguns como um Sternberg menor, A VÊNUS LOURA me encantou de tal maneira que, ao final da metragem, considerei-o o meu Sternberg favorito, embora agora fique balançado entre ele e MARROCOS, com aquele final tão poderoso. Aliás, como é interessante acompanhar a trajetória de Dietrich nesses filmes: apesar de ser uma mulher, digamos, pecadora, sua trajetória se aproxima da santidade, ao abraçar uma espécie de calvário de dor, de amor intenso e de negação – pelo menos até certo ponto, dependendo do filme – da felicidade.
domingo, setembro 20, 2015
SEIS LONGAS VISTOS NO CINE CEARÁ 2015
Não cheguei a ver todos os filmes da mostra competitiva deste ano do Cine Ceará (faltei dois dias), mas até que vi bastante, e o meu preferido do festival, JAUJA, que não vi no evento, tive a chance de vê-lo com mais tranquilidade numa sala do Cinema do Dragão, o que acredito que tenha sido melhor para a apreciação. O Cine São Luiz é lindo e grande e majestoso, mas para certas obras que exigem um pouco mais de atenção do espectador, ele chega a dispersar um pouco os dispersos (como eu). Vamos, então, aos filmes que faltaram eu comentar aqui no blog. Será, mais uma vez, um exercício de memória, já que vi esse filmes no mês de junho.
O CLUBE (El Club)
Uma pena que um dos filmes mais interessantes do festival, o chileno O CLUBE (2015), tenha sido exibido em uma cópia ruim. E logo na noite de abertura. Isso não impediu que ele fosse eleito pelo júri oficial e também o da crítica como o melhor do Cine Ceará. Pablo Larraín é mais famoso por NO (2012), que mostra o processo de eleições do Governo do Chile, em um diferente e difícil processo de redemocratização. Em O CLUBE, o diretor se volta para um assunto distante da política do país e entra com coragem num assunto delicado: o do padres que se afastam da igreja por seu passado como pedófilos. O filme se passa numa casa em que moram um grupo de padres que têm esse passado em comum, mas que têm suas vidas reviradas quando chega uma espécie de fiscal da Igreja, que quer colocar na linha a vida mansa e de jogos apostados em corridas de cachorros daqueles homens. Entra em cena também, pra completar, um homem que afirma ter sido molestado por um deles quando era criança. E a coisa só piora e o filme vai ganhando ares cada vez mais sombrios. Gostaria de revê-lo em melhores condições. É possível que eu goste mais.
ESTRELA CADENTE (Stella Cadente)
Entre uma pescada e outra de sono (estava com déficit de sono e havia acordado cedo), tive que chegar até o fim desse drama de época espanhol de Luís Miñarro, que se destaca principalmente pela bela fotografia e caprichadíssima direção de arte. O filme, estranho em dramaturgia e andamento, mostra o incômodo reinado de Amadeo I da Espanha, que governou o país - por assim dizer, já que ele era rejeitado pela população - durante os anos de 1870 a 1873. Foi o menor tempo que um monarca ficou no Poder na Espanha. Logo depois foi proclamada a República. As convulsões sociais se percebiam só pelo som, enquanto a ação se passa quase toda dentro do palácio que só não é totalmente solitário por causa dos poucos habitantes, alguns ali para diminuir o tédio do Rei com sexo com homens, mulheres e até com melancia. Miñarro faz um trabalho que namora o teatro e a pintura. Ficou bonito, ao menos. Com sono, não dá pra julgar direito.
A OBRA DO SÉCULO (La Obra del Siglo)
O cubano A OBRA DO SÉCULO (2015), de Carlos Quintela, mistura ficção com documentário e descreve a rotina ruim de um engenheiro desiludido que vive na mesma casa com seu pai inconveniente e seu filho frustrado. O lugar onde moram parece largado no meio do nada. Fica localizado em uma parte de Cuba que possui instalações ambiciosas que foram abandonadas quando o país pretendia fazer, junto com a União Soviética, uma central nuclear em 1982. E há várias imagens de arquivo que aparecem de vez em quando na narrativa que ajudam a nos situar historicamente e nos dá uma ideia da ambição daquele projeto que foi abortado com o fim da União Soviética. Era o fim da Guerra Fria também. Ao mesmo tempo, vemos o vazio existencial daquela família que parece não ter muito motivo para viver.
NN
Filmes sobre os anos de chumbo das ditaduras militares dos países da América Latina, temos aos montes. Mas é sempre bom ver a perspectiva de outras cinematografias, como é o caso do Peru. NN (2015), de Héctor Gálvez, se debruça sobre a tentativa de pessoas que trabalham em órgãos dedicados a encontrar ossadas de pessoas desaparecidas para as famílias. O filme acompanha um grupo de pessoas que trabalha exumando os corpos de presos políticos em covas descobertas em regiões desertas do Peru. O “NN” do título quer dizer “non nomine”. O filme lida com frustrações, tanto dos familiares em busca de seus entes queridos quanto dos profissionais que encontram dificuldades e obstáculos para seguir em seu trabalho. É um filme cruel ao mostrar essa realidade, mas também pouco eficiente e pouco envolvente em causar emoções no espectador.
CORDILHEIRAS NO MAR - A FÚRIA DO FOGO BÁRBARO
Trata-se do filme mais político do festival e que, mesmo não sendo tão agradável de ver, é interessante para o público brasileiro, por causa de sua relação íntima com um determinado momento da vida de Glauber Rocha. CORDILHEIRAS NO MAR – A FÚRIA DO FOGO BÁRBARO (2015), de Geneton Moraes Neto, é um documentário que procura discutir um ponto em que Glauber procurou um meio termo ao acreditar que podia contar com o apoio do Presidente Ernesto Geisel. Isso acabou por queimar o filme dele entre seus colegas cineastas, todos de esquerda, que jamais iriam querer fazer acordo com a ditadura. Ele acabou sofrendo perseguição ideológica e sendo visto como traidor da causa. O filme apresenta diversos depoimentos coletados, sendo os mais interessantes os de Jaguar e de Fagner. Em meio a um momento em que vemos uma polarização extrema e que ninguém parece querer achar solução para os problemas de nosso país, mas apenas lutar por suas ideologias, mesmo quando estão errados, é muito bem-vinda a discussão que o filme provoca. Sem falar que acaba por ajudar a acentuar a imagem de santo louco desse cineasta tão polêmico quanto genial.
