sexta-feira, julho 28, 2023

VIAGEM A ICARAÍ DE AMONTADA, BELO HORIZONTE E SÃO PAULO



Icaraí de Amontada, quarta a sexta-feira, 12 a 14 de julho

As viagens fazem um bem imenso ao nosso espírito. Nos três anos anteriores eu não viajei nas férias e senti muita falta. Neste mês, a temporada de viagens começou com um destino por aqui mesmo, no meu estado do Ceará, um verdadeiro paraíso na Terra chamado Icaraí de Amontada. Passei três dias e duas noites com minha namorada, Giselle, uma pessoa que, se não foi mencionada nominalmente em postagens mais antigas do blog, certamente foi mencionada de outra maneira, diversas vezes, até.

Já é a terceira viagem que faço com ela desde nosso retorno (a gente havia namorado no período de 1999-2001) e cada viagem com ela é melhor que a anterior. Uma alegria imensa estar a seu lado e, como ela tem espírito aventureiro, escolher, por exemplo, uma pousada ao mesmo tempo rústica e delicada (Chill Kite), localizada num terreno cheio de pequenos morrinhos em ruas apertadas, é algo que eu não faria sozinho, mas adorei ter feito e me sentido tão bem em todos os dias e em todos os lugares em que estivemos. Teve passeio à noite na praia, refeições saborosas, passeio de buggy e passeio de barco no túnel do amor, o manguezal mais bonito do mundo, no Rio Aracatiaçu. Bom demais!

Belo Horizonte

Terça-feira, 18 de julho

Belo Horizonte era uma cidade que até então eu não havia tido o prazer de visitar. Graças à querida Andrea Ormond (blog Estranho Encontro), fui convidado a mediar um debate com o diretor de CANASTRA SUJA, Caio Sóh, um dos filmes presentes na Mostra Curta Circuito (além de escrever um ensaio sobre o filme para o catálogo). O tema da Curta Circuito deste ano foi “Amores Brasileiros” e o trabalho dos organizadores é feito com tanto carinho que não tem como não ficar ótimo – Daniela Fernandes é genial, como pude ver no cuidado e na originalidade em vários catálogos de mostras passadas que ela me presenteou.

O diretor do filme não pôde ir na noite da exibição, e o querido amigo Renato Silveira (Cinematório, podcast da Abraccine) ficou comigo no debate após a sessão no Cine Humberto Mauro, um espaço muito gostoso, com excelente projeção. O debate transcorreu em paz, apesar do meu nervosismo e das questões problemáticas que o filme acabou atraindo e suscitando um pouco de polêmica. O ruim do nervosismo é que ele atropelou falas que eu poderia ter dito, mas ao mesmo tempo pode ter contribuído para uma maior espontaneidade.

Fico muito feliz e grato pela recepção calorosa de Daniela, a diretora da mostra, e de Cláudio Constantino, o produtor executivo. Tive o prazer de almoçar com eles e de conversar sobre cinema, políticas culturais e histórias da mostra. À noite, antes do filme começar, tive a honra de encontrar pessoalmente Adilson Marcelino (site Mulheres do Cinema Brasileiro), um dos amigos que há mais tempo conheço, desde a época do boom dos blogs de cinema, na primeira metade dos anos 2000, o momento que mais fiz amigos pelo Brasil. Adilson esteve em praticamente todas as sessões da mostra, desde maio.

Antes da sessão do filme, entrei na tenda de uma cartomante (faz parte das atrações do evento deste ano), conheci Kel Gomes, crítica do Cinematório, junto com Renato Silveira, seu marido. E Kel é uma simpatia. Após o final da sessão e do debate, fomos (Daniela, Cláudio, Adilson, Renato, Kel e eu) jantar e conversar mais sobre cinema e questões sociais que o filme acabou trazendo.



Quarta-feira, 19 de julho


No dia seguinte, fui aproveitar meu tempo em Minas para conhecer o maior museu de arte em céu aberto do mundo, num espaço natural deslumbrante. Tinha ouvido falar de Inhotim (localizado em Brumadinho-MG) pela primeira vez através da Fernanda Takai, que gravou o show da turnê de Na Medida do Impossível nesse espaço. O lugar é tão imenso e tão deslumbrante do ponto de vista da natureza, que até as excelentes obras de arte espalhadas por vários espaços ficam pequenas diante das belezas naturais. É um lugar que requer muita caminhada pelas trilhas, mas isso faz parte da graça do passeio. Ao fim do dia, meu encontro com Paulo Henrique da Silva (jornal O Tempo) acabou não dando certo, mas eu estava tão cansado do passeio em Inhotim, que acabei indo dormir mais cedo mesmo.

São Paulo

Quinta-feira, 20 de julho

Já ansiava por um retorno a São Paulo há um tempinho. Havia ido pela última vez em julho de 2019. Quatro anos longe da cidade que mais gosto é muito tempo. A ida a BH programada em data já especificada tornou a escolha da data em Sampa mais fácil. Foi uma viagem um pouco mais rápida, mas acredito que foi na medida para encontrar amigos queridos, visitar espaços já conhecidos e outros novos, ver filmes nos cinemas de lá, andar pela Paulista, virar formiguinha no metrô etc.

Fiquei hospedado na casa do amigo Chico Fireman (Filmes do Chico, podcast Cinema na Varanda) pela segunda vez. A primeira foi em 2016, quando estive em Sampa por ocasião do casamento de Michel Simões e Cris Lumi. A localização da casa dele é ótima, pois fica bem em frente à estação de metrô Santa Cecília, facilitando e muito meu deslocamento para diversos lugares da cidade. A sensação de sair de casa naquele frio, rumo a um novo dia na maior metrópole do Brasil, não tem preço.

Uma das coisas que havia combinado com alguma antecedência era a sessão de OPPENHEIMER, com Michel e Cris, na sala IMAX do Cinépolis Iguatemi JK. Eu diria que é a maior e melhor sala a que eu já fui, com todas os assentos pensados para proporcionar conforto para os espectadores, além de excelente qualidade de imagem e som. Depois do filme, que entrou na coluna dos títulos de Christopher Nolan que me agradaram, fomos jantar num restaurante árabe muito bacana no shopping, o Almanara. Michel e Cris ainda foram para a sessão de BARBIE, às 11 da noite, mas eu voltei para casa – quis ver o filme de Greta Gerwig depois, com o corpo mais descansado.

Sexta-feira, 21 de julho

O que havia programado na noite de sexta-feira era um encontro com uma turma de amigos queridos que faço questão de sempre ver nas minhas idas a Sampa. Como eles costumam dizer, eles raramente combinam de se encontrar e acabo tendo a função de agregador desses reencontros memoráveis. Infelizmente, Laura Cánepa e Leandro Caraça não puderam comparecer, por motivos de força maior. Minha amiga Erika Bataglia também foi acometida por uma forte gripe e teve que desmarcar a ida.

Mas antes do encontro à noite, fui passear pela Paulista e saí para ver BARBIE na primeira sessão disponível. É incrível o trabalho de marketing desse filme, feito pela Warner, mas também pelas próprias pessoas nas redes sociais e nas ruas. Eu sinceramente, nunca vi nada igual. Nem na época de BATMAN ou de TITANIC, eu diria, em termos de exposição nas mídias, de divulgação boca a boca e nas próprias vestimentas. No caminho para o cinema, por exemplo, um dos carros do metrô da linha amarela estava rodeado de propaganda do filme, com muita gente pedindo espaço para tirar fotos com o metrô em movimento.

Felizmente, a sala onde vi o filme, no Reserva Cultural, foi uma das poucas que não lotou, e pude comprar ingresso com tranquilidade, apesar de achar que a projeção poderia fazer mais jus à qualidade da fotografia. Ainda assim, foi uma obra que me encantou em muitos aspectos, e ainda quero parar para escrever sobre o filme mais atentamente, aqui para o blog. Até agora não tive tempo, nem energia para tal. Após o filme, acabei comprando, na livraria do Reserva, o box em BluRay Carpenter Essencial (contendo os filmes O ENIGMA DE OUTRO MUNDO, A BRUMA ASSASSINA e CHRISTINE, O CARRO ASSASSINO), que está fora de catálogo e esgotado no site da Versátil e na Amazon. Comprei mais caro, claro, mas no dia seguinte acabei vendo numa banca por um preço bem maior.