CAVALO DINHEIRO
Sinto não ter gostado desse filme, mas CAVALO DINHEIRO (2014, foto), do português Pedro Costa, é definitivamente uma obra que merece ser visto principalmente por quem tem um pouco mais de intimidade com o trabalho do diretor português, até por se tratar de parte de uma série de filmes com o personagem caboverdiano Ventura, numa trama que é necessário um pouco mais de conhecimento ao menos do contexto histórico português e sua relação com Cabo Verde. A verdade é que não via a hora de o filme acabar e pra mim foi sim uma sessão de tortura. Na trama, Ventura procura em desespero e com olhar de louco a esposa Zulmira em um hospital abandonado. O filme tem uma fotografia quase sempre muito escura, o que constitui mais um desafio para o público que acompanha a história desses imigrantes de Cabo Frio enfrentando demônios pessoais num filme lúgubre e cheio de momentos no mínimo estranhos para marinheiros de primeira viagem, como a cena do elevador, em que um personagem conversa com uma estátua. Talvez seja um filme que mereça uma outra oportunidade em uma sala menor e mais apropriada. De preferência depois de ter visto outros trabalhos do cineasta.
sábado, setembro 19, 2015
MAZE RUNNER – PROVA DE FOGO (Maze Runner – The Scorch Trials)
O efeito JOGOS VORAZES se repete aqui neste MAZE RUNNER – PROVA DE FOGO (2015), guardadas as devidas proporções: se o primeiro filme, MAZE RUNNER – CORRER OU MORRER (2014) era mais simples e se resumia a uma espécie de jogo mortal no qual os jovens heróis tinham que superar um difícil obstáculo – no caso, um labirinto mutável e cheio de criaturas assustadoras e mortíferas –, no novo filme o cenário é ampliado, já que ficamos sabendo mais detalhes sobre o projeto WICKED, que enviava esses jovens para participar dessas experiências.
Uma vez que, graças ao curioso, impaciente, inteligente e desobediente Thomas (Dylan O’Brien), os jovens conseguiram fugir do labirinto e chegar a uma estação secreta no final do primeiro filme, neste segundo eles são acolhidos, mas Thomas em especial já percebe que algo que está muito errado naquele lugar, enquanto os outros, mais ingênuos, acreditam que estão no paraíso dentro daquelas instalações situadas no meio do nada, quando a Terra foi devastada pelo calor do Sol e sobraram alguns sobreviventes de doenças, sendo que aquela organização era responsável por estudar e procurar cura para essas doenças. Uma delas torna a pessoa semelhante a um zumbi – o que é até um ponto negativo do filme, já que zumbis estão em todo lugar hoje em dia. Mas, enfim, isso não chega a atrapalhar o modo eficiente com que Wes Ball conduz a narrativa.
Um dos méritos do filme é conseguir se manter nas suas mais de duas horas de projeção num ritmo de ação quase non-stop. Não chega a ser um MAD MAX – ESTRADA DA FÚRIA, claro, mas é mais objetivo, simples e efetivo do que, por exemplo, a franquia Divergente, que é bem morna. No caso de PROVA DE FOGO, a sustentação se dá mais na ação, mas há todo um contexto de rebeldia adolescente, de achar que o mundo está sempre contra você (e no caso, está mesmo), que contagia.
Há uma virada, perto do final, que o aproxima de um filme de guerra e que ajuda a valorizar tanto os personagens quanto suas motivações, fazendo uma ponte muito boa para o terceiro filme, que já está confirmado com a direção do mesmo Wes Ball. Ainda há uma excessiva centralização no personagem Thomas, em relação aos demais, que são simples coadjuvantes, mas nesse segundo filme já se percebe uma ampliação desse conceito, dando maior importância, por exemplo, às personagens femininas Teresa (Kaya Scodelario, da série inglesa SKINS) e a novata Brenda (Rosa Salazar). Há outro personagem novo bem legal, que é o Aris (Jacob Lofland).
Dos rostos conhecidos, além de Patricia Clarkson, como diretora da WICKED (que ficam traduzindo horrivelmente como CRUEL nas legendas), há a presença bem-vinda de Giancarlo Esposito (de BREAKING BAD), de Aiden Gillen (de GAME OF THRONES) e de Nathalie Emmanuel (também de GAME OF THRONES).
Como episódio do meio de uma trilogia, PROVA DE FOGO tem o seu charme, assim como teve outros episódios do meio, como O IMPÉRIO CONTRA-ATACA, SENHOR DOS ANÉIS – AS DUAS TORRES e JOGOS VORAZES – EM CHAMAS. São filmes-episódios que representam situações de enfrentamento, de uma relativa derrota ou situação pendente dos heróis no fim, mas que chamam o espectador para um desfecho, que, espera-se, esteja à altura do filme do meio, embora geralmente haja frustrações.
Ainda há algo em MAZE RUNNER - PROVA DE FOGO que incomoda, como não mostrar em nenhum momento os personagens se alimentando, tendo passado dias no deserto sem comida e sem água e depois por outras situações perigosas, além de certa simplificação na maneira como Thomas decide, instintivamente, agir e levar seus colegas junto para enfrentar perigos. Mas pode-se atribuir esse último detalhe como uma característica ariana do personagem, de agir por impulso e de, ao mesmo tempo, ter espírito de liderança e também de trazer confiança para os demais. Além do mais, não deixa de ser interessante esse tatear no escuro, esse caminhar diante do desconhecido.
terça-feira, setembro 15, 2015
CANIBAL HOLOCAUSTO (Cannibal Holocaust)
Não sou exatamente um fã de CANIBAL HOLOCAUSTO (1980), mas tenho um carinho especial por este filme de Ruggero Deodato por uma razão bem pessoal: é o nome de uma lista de discussão de que participei e que abriu meus olhos para determinado tipo de cinema que eu sequer sonhava existir. A turma que participava e comandava a lista era exímia conhecedora de cinema de horror europeu e afins, e eu aprendi muito com eles ao longo dos anos. Sem falar nos amigos que fiz.
Quanto ao mais famoso e chocante filme do ciclo canibal italiano, trata-se de uma obra que merece o respeito, mesmo não se gostando. Afinal, é um trabalho que fez história. Se não é tão gostoso de ver quanto O ÚLTIMO MUNDO CANIBAL (1977), é bem mais original ao misturar ficção com um falso documentário, junto a uma estratégia de marketing corajosa – o diretor afirmava que os atores presentes no filme dentro do filme morreram de fato e por causa disso ele acabou tendo que se justificar diante da lei.
O elenco que "morreu" havia assinado um contrato para que tomasse um chá de sumiço depois das filmagens. Tiveram que provar que estavam vivos depois para que Deodato não fosse preso. Mesmo assim, se os atores não foram mortos, o mesmo não pode ser dito dos animais. Esses sim foram realmente sacrificados para a realização do filme, como uma tartaruga marinha enorme e um macaquinho. Isso é muito mais chocante que qualquer efeito especial. E olha que eles também são bons nos efeitos especiais. A imagem icônica da índia empalada, por exemplo, é difícil de esquecer. Até porque a usam como capa da maioria das versões existentes por aí do filme.
Uma das coisas que é estranhamente bela em CANIBAL HOLOCAUSTO é a trilha sonora de Riz Ortolani, que chama atenção logo nos créditos iniciais. E é utilizada mais adiante em uma sequência perturbadora. Ficamos pensando: por que diabos Deodato usa essa música tão bonita para emoldurar algo tão feio e perturbador? Lembrando que não estamos falando aqui apenas de um culto à violência com finalidade puramente estética, misturando, por exemplo, a beleza plástica de uma cena sanguinolenta com uma música de rara beleza, como podemos ver em alguns gialli de Dario Argento. Vai ver isso está no espírito dos italianos mesmo.