Depois de almoçar lá pela Paulista mesmo, fui dar uma passada numa loja de CDs da Rua Augusta. Imagino que lá é um dos poucos espaços vivos de venda de CDs e DVDs no Brasil, a Augusta Discos. Tinha a missão de buscar um disco do Nick Cave para meu amigo Walker Jr. (e só encontrei um, o Let Love In). Alguns discos são muitos caros, especialmente os importados, e dos quatro que peguei pra mim, acabei levando apenas dois, o MTV Unplugged in New York, do Nirvana, que me haviam roubado, e o Elephant, dos White Stripes. Se tivesse mais tempo disponível, certamente sairia de lá com mais coisas, mas tinha um encontro marcado com uma turma bacana.

Marcelo V. e Ana Paul confirmaram o encontro no bar Esquina Grill do Fuad, ali pertinho de onde eu estava hospedado também. Cheguei lá e os dois lá estavam. Marcelo e Ana são pessoas especiais para mim. Sempre que vou a São Paulo, faço questão de vê-los pelo menos uma vez. Quanto ao bar, o problema era que o espaço estava com música ao vivo alta, mal dando para ouvir a nossa voz. Então, ficamos aguardando os demais chegarem para procurarmos outro bar mais calmo, ou pelo menos calmo o suficiente para que nos ouvíssemos. O querido Gabriel Carneiro, cineasta, romancista e crítico de cinema, também chega para trazer mais alegria ao encontro.

Em seguida, chegam Edu Fernandes (VIUU) e Gustavo Cavinato. O Edu, eu conheci melhor quando estive em dezembro do ano passado no Fest Aruanda, em João Pessoa. Tivemos a oportunidade de conversar bastante e de encontrarmos muitos pontos em comum em nossa maneira de ver a vida. Já o Gustavo, eu o conheci na época que entrei na lista Cannibal Holocaust, em 2001, e o vi pela última vez, pessoalmente, no aniversário do Thomaz Albornoz, lá em 2007. Já fazia um bom tempo. Chegam Michel e Cris, os últimos que faltavam da turma. De lá fomos para um bar que o Edu conhecia, vizinho à sua casa, o Lola Bar, na Barra Funda, um espaço muito bacana, aconchegante e com música boa.

Acho que eu ainda estava um pouco atordoado pela rapidez de ambientações (de Minas para São Paulo em pouco tempo), mas foi uma alegria poder estar novamente perto de gente que aprecio. Quem estava tomando umas cervejas, em determinado momento, já estava mais alegre (que injustiça, pois minha cerveja era sem álcool) e até capturei um registro muito feliz da minha aquisição do livro de Gabriel Carneiro, o romance de ficção científica Olhando para as Estrelas Só Vejo o Passado (foto by Marcelo). Na volta para casa, Marcelo e Ana voltaram a pé comigo pela noite não tão escura daquele espaço de São Paulo que infelizmente é um retrato de um país cheio de desigualdade. Enquanto muitos vivem no luxo e na riqueza, muitos estão nas ruas, sem dignidade.



Sábado, 22 de julho

No dia seguinte, havia confirmado almoço com uma turma legal, membros de um grupo da internet que participo desde 2020. Nem todo mundo do grupo estava lá, mas as pessoas que mais estavam dispostas a ir, e que fizeram acontecer o encontro, Alysson Oliveira (CineWeb, Carta Capital) e Márcia Schmidt, me receberam com tanto carinho que quero ser amigo deles para sempre. Juntou-se a nós o Chico, que havia ficado enrolado no apartamento com a gravação do Cinema na Varanda. O restaurante é o vietnamita Bia Hoi SP, que fica pertinho de onde fiquei hospedado. Adorei! Consegui chegar lá a pé, em menos de 15 minutos, o que me agradou muito, apesar da tristeza de ver São Paulo tão cheia de moradores de rua. Os efeitos da pandemia e das políticas atuais do governo do estado e da prefeitura para essas pessoas que perderam tudo foram devastadores.  Ganhei do Alysson um box do filme A MELHOR JUVENTUDE, de Marco Tullio Giordana, e da Márcia, um cartão postal lindíssimo do Utogawa Hiroshige. 