De todo modo, CANIBAL HOLOCAUSTO não é um filme para causar prazer – embora seja até fácil encontrar alguém que discorde de mim sobre isso –, mas com a intenção mesmo de causar mal estar. E ainda hoje segue sendo um exemplar de respeito nesse sentido. Afinal, é difícil ficar indiferente a algo tão desnorteador quanto a festa dos canibais em torno dos corpos dos documentaristas americanos.
segunda-feira, setembro 14, 2015
MR. ROBOT – TEMPORADA 1 (Mr. Robot – Season 1)
Dizer que MR. ROBOT (2015) é a melhor série do verão americano é pouco: trata-se da melhor estreia na televisão em 2015, superando, até mesmo, DEMOLIDOR. Isso porque seus dez episódios têm uma unidade impressionante, além de trazerem aquele elemento transgressor que torna o que seria uma obra boa em algo especial. Se há algo que poderia depor contra a série de Sam Esmail, diretor do pouco conhecido COMET (2014), é lembrar demais Clube da Luta (o livro de Chuck Palahniuk e, consequentemente, a adaptação de David Fincher).
Mas Esmail não trata em nenhum momento de esconder sua principal referência. Ao contrário, há várias sequências que não só remetem como também prestam homenagem à controversa obra. A semelhança inicial está no afã de tentar destruir o sistema. A própria organização "terrorista" que o hacker Elliot Alderson (Rami Malek) trabalha nas horas vagas se chama fsociety. Aliás, curioso como a palavra “fuck” é dita, mas é também censurada no áudio e quando escrita também, embora ela esteja lá como forma de rebeldia ao sistema.
Elliot, nosso herói, é avesso a pessoas e viciado em morfina. É isso que diminui a sua tristeza de viver. Em um dos diálogos mais bonitos e ao mesmo tempo mais tristes da série, ele conversa com sua vizinha, Shayla (Frankie Shaw), ao som de "Pictures of You" (The Cure), sobre ele não gostar de ir a shows por causa das pessoas. Por isso prefere ouvir música sozinho, com seus fones de ouvido. Essa conversa só não é um respiro para a trama porque as circunstâncias que a envolvem são bem melancólicas.
O que MR. ROBOT passa principalmente para o espectador é um sentimento de paranoia (já que a série é narrada pelo ponto de vista de Elliot, embora haja alguns momentos que se volte para outros personagens) e de quase perda da sanidade. Exato: por pouco, eu quase piro em determinado momento, não exatamente pelas revelações em si, mas pelo modo como elas são postas. Em determinado momento, por exemplo, Darlene (Carly Chaikin), membro ativo da fsociety, ao contar algo a Elliot, me deixou tão perturbado, que sensação parecida eu só senti em INCÊNDIOS, de Dennis Villeneuve.
Ao contrário de algumas séries que vão conquistando o espectador aos poucos, é logo no piloto que MR. ROBOT pega a audiência de cheio. Tanto que há quem diga que eles não conseguem superar o piloto nos episódios seguintes, algo que eu discordo, até pela forma criativa com que são construídas as narrativas para cada episódio, fazendo-nos lembrar de outra série excepcional: BREAKING BAD.
Inclusive, o hype em torno de MR. ROBOT tem colocado a série em comparação com a cultuada criação de Vince Gilligan, embora ainda seja muito cedo para isso. Só temos uma temporada por hora e sabemos o quanto tantas séries caem de qualidade a partir do segundo ano. Por isso, é bom torcer para que o que vem por aí em 2016 mantenha o alto nível do show.
Com relação à participação bem especial de Christian Slater, trata-se, de fato, do melhor papel dele em anos, mas talvez seja um exagero elogiar tanto assim a sua performance. Ainda assim, há um episódio especial cuja atuação dele se destaca bastante. Até por darem mais espaço a ele. Embora Slater seja o cara que se autodenomina "Mr. Robot" e que convida Elliot para ingressar na fsociety, sua participação é geralmente pequena ao longo da trama principal e das subtramas.
Falando em boas atuações, vale destacar Martin Wallström, que interpreta o executivo psicopata da Evil Corp, em cenas antológicas. Também merecem ser citadas, e com muito carinho, as três moças que rondam a vida de Elliot, as já mencionadas Shayla e Darlene, e também a sua colega de trabalho no seu emprego diurno, Angela (Portia Doubleday), que conhece Elliot desde criança e tem por ele uma atenção especial, embora não saiba de seus segredos.
No mais, outro grande trunfo da série está em não enrolar o espectador, ao entregar aquilo que nós queremos ver acrescido de um bônus. Em um momento em que o capitalismo é visto por muitos como chegando ao fim e que a sociedade como um todo está passando por uma crise violenta, ser simpatizante de grupos como o Anonymous e assemelhados não chega a ser nenhuma novidade. É preciso dar lugar ao novo. E torçamos para que o novo seja algo tão bom quanto MR. ROBOT.
domingo, setembro 13, 2015
LOVE
Sexo sempre foi um chamariz para o público desde os primórdios do cinema. Passou por objeto proibido diversas vezes, mas o curioso é o quanto a nossa sociedade atual se tornou hipócrita no que se refere a exibições de filmes com conteúdo erótico (ou pornográfico, vá lá), mesmo com uma classificação 18 anos. LOVE (2015) é um filme que tem sentido muita dificuldade em penetrar no circuito exibidor. Foi rejeitado pelo Cinemark e no grupo Cinépolis passa em sessões pra lá de tarde. Enquadram-no como um pornô, quando não é exatamente o caso.
Na sessão em que estava, logo que começou, uma moça começou a rir nervosamente. A primeira cena mostra, graficamente, um homem e uma mulher masturbando um ao outro. Demora um pouco, assim como demoraram os risos da moça. Só pararam quando o sujeito, enfim, ejaculou. Ao menos, nesse sentido, Gaspar Noé, mostra logo na primeira cena que o seu filme apresentará esse tipo de material ao longo de sua metragem. Quem quiser ir embora, fique à vontade.
Mas, infelizamente, as cenas de sexo raramente são excitantes. Aliás, até mesmo na pornografia hardcore encontrar algo verdadeiramente excitante tem sido uma aventura muitas vezes frustrante. No caso de LOVE, dá até saudade de NINFOMANÍACA, de Lars Von Trier, que era mais divertido e excitante à sua maneira. Mas principalmente lembramos do infelizmente pouco visto NA CARNE E NA ALMA, de Alberto Salvá, esse sim um filme que consegue aquilo que o alter-ego de Gaspar Noé não consegue, que é saber encontrar no sexo o sentimento de amor, que sabemos que existe nos relacionamentos, e passar isso através de seu trabalho.
Quando Murphy, o protagonista masculino, fala que sua intenção como cineasta é chegar a esse ponto, sabemos a essa altura que aquilo era também a intenção de Noé. E como o filme trata também de frustração e da perda do amor, entendemos que o filme, direta ou indiretamente, acaba dialogando também com as frustrações do próprio cineasta.
De positivo, há o paralelo com IRREVERSÍVEL (2002), tanto no uso da montagem que brinca com o tempo cronológico (acrescente-se o uso da tela preta um pouco mais demorada que o usual nos cortes), quanto na obsessão pelo vermelho na fotografia, e na questão da busca por aquele momento mágico que é o início de tudo, de quando o tempo ainda não tratou de destruir. Aliás, dessa vez ele não culpa o tempo, mas as ações dos indivíduos. Somos o produto de nossas ações, de nossas escolhas. Talvez dizer isso seja simplista demais, mas pelo menos é um pouco melhor que a antiga frase.