Após o almoço, fomos procurar lojas de doces e cafés. Acabamos “alugando” um café (eu comprei um bolo de fubá numa lojinha vizinha) para falarmos com muito prazer e alegria sobre o nosso assunto favorito, o cinema. E sobre o futuro do cinema, sobre a nova geração de realizadores que seguirão a difícil tarefa de ser tão bons quanto seus antecessores, sobre a possibilidade de não termos mais ninguém tão genial quanto os mestres do século XX.

Depois do café e de muita conversa, demos um passeio pela área do Centro, indo parar na Galeria do Rock, um espaço que preciso voltar e ver com calma noutras vezes. Ao menos pude comprar duas camisetas com estampas de bandas que adoro, Smashing Pumpkins e Portishead. Engraçado que a Márcia já sabia que as lojas de camisetas eram divididas em tribos, e perguntou se eu gostava mais de metal, falei que gostava mais de banda indie. Aí já ficou mais fácil direcionar.

Depois de nos despedirmos, fui no caminho da Avenida Paulista. Na falta de outros títulos mais interessantes, ou inéditos, ou que não estivessem em cartaz em Fortaleza, optei por O CRIME É MEU, o novo trabalho de François Ozon. Até porque eu acho aquele espaço ali da Paulista tão central e tão familiar que me sinto mais tranquilo, embora eu ache que as projeções de lá merecem uma boa manutenção. Não estava tão boa assim a projeção do Ozon, hein. Esse pessoal que mantém os cinemas mais alternativos precisa perceber a importância que tem e o fato de que lida com um público mais exigente que o dos cinemas de shopping. Isso vale para o Reserva, mas o caso do Belas Artes é ainda mais gritante. Falo isso como alguém que pretende voltar a esses dois espaços na próxima ida a São Paulo. Depois do filme, fui jantar num shopping lá na Paulista.

Domingo, 23 de julho

Para o domingo, eu havia combinado com o Michel de irmos à peça Misery, baseada no romance de Stephen King, e estrelada por Mel Lisboa e Marcello Airoldi. Antes disso, porém, fui ao Petra Belas Artes para ver um filme. CAPITU E O CAPÍTULO, de Júlio Bressane, estava passando em algumas sessões de pré-estreia. Como o filme é curtinho, cabia na programação. Saí do cinema louco para, não apenas reler Dom Casmurro, como também me esbaldar em mais cultura, em mais literatura, em mais arte, o que requer mais estudo e tempo livre. Infelizmente essa realidade está cada vez mais distante, seja pelo trabalho que nos consome tempo e energia, sejam pelas redes sociais e o celular, que nos tiram o foco. Ah, e na saída do cinema acabei encontrando na Paulista o Francisco Carbone (Cenas de Cinema). Um encontro inesperado e muito legal.

Depois do Bressane, fui tomar um café, escrevi um textinho básico sobre o filme e fui encontrar o Michel no Teatro Tuca, um espaço que não conhecia. Trata-se de um teatro grande. O grande chamariz da peça pra mim foi Mel Lisboa, de quem sou admirador desde o começo do novo século, sem falar que ela teve uma função importante durante o primeiro ano da pandemia pra mim, com o projeto de leitura de grandes contos da literatura brasileira. Outro atrativo do filme é a própria trama, mais conhecida pela adaptação cinematográfica de Rob Reiner, LOUCA OBSESSÃO, que rendeu um Oscar a Kathy Bates. Inclusive, no pôster de divulgação lá no teatro havia foto de Bates e de James Caan, para, provavelmente, lembrar ao público que é aquela história marcante de cativeiro que será contada.

Na trama, um escritor de sucesso popular sofre um acidente de automóvel e é socorrido por uma mulher que diz ser enfermeira. Em vez de ser levado para um hospital, ela fica cuidando dele. Não demora muito para ele perceber que está sendo feito de prisioneiro dela, sem poder sair, com as duas pernas quebradas. Além do mais, ela é uma fanática pelo trabalho dele, principalmente de um trabalho em série que tem uma personagem feminina chamada Misery. A cena mais chocante no filme (a da marreta) tem impacto no teatro também e a produção é incrível, com o palco giratório para trazer dinamismo para a trama, além de utilização de vídeos. A peça dura mais de duas horas e acho incrível quem consegue trabalhar nesse esquema de exibição para o público várias vezes. Sei que para o ator o teatro é o grande lugar para estar, mas o trabalho deve ser muito intenso.