LOVE conta a história de Murphy, um estudante de cinema que tem um casamento monótono com Omi e que recebe uma ligação da mãe de sua ex-namorada, a artista plástica Electra. Ela está desaparecida e a mãe teme que ela possa ter cometido suicídio. Preocupado com Electra e sem conseguir encontrá-la, Murphy passa a pensar no tempo em que estavam juntos, em alguns de seus melhores e também piores momentos. E do quanto aquele amor era muito mais verdadeiro do que o que ele nutre por Omi. Curiosamente os nomes dos personagens já trazem algo de pessimista ou de trágico: Murphy e Electra.
Curioso como o filme também acaba trazendo, meio que sem querer, um discurso até moralista, já que as crises de ciúme e as brigas surgem logo depois que eles encaram alguma novidade no terreno sexual, seja ir para um clube de orgia, seja fazendo sexo com outra pessoa às escondidas, seja entrando num threesome com um travesti, seja no uso de drogas. É como se eles estivessem fazendo sempre algo errado, cruzando uma fronteira que não deveriam, embora, na memória de Murphy tudo seja filtrado como parte de um ótimo momento que ele não soube aproveitar.
Uma pena que isso não seja explorado da maneira que causaria algum sentimento de solidariedade no espectador. Ou de proximidade. As cenas de sexo também não ajudam, embora sejam, em alguns momentos, graficamente belas, quando Noé enquadra certas posições de maneira criativa, dentro da janela scope. Mas isso é pouco para um filme em que o sexo é despido de tesão. Talvez a exceção seja o momento do ménage Murphy-Electra-Omi. Mas só nas preliminares. O sexo entre eles fica parecendo um monstro de seis pernas e seis braços que não tem função erótica ou de exalar beleza. A bela música, ao menos, ajuda a tornar a cena elegante. Nessa e em outra sequência, a boa música surge como um elemento quase salvador. Mas, no final, a sensação que surge é a de que LOVE é só uma jogada de marketing que não deu tão certo, e que pode significar uma nova retração na produção de filmes eróticos para o cinema.
sábado, setembro 12, 2015
TRÊS FILMES FRACOS
O corpo dói e confesso estar um tanto ranzinza. Mas não vamos deixar o blog parado por causa disso. Vamos usar esse mal estar para falar de filmes ruins. Despejar a raiva neles pode fazer bem. Ou não: pode gerar bad karma. Tanto faz. Vamos rapidinho que o tempo urge. Todos os filmes foram lançados em 2015.
TOMORROWLAND - UM LUGAR ONDE NADA É IMPOSSÍVEL (Tomorrowland)
A Disney costuma pisar na bola quando pretende fazer uma diversão infantil ou infanto-juvenil em live action. Não foge a regra com TOMORROWLAND – UM LUGAR ONDE NADA É IMPOSSÍVEL, o primeiro filme a sujar a imagem de Brad Bird, que veio de um desenho ótimo como O GIGANTE DE FERRO (1999), passou para desenhos milionários para a Pixar (OS INCRÍVEIS, 2004; RATATOUILLE, 2007), e depois para um excelente episódio da franquia de Tom Cruise, MISSÃO: IMPOSSÍVEL – PROTOCOLO FANTASMA (2011). Mas como todo mundo tem direito de errar, a gente dá um perdão para ele. TOMORROWLAND foi muito ambicioso e quebrou a cara feio nas bilheterias, que não conseguiram superar o seu orçamento de quase 200 milhões de dólares. Na história, Britt Robertson é uma jovem rebelde que encontra um objeto que a leva a descobrir um universo alternativo. Fazendo as devidas investigações, acaba encontrando um sujeito cujo passado está estreitamente ligado a esse lugar, o cientista recluso vivido por George Clooney. Caçados por andróides, eles entram em várias aventuras, confusões, mas chega um momento que o filme vai ficando muito chato e nada mais importa a não ser ir embora e esquecer aquilo.
PIXELS
Outra superprodução, PIXELS, de Chris Columbus, é uma comédia de ficção científica que tenta homenagear os videogames clássicos da década de 1980, inventando uma história em que extraterrestres atacam a Terra com “encarnações” de personagens de games clássicos. O filme tem a intenção de agradar crianças e adultos (até os com 40 ou 50 anos que tiveram acesso a esse tipo de game que se acessava fora de casa) e também os fãs de Adam Sandler, que no Brasil até que são muitos, embora nos EUA esse número esteja diminuindo cada vez mais. Sandler é um sujeito normal que acaba se tornando, junto a outros caras, em heróis nacionais, só por terem sido campeões nos tais games quando crianças. A bela Michelle Monaghan aparece como interesse amoroso de Sandler e ajuda a deixar o filme mais simpático. No mais, é uma grande bobagem que até que funciona bem no começo, mas depois é preciso ter muita paciência pra aguentar. Sem falar no sentimento de constrangimento que alguns momentos reservam.
LINDA DE MORRER
Falando em sentimento de constrangimento, o que dizer desse LINDA DE MORRER? Há tempos não via um exemplar tão ruim de nossa cinematografia. E olha que até que temos bastante, embora eu seja bastante generoso com os nossos filmes. E Glória Pires costuma ser uma boa atriz, mas é preciso que haja um bom roteiro e uma boa direção. Senão, não adianta nada. Na trama, ela é uma mulher que supostamente descobriu a cura para a celulite. Por causa disso, ela se torna uma mulher extremamente famosa. O que ela não sabe é que os tais comprimidos trazem efeitos colaterais, como irritabilidade e até mesmo a morte. E é isso que acontece com ela: morre e seu espírito fica preso na Terra, tentando buscar um meio de avisar a todos sobre os riscos do remédio. Topa com um homem que se descobre um médium, que a ajuda a fazer as pazes com a filha e a desmascarar os culpados. As referências a GHOST – DO OUTRO LADO DA VIDA são óbvias, mas nem é isso que incomoda. É que o filme não tem a menor graça e suas piadas só servem mesmo para atestar a incapacidade da diretora Cris D’Amato em fazer algo decente para o cinema.
sexta-feira, setembro 11, 2015
O AGENTE DA U.N.C.L.E. (The Man from U.N.C.L.E.)
Interessante quando alguns filmes se tornam melhores e maiores à medida que pensamos neles. É o caso de O AGENTE DA U.N.C.L.E. (2015), de Guy Ritchie, um cineasta que não é exatamente um exemplo de maestria, mas que aqui consegue obter um resultado tão elegante e bonito que não tem como não gostar, mesmo considerando que se trata de uma obra irregular em sua condução narrativa. Ou talvez o problema seja mesmo entrar em sintonia com aquele estilo peculiar de aventura de espionagem bem humorada.
Por isso acredito que o filme de Ritchie se beneficiaria de uma revisão, agora que já entendemos o flerte com o cinema de ação europeu, em contraste com o cinema de ação americano, que parece mais redondo e bem resolvido, mas também mais convencional em sua abordagem. E digo isso como um elogio ao charmoso O AGENTE DA U.N.C.L.E., adaptação de uma série de televisão que durou quatro temporadas nos anos 1960 e que teve alguns episódios duplos exibidos nos cinemas como longas-metragens.