Depois da peça, fui com o Michel encontrar o Chico, que estava na Cinemateca Brasileira. O espaço passou por uma reforma e está com um novo curador, o cineasta Paulo Sacramento, que tem feito um excelente trabalho. Fui à Cinemateca para ver um dos seis filmes da pequena mostra sobre cinema tcheco, ou melhor, sobre a nouvelle vague tcheca. O filme visto foi DOMINGO DESPERDIÇADO, da diretora Drahomira Vihanová, uma obra que foi censurada em 1969 pelo regime autoritário e que só foi liberada em 1990. Vendo o filme é possível entender os motivos.

Segunda-feira, 24 de julho

No meu último dia em Sampa, entrei em contato com meu amigo Eduardo Aguilar, cineasta e professor, outra pessoa que conheço de nome desde a sessão de cartas das colunas do Carlão (no ZAZ/Terra e no Cineclick) e depois na lista da Canibal. Quase sempre (ou seria sempre?) saio para conversar com ele e é um prazer o nosso bate-papo. Desta vez, combinamos de ver o novo filme de Hirokazu Koreeda, BROKER – UMA NOVA CHANCE. Como sei que ele curte dramas familiares, como um bom canceriano que é (nasceu também no dia 7 de julho, como eu), Koreeda pareceu de fato uma boa pedida. Depois do café antes do filme, teve café depois do filme, que é o que mais importava, pois seria o café do bate-papo mais demorado. Conversamos sobre coisas da vida, mudanças, reencontros, obstáculos e sucessos. Pude conversar com o Aguilar coisas que não conversei com mais ninguém na viagem, mas também por ser uma conversa a dois, o que torna isso mais possível. O cinema de diretores como Brian De Palma e Mario Monicelli não faltou no papo, assim como a questão em torno das interpretações de atores orientais, impulsionada pelo prêmio de Song Kang-ho em Cannes. O bate-papo tinha um horário para acabar, pois havia marcado um jantar com a turma do Cinema na Varanda.

E assim como acontece em filmes de ação e espionagem, posso pular os meios de transporte (metrô e uber) e ir direto para o restaurante Insalata, no Jardim Paulista. Senti falta da Alessandra Marucci, mas estar junto com os quatro varandeiros foi muito bom. Até porque acho que eles (Chico, Michel, Tiago e Cris) estavam leves com a decisão de terem finalizado o podcast, apesar do carinho claramente perceptível nos mais de sete anos dedicados a falar de cinema via áudio. Eu sou/fui um assíduo ouvinte, tendo ouvido todos os episódios, tendo passado momentos de raiva e de alegria, nas discussões deles. E ainda tive a sorte de estar presente como convidado em duas ocasiões: na época do lançamento de AQUARIUS, em 2016, e de HOMEM-ARANHA – LONGE DE CASA, de 2019. Sem falar nas aberturas para participar em áudio em um par de ocasiões, e de ter um quadro no programa, o Varandeiro do Zodíaco, que foi mais uma experiência, nem sempre bem-sucedida, mas levada até o fim, graças principalmente ao carinho da turma.

Durante o jantar, o papo estava tão bom que eu lamentei quando chegou a hora de ir embora. Por mim, ficaríamos mais um bom tempo. Conversamos sobre a antiga disputa por audiência entre Globo e SBT, em comparação com o momento atual, com a Rede Record na vice-liderança, sobre lembranças de programas de televisão, inclusive sobre o tempo em que não tínhamos acesso sobre em quais temporadas estavam as séries exibidas na TV aberta, enfim, sobre um monte de coisas que surgiram de maneira leve, sem pauta, e que rendeu muitas risadas. Uma honra e uma alegria estar com essa turma.

Depois disso, chegou a hora de enfiar as roupas nas malas para me preparar para voltar para casa no dia seguinte. Já deixo registrado aqui meu agradecimento ao Chico, pela hospedagem nesses dias, e a todos os amigos que pude e que não pude encontrar em São Paulo e Belo Horizonte. Seguiremos unidos pelo cinema por muitos anos.