O filme apresenta a união de dois agentes inimigos, o agente americano Solo, da CIA, vivido por Henry Cavill (de O HOMEM DE AÇO), e o agente soviético Ilya, da KGB, vivido por Armie Hammer (de O CAVALEIRO SOLITÁRIO). Depois de um interessante e divertido jogo de gato e rato inicial, os dois descobrem que precisam se aliar contra uma poderosa organização criminal de origens nazistas, que tem o interesse de obter armas nucleares.
No meio disso tudo há a presença crucial da alemã Gaby, vivida pela sueca Alicia Vikander (de O AMANTE DA RAINHA). Impressionante como Alicia consegue se sobressair em graça, simpatia, presença de cena, beleza e elegância naquelas roupas estilosas da primeira metade dos 60s. E isso a gente fala de um ponto de vista dos homens (ou de mulheres que gostam de mulheres), já que é perfeitamente natural boa parte do público se encantar por Cavill e Hammer, que estão, além de bonitos, muito à vontade nos papéis (Hammer, inclusive, convence muito bem como um russo).
A trama é um tanto confusa, mas isso é normal em se tratando de filmes de espionagem, ainda mais quando são filmes que não tentam se levar tão a sério no que se refere ao enredo – mais uma característica bem europeia, aliás. Nisso, o que temos é um conjunto de cenas memoráveis e saborosas, somadas a uma trilha sonora igualmente de dar água na boca.
O que dizer da cena em que a câmera se afasta do quarto de Gaby ao som de “Jimmy renda-se”, do Tom Zé? E que maravilha que é ouvir essa música dentro daquele contexto e em uma sala IMAX! E aí lembramos também da cena da perseguição em um lago enquanto o personagem de Cavill entra um caminhão, ao som de "Che vuole questa musica stasera", de Peppino Gagliardi. A cena é impressionante e a junção com esta bela canção é especialmente feliz. Outro momento feliz inclui “Cry to me”, de Solomon Burke, quando Gaby tenta seduzir, no quarto de hotel, o agente da KGB que está lá para fingir que é seu noivo.
Ah, e o filme ainda traz o querido e sumido Hugh Grant no papel de um homem que age nos bastidores, mas que é fundamental para a história. Enfim, O AGENTE DA U.N.C.L.E. acabou crescendo tanto em minha memória afetiva nesses últimos dias que, eu que tinha birra com o Guy Ritchie, vou passar a cogitar ver outros trabalhos dele que não vi, e talvez até perdoe um dia aquele seu SHERLOCK HOLMES (2009), cuja sequência de 2011 eu nem tive coragem de ver, na verdade. Pra que redenção melhor para um artista do que ganhar a simpatia dos desafetos?
quarta-feira, setembro 09, 2015
QUE HORAS ELA VOLTA?
E Anna Muylaert, mais do que nunca, se mostra ainda melhor em lidar com os tons de drama e comédia, que marcaram também seus outros dois trabalhos mais famosos, DURVAL DISCOS (2002) e É PROIBIDO FUMAR (2009). A diretora tem um talento especial para contrabalançar esses dois pólos, que em se tratando especificamente de QUE HORAS ELA VOLTA? (2015) é bastante delicado. Ainda assim, o filme sofre com parte da audiência rindo em determinados momentos que talvez não sejam tão adequados, ou talvez essa adequação varie mesmo de pessoa para pessoa.
O que vemos aqui é um trabalho sensível sobre o ato de ser mãe, o estar presente e o estar ausente. E, nisso, o título do filme é bastante feliz, aparecendo em dois momentos distintos e ao mesmo tempo muito parecidos da narrativa. O fato de Regina Casé estar mais associada à comédia do que ao drama contribui positivamente para o filme, e para o modo como nos afeiçoamos à sua personagem. Quem cresceu, por exemplo, vendo-a em um programa como TV PIRATA, ou em exibições na televisão de OS SETE GATINHOS, de Neville D'Almeida, já criou em torno da atriz uma persona associada ao escracho.
Em QUE HORAS ELA VOLTA? ela é Val, uma empregada doméstica que dorme no trabalho. Ela veio do Nordeste e lá deixou uma filha, que não vê há dez anos. Compensando a dor de não estar com a filha, ela cuida com muito carinho do filho da patroa, Fabinho (Michel Joelsas). Ele nutre muito mais amor por Val do que pela própria mãe, Bárbara (Karine Teles), que está quase sempre ausente, por causa do trabalho.
A rotina de Val muda quando ela recebe o telefonema da filha Jéssica (Camila Márdia), que vai prestar vestibular em São Paulo. Sem ter onde alocá-la, Val acha por bem trazê-la para a casa dos patrões e cria-se, desde a sua chegada, um sentimento de desconforto, que é automaticamente sentido pelo espectador também.
Está ali uma jovem que não se conforma com o jeito extremamente subserviente da mãe e que, deliberadamente, age de maneira a questionar a cultura herdeira do tempo da escravidão, que deixa a empregada em um quartinho propositalmente minúsculo e desconfortável, próximo de vassouras e outros apetrechos de limpeza. Quando Jéssica propõe dormir no luxuoso quarto de hóspedes, isso acaba gerando uma espécie de discórdia entre o marido, Carlos (Lourenço Mutarelli), e a mulher. Ele tenta tratá-la da melhor maneira possível (depois entendemos o porquê), enquanto a mulher fica incomodada com aquela moça tão segura de si, mesmo não tendo dinheiro, nem lugar pra ficar.
Desse modo, QUE HORAS ELA VOLTA? funciona muito bem em suas duas funções: a de tratar da questão da maternidade e também dos embates de classes da sociedade contemporânea, que já havia sido vista em outros trabalhos de destaque, O SOM AO REDOR, de Kleber Mendonça Filho, e CASA GRANDE, de Fellipe Barbosa. Os três filmes dialogam entre si e trazem uma discussão muito saudável sobre um novo estado das coisas.
O filme de Mulayert tem se saído muito bem em exibições no exterior, principalmente na França, depois de conquistar vários prêmios internacionais, como os de melhor atriz para a dupla Regina Casé e Camila Márdia, no Festival de Sundance. Tem-se falado muito, também, de o trabalho ser indicado ao Oscar 2016.
As premiações e o sucesso de crítica têm atraído também um público mais específico, o que é uma pena, pois o filme tem tudo para agradar tanto as classes mais favorecidas quanto as menos favorecidas da sociedade brasileira, dado o seu discurso de esquerda que toca na ferida de uma forma muito sensível.
Como se trata de um filme especial, QUE HORAS ELA VOLTA? é o caso de obra cujo conjunto de cenas parece perfeito, embora seja fácil enumerar algumas sequências antológicas, como o momento da chegada de Jéssica na casa, as cenas que mostram o carinho de Val com Fabinho, a cena do almoço de Jéssica com o patrão da mãe, e, principalmente, a cena de Val na piscina, que é de deixar os olhos marejados. É um filme que nos deixa com um sentimento de alegria agridoce muito bem-vindo.
segunda-feira, setembro 07, 2015
RICKI AND THE FLASH – DE VOLTA PARA CASA (Ricki and the Flash)
Tenho um especial carinho pelos filmes de Jonathan Demme. Acho que por ter sido apresentado a dois deles no início da minha cinefilia: TOTALMENTE SELVAGEM (1986) na televisão e DE CASO COM A MÁFIA (1988) no cinema. Depois é que fui saber que ele é um cineasta muito ligado à música, tendo feito documentários e vídeos para artistas como Talking Heads, Bruce Springsteen, Neil Young e New Order (seu próximo projeto é um documentário sobre Justin Timberlake).