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segunda-feira, julho 17, 2023

MISSÃO: IMPOSSÍVEL – ACERTO DE CONTAS: PARTE UM (Mission: Impossible – Death Reckoning: Part One)



“That’s what I sleep with every night — the future of this fucking industry!”
(Tom Cruise)


Em dezembro de 2020, ainda na primeira onda da pandemia, a imprensa divulgou o grito de raiva de Tom Cruise acima. Ele ficou injuriado com membros da equipe de filmagem que violaram protocolos de segurança contra a covid-19, e sua bronca ganhou o mundo. Eram tempos difíceis e o astro e produtor estava muito preocupado com o futuro da indústria de cinema, que de fato não foi mais a mesma após o vírus. O próprio Cruise foi bastante elogiado no ano passado, chegando a ser chamado por muitos de salvador do cinema, graças ao sucesso de TOP GUN – MAVERICK. Agora, após verem amargar o fracasso retumbante de grandes produções no mês de junho (como THE FLASH, da Warner, e INDIANA JONES E A RELÍQUIA DO DESTINO, ELEMENTOS e A PEQUENA SEREIA, esses três da Disney), os grandes executivos estão de fato preocupados e essa preocupação respinga nas pequenas produções, inclusive aqui no Brasil.

Espera-se que neste mês de julho, com três grandes filmes dispostos a chamar a atenção da audiência, as coisas comecem a melhorar para a indústria de Hollywood e para os cinemas de todo o mundo. Os três filmes, MISSÃO: IMPOSSÍVEL – ACERTO DE CONTAS: PARTE UM (2023), de Christopher McQuarrie, OPPENHEIMER, de Christopher Nolan, e BARBIE, de Greta Gerwig, têm cheiro de salvação, mas o problema é que há um custo elevadíssimo na produção e no marketing, o que dificulta a recuperação dos gastos. A produção de Tom Cruise ainda teve o problema de ter parado as filmagens durante a segunda onda da covid.

Mas o mais impressionante é que, ao vermos o filme, esses problemas não transparecem. Ao contrário, o novo MISSÃO: IMPOSSÍVEL é um sucesso em todos os sentidos. Da produção às atuações, das cenas de ação eletrizantes aos diálogos bem escritos, da trilha sonora à direção de arte. Tenho dúvidas se é um filme de autor, mas na verdade isso pouco importa enquanto estamos testemunhando uma obra tão imersiva e tão vibrante, com a mão firme do produtor Tom Cruise, que agora usa de sua experiência com grandes autores nos anos 1990-2000 para ser o dono de seus próprios projetos, com sua equipe de artistas e técnicos favoritos. E ainda faz uma obra que reflete as preocupações do mundo contemporâneo: a ameaça da inteligência artificial, a invasão de privacidade nas redes sociais e a manipulação da verdade. Tudo isso num filme de espionagem e ação. Ou seja, é bem possível que ACERTO DE CONTAS: PARTE UM seja uma obra tão bem-sucedida quanto o primeiro MISSÃO: IMPOSSÍVEL (1996), dirigido por Brian De Palma.

Tom Cruise, com seu sorriso singular e senso de confiança que lhe é característico, além de ser o último grande astro remanescente, se tornou uma espécie de novo Buster Keaton, ou de novo Jackie Chan, no que se refere a fazer coisas incríveis no lugar dos dublês. Não bastou ter quebrado o tornozelo nas filmagens de MISSÃO: IMPOSSÍVEL – EFEITO FALLOUT (2018). Agora ele pula de motocicleta com um paraquedas do alto de uma montanha e filma tudo isso de modo a parecer o mais verdadeiro possível.

Saí da sessão pensando: “Que tempos são estes, em que, mesmo com uma crise gigante rolando em Hollywood, temos no mesmo ano JOHN WICK 4 – BABA YAGA e Missão: Impossível 7.1”? Em vários momentos do filme, tive um forte sentimento de gratidão por Tom Cruise estar se esforçando em trazer as pessoas de volta às salas de cinema, e com filmes de alto nível.