Desde O CASAMENTO DE RACHEL (2008) que Demme não realizava um longa de ficção para o cinema. É muito tempo para um cineasta oscarizado. Mas talvez isso tenha ocorrido porque ele veio dos filmes B e depois passou para trabalhos mais intimistas ou menores. RICKI AND THE FLASH – DE VOLTA PARA CASA (2015), apesar de ser protagonizado por Meryl Streep, é um filme menor. A gente percebe isso. Assim como também percebe o diálogo deste trabalho com o anterior (e bem melhor).
Assim como em O CASAMENTO DE RACHEL, o novo filme lida com problemas familiares e situações desconfortáveis. Uma pena que a escalação de Meryl Streep para viver a roqueira que abandonou a família pelo amor à música não tenha sido tão acertada. Provavelmente acreditaram que ela podia interpretar qualquer personagem e convencer – Kevin Kline, por exemplo, está numa chave muito mais discreta e confortável, combinando bem com o papel. Há uma cena com eles dois e a filha depressiva que é destaque: quando eles estão calmos depois de terem fumado maconha.
Na trama, Meryl Streep é Linda/Ricki, uma cantora de rock decadente de uma banda de veteranos que toca em um bar em uma pequena cidade da Califórnia. Em toda sua vida só gravou um disco e hoje vive de alegrar velhos e jovens com clássicos do rock ou hits contemporâneos, como canções famosas de Lady Gaga e Pink. Sua rotina é interrompida quando recebe uma chamada do ex-marido, informando que sua filha acabou de ser abandonada pelo marido e que está passando por uma depressão. Mesmo desconfortável, ela aparece na casa e tenta, à sua maneira, ajudar na recuperação da filha.
Ao mesmo tempo, percebe o quanto também esteve ausente da vida de seus outros dois filhos: o que está prestes a casar e o que é gay. A questão do desconforto nos relacionamentos também aparece nas apresentações da banda, já que ela não se sente à vontade para assumir publicamente o namoro com o guitarrista. É também durante uma dessas apresentações que ela faz um discurso que pode ser visto como feminista, falando do quanto para o homem estar ausente em uma família é normal, enquanto que para a mulher é algo imperdoável.
Apesar disso, RICKI AND THE FLASH não chega a ser suficientemente desconfortável, nem toca na ferida a fundo. Ao contrário, é um filme feel good, sem muita vergonha de sê-lo. De todo modo, mesmo com todos os defeitos, é um trabalho de personalidade e com a cara de seu diretor.
domingo, setembro 06, 2015
SETE CURTAS E MÉDIAS-METRAGENS
Como o tempo urge e a quantidade de títulos para escrever para o blog anda se multiplicando feito preás, de vez em quando é preciso escrever sobre alguns filmes de maneira mais apressada. Se não fizer isso corro o risco de não escrever nada sobre eles. Resolvi selecionar, então, um grupo de curtas e médias-metragens vistos em tempos diferentes e de épocas diferentes para que possa tecer algumas rápidas considerações. Vamos lá.
BLACK MIRROR - WHITE CHRISTMAS
A série/antologia britânica BLACK MIRROR já é considerada uma das melhores da televisão de todos os tempos. Cada episódio de cerca de uma hora traz ideias tão fascinantes quanto perturbadoras, unindo ficção científica com horror. WHITE CHRISTMAS (2014, foto) foi um episódio especial que a emissora exibiu, como um presente para os fãs, no final do ano passado, mas eles bem que poderiam tê-lo incluído na terceira e próxima temporada vindora (esperamos que realmente venha). Há uma interessante ideia inspirada nos bloqueios que as pessoas fazem de seus desafetos no Facebook: no caso, uma mulher tem um equipamento que bloqueia o marido da sua vida e o que ele vê dela é só um borrão e o que ouve são só ruídos ininteligíveis. O homem fica desesperado. Há outra história igualmente perturbadora envolvendo uma mulher que acorda e descobre que é um clone preso nas mãos de um sujeito sádico (Jon Hamm). A coisa é muito pior do que eu conseguiria descrever, na verdade. É o tipo de episódio para se mostrar aos amigos e rever com frequência. Mantém o alto nível da série e resolvi incluí-lo no post pois o vejo como um média-metragem independente, embora no IMDB ele apareça numa suposta terceira temporada.
O BANQUETE (Feast)
Exibido antes da animação OPERAÇÃO BIG HERO, O BANQUETE (2014), de Patrick Osborne, até ganhou o Oscar de melhor curta em animação este ano, mas a Disney já fez curtas melhores. De todo modo, é um bonito filminho que mostra um cãozinho que adora comer e acaba se esbaldando com isso, por causa da alimentação desregrada do seu dono. Porém, certo dia o seu dono passa a namorar uma moça vegetariana e se assume também como vegetariano, dando ao pobre cão também só vegetais. O animal fica bastante aborrecido. O bonito do filme está no modo como é mostrado o quanto o cão ama o seu dono. Melhor não falar muito para não estragar a surpresa de quem ainda não viu. Acho que tem pra ver no youtube.
SUPEROUTRO
Tive o prazer de ver o média SUPEROUTRO (1989) na mostra Outros Cinemas deste ano, com a presença do diretor Edgar Navarro, que é uma figura e tanto, e estava tão disposto a conversar após a sessão que se recusou a encerrar a conversa no tempo sugerido. Estava curtindo muito estar ali e dizendo o quanto tem orgulho de seu filme. De fato, é um filme e tanto, que ganha nas revisões e possui algumas cenas que certamente ainda hoje escandalizam famílias, como o famoso close-up do protagonista defecando. É o tipo de estética que lembra o que o pessoal do cinema marginal fazia, só que feito num período mais comportado de nossa cinematografia. Com um discurso político mais do que interessante, antecipa e muito o desencanto que seria a nossa primeira experiência com um Presidente da República eleito com a redemocratização. E Navarro fez isso sem saber, como se tivesse antenas que captassem também o futuro. Bertrand Duarte, o protagonista, o mendigo que incorpora o tal SuperOutro, depois faria ALMA CORSÁRIA, de Carlos Reichenbach, também realizado em um período atípico de realizações cinematográficas no Brasil.
JORNADA AO OESTE (Xi You)
Mais um média especial, mas que curiosamente, ao contrário dos demais, ganhou exibição paga no circuito, apesar da duração inferior aos 60 minutos. JORNADA AO OESTE (2014), de Tsai Ming-Liang, é mais um exercício de paciência para o espectador, depois da experiência radical de CÃES ERRANTES (2013). O filme apresenta mais uma vez Kang-sheng Lee no papel de um monge que anda vagarosamente, na contramão da sociedade de consumo que corre nas ruas como se fosse tirar o pai da forca. Assim, em "câmera lenta", ele é seguido pacientemente por um discípulo, vivido por Denis Lavant. O segredo para gostar de JORNADA AO OESTE é estar com predisposição a ver um filme que o desafia constantemente. E tentar a todo instante acalmar o espírito. Pode fazer muito bem, inclusive.