ACERTO DE CONTAS: PARTE UM é tão bom que chega a ser difícil imaginar que a parte 2 conseguirá atingir o mesmo grau de excelência. Christopher McQuarrie tem uma direção tão elegante, inclusive nas cenas de conversa entre os personagens, que é de dar gosto. Eis o motivo de Tom Cruise estar preferindo trabalhar com ele o tempo todo, desde JACK REACHER – O ÚLTIMO TIRO (2012). Além do mais, temos uma série de cenas de ação tão empolgantes e tão cheias de verdade que nem parece que estamos vivendo em tempos de invasão do CGI. Basta comparar com o mais recente INDIANA JONES e o filme do arqueólogo perde feio.

Os personagens parecem mesmo estar se equilibrando em cima de um trem desgovernado, as batidas nos carros nas ruas são de verdade, o inimigo parece de fato ameaçador, uma vez que compramos a ideia. E temos personagens carismáticos de sobra, tanto os já conhecidos (eu adoro Benji, Luther e principalmente Ilsa), quanto os novos. O grande acréscimo neste novo filme é o da britânica Hayley Atwell (CAPITÃO AMÉRICA – O PRIMEIRO VINGADOR), no papel de Grace, uma ladra que entra, sem querer, na briga de cachorro grande dos espiões ultrassecretos e de uma ameaça de dominação global, aqui representada por uma inteligência artificial capaz de antecipar os atos de qualquer pessoa, como um grande algoritmo. Como Grace não tem incríveis habilidades de luta (ou de informática), ela é o personagem mais próximo que temos do espectador, e isso é muito importante para que gere uma conexão com a audiência.

Algumas cenas antológicas: o jogo de gato e rato no aeroporto, as cenas de perseguição num FIAT pequeno nas ruas de Roma com Ethan e Grace algemados no carro, o encontro na festa (que conta com a primeira aparição de Vanessa Kirby e rende uma piscadela metalinguística deliciosa), a incrível cena de ação e suspense num beco estreitíssimo, o jogo dentro do trem aproveitando a tradição das máscaras da franquia, a luta pela sobrevivência no trem desgovernado. 

No mais, fiquei muito interessado no passado de Ethan, que é mostrado em pequenos flashes, e que traz um ar bem dramático à série, o suficiente para percebermos que ocorreu algo de muito traumático para o agente. Eu diria que MI 7.1 é um dos thrillers de ação mais próximos da perfeição que eu já tive o prazer de ver.

Vejam no cinema! E se possível numa sala IMAX, e na primeira semana, pois a partir de quinta-feira as salas serão ocupadas por OPPENHEIMER. O prazer e a adrenalina são garantidos.

Agradecimentos à Giselle pela incrível companhia, entusiasmo contagiante e carinho sem igual.

+ DOIS FILMES

INDIANA DE JONES E A RELÍQUIA DO DESTINO (Indiana Jones and the Dial of Destiny)

A indústria de cinema americana está precisando urgentemente se reinventar. Reciclar velhas fórmulas e velhos heróis ou franquias já não está mais sendo garantia de sucesso. E nem falo só de sucesso comercial, mas de se ter de fato uma obra que não fique tão à sombra dos originais, que carregue algo de singular a ponto de ser lembrada. O elemento mais singular de INDIANA DE JONES E A RELÍQUIA DO DESTINO (2023) é a presença de Phoebe Waller-Bridge, que meio que interpreta a si mesma, mas tem um brilho, uma energia e um carisma que ajudam a trama a andar, a fazer com que o herói aposentado saia de sua solidão e tristeza e aceite uma nova aventura. James Mangold, o novo diretor, não tem personalidade suficiente para tornar o novo filme tão atraente e empolgante quanto os anteriores (na verdade, pouco me recordo do quarto filme). Além do mais, há um excesso de CGI que faz parecer que tudo no filme seja irreal, tanto os corpos dos atores e atrizes, quanto veículos, como aviões, carros e trens. Harrison Ford está quase apático, mas sua presença talvez já bastasse, se o filme fosse bem conduzido ou melhor pensado. Além do mais, há a música insistente de John Williams que cansa num filme de mais de duas horas e meia.