KUNG FURY
Este filme é tão inacreditável que mal contemos o entusiasmo. KUNG FURY (2015) é uma homenagem à década de 1980, tanto aos videogamos quanto ao próprio espírito da época – os filmes de ação, as roupas, a tecnologia, as séries de TV etc. Na história, Kung Fury, vivido pelo próprio diretor David Sandberg, é o mais invocado lutador de artes marciais de Miami, e a ele é entregue o serviço de voltar no tempo para matar o maior criminoso de todos os tempos, Kung Fuhrer Hitler. Impossível não rir em diversos momentos, seja pela graça da trama, seja pelos absurdos. Acabou virando coqueluche na internet, depois de uma exibição em Cannes. Sensacional.
ZERO DE CONDUTA (Zéro de Conduite - Jeunes Diables au Collège)
Jean Vigo é um dos cineastas franceses mais cultuados de todos os tempos, mesmo tendo pouquíssimos filmes no currículo. Este média (de 41 minutos), ZERO DE CONDUTA (1933), é um deles. Serviu de inspiração para muitos diretores que viriam a trabalhar com crianças. Os meninos no filme são especialmente anárquicos, o que combina com o próprio registro de ZERO DE CONDUTA, que parece uma obra que se recusa a obedecer a regras narrativas, embora não seja exatamente classificado como experimental ou algo do tipo. Mas a conduta dos meninos e o modo como o diretor e o espectador os apoia parece ser bastante representativo de um posicionamento político que só deve ser plenamente entendido uma vez que saibamos mais da vida e da obra de Vigo. Um dia pretendo revisar esta obra, bem como os outros trabalhos dele, mas de posse de mais conhecimento.
NE PAS PROJETER
Ver o trabalho de um amigo não é sempre fácil, principalmente quando vamos escrever a respeito, mas não dá para negar que o curta NE PAS PROJETER (2015), de Cristian Verardi, é um trabalho bastante inventivo, que, ao mesmo tempo que homenageia filmes de horror que utilizam o gore (difícil não lembrar de Lucio Fulci), é também cinema sobre o amor ao cinema, sobre a influência dos filmes sobre a gente, sobre ser tragado por eles e amá-los acima de tudo. Na história, um projecionista encontra um misterioso rolo de filmes no cinema em que trabalha. O filme, apesar de ter sido apresentado em "carreira solo" no Festival de Gramado, compõe o longa em segmentos 13 HISTÓRIAS ESTRANHAS, que espero poder ver integralmente em breve.
sábado, setembro 05, 2015
JIA ZHANG-KE, UM HOMEM DE FENYANG
Excelente a iniciativa dos dois curadores da programação do Cinema do Dragão em fazer de vez em quando um debate após a sessão de determinados filmes. Já ficaram célebres os debates com os realizadores e por isso fiquei especialmente curioso com o debate após a sessão de JIA ZHANG-KE, UM HOMEM DE FENYANG (2014), que não iria contar com a presença ilustre de Walter Salles, mas os dois curadores promoveram uma conversa muito rica e interessante sobre o documentário, sobre as obras de Salles e Jia e também sobre a própria história do Brasil e da China retratada em suas obras.
Para que um cineasta chegue a fazer um filme em homenagem a um colega seu é necessário primeiramente que haja uma profunda admiração. Aconteceu com Wim Wenders duas vezes: com TOKYO GA (que homenageia Yasujiro Ozu) e com UM FILME PARA NICK (que homenageia Nicholas Ray); com Abel Ferrara e seu PASOLINI; com Eugenio Puppo e seu OZUALDO CANDEIAS E O CINEMA; com Tim Burton e ED WOOD; com Martin Scorsese e A INVENÇÃO DE HUGO CABRET (que homenageia Georges Méliès). JIA ZHANG-KE, UM HOMEM DE FENYANG é um filme dessa linha.
Trata-se primeiramente de um filme sobre o referido cineasta chinês, feito com muito carinho por alguém que veio dos documentários antes de se aventurar e de se tornar mundialmente famoso através da ficção. Walter Salles sequer aparece no documentário, dando voz apenas a Jia e seus colaboradores e sua história de vida, que falam das locações que serviram de cenário para algumas das obras mais importantes, da dificuldade e também da sua necessidade de fazer cinema num país fechado como a China.
O que diferencia o documentário de Salles de um extra de DVD – já que há também um passeio pelos principais filmes do realizador – é que há espaço para um retrato para íntimo do homem Jia Zhang-ke, não apenas do cineasta. Assim, ficamos sabendo de detalhes da sua vida, como o quanto um fato ocorrido em 2006 ainda o deixa extremamente comovido.
Ao vermos trechos de filmes como XIAO WU (1997), PLATAFORMA (2000), PRAZERES DESCONHECIDOS (2002), O MUNDO (2004), EM BUSCA DA VIDA (2006), 24 CITY (2008) e UM TOQUE DE PECADO (2013), observamos o interesse do cineasta no ser humano enfrentando as dificuldades de estar em um universo em constante transformação, e nisso ele parece ser crítico tanto da situação política nascida da Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, quanto da globalização recente.
Quanto à aproximação dos dois cineastas, muito disso se dá tanto devido ao fato de ambos fazerem também documentários, quanto em serem particularmente preocupados com a história recente de seus países. Como não lembrar de TERRA ESTRANGEIRA (1996), que tratou do impacto da Era Collor na sociedade brasileira? E de filmes que adentram o Brasil profundo, como CENTRAL DO BRASIL (1998) e ABRIL DESPEDAÇADO (2001)? O distanciamento se dá ao fato de Salles ter feito filmes no exterior também, mas sempre interessado no aspecto humano dentro de um contexto histórico, ou pelo menos dentro de uma história, caso do renegado ÁGUA NEGRA (2005).
sexta-feira, setembro 04, 2015
A ENTIDADE 2 (Sinister 2)
Uma boa surpresa este A ENTIDADE 2 (2015), de Ciarán Foy, que tem imagens e cenas fortes o suficiente para ficarem gravadas na memória, diferente do primeiro, de 2012, que era mais convencional e por isso esquecível. Nesta sequência, algumas coisas do primeiro filme são usadas como elo de ligação, como a figura demoníaca que aparece de vez em quando, as citações às casas amaldiçoadas e cercadas de morte e o personagem de Ethan Hawke. O único personagem remanescente neste novo filme é o agora ex-delegado de polícia vivido por James Ransone.
Trata-se de um personagem que ganha a simpatia da audiência já na primeira cena, quando entra em uma igreja para conversar com um padre em um confessionário, e depois quando começa a manter contato com uma mãe de dois garotos que tem fugido do marido violento e acaba se escondendo em uma dessas casas amaldiçoadas e palco de fantasmas e morte. Uma vez que as pessoas entram numa dessas casas, elas serão perseguidas e mortas por este demônio.
Quem interpreta a desesperada mãe é a belíssima Shannyn Sossamon, que vem sendo descoberta para um público maior graças à minissérie WAYWARD PINES, embora ela tenha aparecido também no excelente (e pouco visto) CAMINHO PARA O NADA, de Monte Hellmann. Aqui ela contribui novamente para abrilhantar a história, elevando o que poderia ser um filme de horror de segunda categoria e o tornando bem mais interessante.
Quando o horror da vida real, representado pela crueldade do marido e também de um dos filhos, aflora, ele passa a se tornar ainda mais assustador que o horror das crianças fantasmas que afligem o garoto mais sensível – as crianças fantasmas o forçam a ver filmes de mortes cruéis e violentas. Assim se inicia um processo de crescimento do filme, inclusive como exemplar do gênero, graças, principalmente a uma cena ao mesmo tempo extremamente cruel e delirante.
Sem querer presentear o leitor com um spoiler, mas já o fazendo, refiro-me à cena das três cruzes, que é tão inacreditável, até mesmo dentro da própria lógica da narrativa e da montagem do filme, que parece algo saído de um de nossos piores pesadelos e invade a sala de cinema.
Nesse sentido, toda a questão que o filme (a própria franquia, na verdade) apenas ensaiava no início, sobre a força do cinema, e em sua extensão, da arte, como também um elemento voltado para o mal se torna muito mais pungente quando vemos o ato daquela criança empunhando uma câmera e prestes a fazer cometer barbárie.
Assim, A ENTIDADE 2 ganha ao apostar na construção psicológica de seus personagens, e aos fazê-los mais interessantes do que a suposta trama principal, para, em seguida, se autoafirmar como uma obra que se fincará na memória afetiva de certas audiências.
quinta-feira, setembro 03, 2015
BÊNÇÃO MORTAL (Deadly Blessing)
Nunca houve uma geração de cineastas especialistas em filmes de horror tão boa quando a da década de 70. George Romero, John Carpenter, John Landis, David Cronenberg, Larry Cohen, David Lynch, Dario Argento, Tobe Hooper, sem falar em outros mestres que transitavam por outros gêneros, como Steven Spielberg, Brian De Palma e William Friedkin, que deram sua valiosa contribuição.
Dessa geração também saiu Wes Craven, o homem por trás de sucessos como QUADRILHA DE SÁDICOS (1977), A HORA DO PESADELO (1984) e PÂNICO (1996). O mesmo Craven que partiu neste domingo passado para um outro plano, depois de uma longa batalha contra um tumor cerebral.
BÊNÇÃO MORTAL (1981), que eu vi como forma de homenageá-lo, é um de seus trabalhos menos lembrados, embora seja cultuado por uma geração de fãs, muitos deles tendo entrado em contato com o filme pelas exibições na televisão ou via VHS. O filme conta com o primeiro papel de destaque de Sharon Stone, que ainda levaria alguns anos para se tornar uma rainha em Hollywood.
A trama se passa em uma aldeia amish, que é palco de confronto familiar entre o líder da comunidade, vivido por Ernest Borgnine, e seu filho, que se afastou dos hábitos e costumes dos religiosos, preferindo viver em paz com sua carinhosa esposa. Mas o que mais interessa mesmo, já que se trata de um filme de terror, é a chegada de um misterioso assassino serial, que começa uma série de mortes, vitimando logo um personagem com quem já tínhamos nos apegado logo no início. Vemos, com isso, o quanto Craven aprecia enfatizar as personagens femininas, como também faria em outros de seus trabalhos mais famosos.
Interessante notar que uma das cenas mais antológicas de A HORA DO PESADELO (a cena da banheira) nasceu justamente em BÊNÇÃO MORTAL. Craven fez uma autocitação. O filme que apresentou Freddie Krueger para o mundo utilizou até o mesmo enquadramento e a mesma posição de sentar na banheira da atriz.
É também curioso perceber que as várias convenções do gênero, que seriam tratadas com humor negro e metalinguagem em PÂNICO, aparecem com vigor neste trabalho de Craven, que também conta com a presença de Michael Barryman, o vilão icônico de QUADRILHA DE SÁDICOS, com seu rosto expressivo e estranho.
Usando recursos dos tradicionais whodunits para pontuar a narrativa e uma câmera subjetiva do ponto de vista do assassino, BÊNÇÃO MORTAL reserva ainda algumas boas surpresas em seu final. É um pequeno belo filme que ajuda a atestar a maestria de seu autor.
quarta-feira, setembro 02, 2015
CORRENTE DO MAL (It Follows)
Eis o filme que livra a maldição dos filmes fracos de horror em nosso circuito. Não só isso: CORRENTE DO MAL (2014) é um dos mais inteligentes filmes do gênero a aportar por aqui há um bom tempo. Ao mesmo tempo em que é aberto a variadas interpretações, trata-se de uma obra que se basta mesmo analisando-se "apenas" sua capacidade de envolver e de causar suspense com a expectativa constante de que algo de ruim está prestes a aparecer num giro de 360 graus.
CORRENTE DO MAL nos apresenta ao drama de Jay (Maika Monroe), uma jovem feliz que passa a ser atormentada depois que faz sexo com um rapaz que lhe passa, através da relação sexual, uma espécie de maldição. A partir de então, ela passará a ver a morte iminente na figura de pessoas das mais variadas formas, prontas para lhe pegar. Uma vez que ela morra, a morte voltará a dar prioridade ao seu hospedeiro anterior. O que ela faz é correr feito uma desesperada.
A sorte dela é encontrar um grupo de bons amigos que acreditam nesse absurdo e a ajudam a combater ou ao menos conter esse mal. O que não significa que ela tenha finalmente encontrado a paz. Ao contrário, já que boa parte da metragem do filme contém aparições dessas figuras fantasmagóricas, muitas delas realmente assustadoras, e a fuga desesperada de Jay de algo que só ela vê.
Curiosamente, o tom mais sério do filme dá espaço a alguns momentos de alívio cômico, como o uso de um efeito especial bem antigo, na cena da praia, ou na famosa cena da piscina. Essa tentativa de também encontrar graça em meio à desgraça pode ser uma maneira de o filme entrar em sintonia com as produções de horror e ficção científica que são vistas na televisão em preto e branco da sala de estar da casa onde moram – o filme se passa, provavelmente, nos anos 1960, pela ambientação e pela exibição nos cinemas de CHARADA, de Stanley Donen.
Essa ambientação, inclusive, é um dos destaques visuais do filme de David Robert Mitchell, que destaca a época nos carros, nas decorações, na lingerie, num modo de pensar mais ingênuo. Ao mesmo tempo, a questão de um mal que surge a partir de uma relação sexual pode ser visto como algo retrógrado, como também como uma forma de homenagear tantos outros filmes de horror que têm esse posicionamento mais conservador em condenar aqueles que praticam sexo com a liberdade que eles ou elas merecem. Principalmente levando em consideração que o mundo mostrado no filme é um mundo movido a um grande tédio.
Pensar em CORRENTE DO MAL apenas ligando ao sexo talvez seja um tanto limitador. Mas, ainda que eu não tenha conseguindo encontrar outras interpretações para o filme, embora saiba que existam, a questão do sexo não deve ser deixada de lado, até porque o ato sexual não é mostrado como algo prazeroso ao longo do filme. Para sobreviver, por exemplo, Jay precisa fazer sexo por obrigação, enfrentando questões morais sobre passar ou não adiante aquele mal para pessoas inocentes. E nesse sentido a sequência final é uma das mais belas, terríveis e melancólicas, e ao mesmo tempo cruelmente libertadoras, do cinema jovem recente.
Quem puder ver CORRENTE DO MAL no cinema, não perca essa oportunidade de ouro. A imagem belíssima e o brilhante trabalho de som ajudam bastante a criar um clima maior de imersão e de prazer em estar vendo algo realmente especial.
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