SOBRENATURAL – A PORTA VERMELHA (Insidious - The Red Door)

Uma dica para quem ainda não viu SOBRENATURAL – A PORTA VERMELHA (2023): revejam os dois primeiros filmes da franquia. Como não revi, e como são filmes de 2010 e 2013, ou seja, já faz um tempinho, senti falta de uma memória fresca. Quem viu o segundo filme já sabe que esse universo de SOBRENATURAL tem uma narrativa contada com uso de hipertextos, uma das coisas que mais me fascinou no segundo, inclusive. Este quinto filme apresenta duas tramas contadas quase que de forma independente, mas que se cruzam, principalmente no final. Temos a história do personagem de Patrick Wilson, que agora vive só e com a família despedaçada, e do filho mais velho, o que ficou "em coma" lá no primeiro filme. Aqui ele já é um rapaz (Ty Simpkins) entrando na faculdade e com conflitos e rancores com o pai. É um filme que ganha alguma força com a boa lembrança dos anteriores e de seus personagens, mas que não traz nada de novo ou de verdadeiramente arrepiante nas cenas de medo. Há os jump scares meio manjados, mas que às vezes são eficientes, e o tom de narrativa clássica adotado por James Wan em seus primeiros filmes de maior sucesso – SOBRENATURAL e INVOCAÇÃO DO MAL podem ser confundidos por ambos contarem com a presença de Patrick Wilson, aqui estreando como diretor.

terça-feira, julho 11, 2023

PROFISSÃO: REPÓRTER / O PASSAGEIRO – PROFISSÃO: REPÓRTER (Professione: Reporter / The Passenger)



Algo que não ando com paciência atualmente de consumir dentre os extras de DVD e BluRay são os comentários em áudio. Para falar a verdade, eu conto nos dedos das mãos os comentários que ouvi/li que realmente achei prazerosos ou enriquecedores. O problema é que as pessoas responsáveis pela organização desses extras convidam pessoas que acabam não oferecendo muita informação relevante e o que vemos são, por exemplo, parte do elenco descrevendo cenas que já estamos vendo e às vezes ficando em silêncio porque não têm nada mais a dizer. Foram três os filmes que acabei desistindo de ver os comentários em áudio recentemente, mesmo já tendo passado de meia hora: UM DE NÓS MORRERÁ, com comentário do diretor Arthur Penn (até achei mais enriquecedor, na verdade, mas deu preguiça em determinado momento); ELES VIVEM, com comentário do diretor John Carpenter e do ator Roddy Piper; e este de PROFISSÃO: REPÓRTER (1975), de Michelangelo Antonioni, com comentários de Jack Nicholson.

Acredito que o próprio Antonioni, se estivesse vivo e com saúde, não toparia fazer esse tipo de coisa. Ele mesmo disse em entrevista que o papel do diretor é fazer o filme e não ter que explicar nada. Mas Nicholson tem uma ligação forte com o filme. Ele dizia que era o seu favorito, e chegou a comprar os direitos da obra, logo após seu lançamento nos cinemas. Isso fez com que O PASSAGEIRO (o título da mídia física no Brasil é “O Passageiro – Profissão Repórter”, enfatizando o título internacional mais que o italiano) ficasse fora de circulação até 2003, quando o ator entrou em negociações com a Sony para relançar a obra nos cinemas. Eu lembro que havia visto o filme em VHS, na aurora de minha cinefilia, sem compreender direito a trama ou sem entrar muito no clima.

Aí, escolhi este filme para 2023, assim como no ano passado havia aberto o ano com O DESERTO VERMELHO (1964), também de Antonioni. De certa forma, O PASSAGEIRO é até mais fácil de compreender e de acompanhar do que O DESERTO…, pois há um fiapo de trama, semelhante a um thriller convencional, mas que, Antonioni sendo Antonioni, acaba criando quase um anti-thriller, como já havia feito com BLOW-UP – DEPOIS DAQUELE BEIJO (1966), possivelmente o meu favorito do cineasta, embora eu tenha muitas lacunas e revisões para fazer ainda de seus trabalhos.

Tanto O PASSAGEIRO quanto O DESERTO VERMELHO fazem parte de uma possível obsessão do cineasta por espaços desérticos – ele também usou o deserto em ZABRISKIE POINT (1970) – para a construção de uma paleta de cores bem própria. Antonioni tem um estilo de direção muito pensado, e por isso ele às vezes faz questão de fazer mudanças nas cores de uma determinada parede de um edifício de locação, por exemplo. Mas o grande momento dessa coreografia do diretor no filme é o famoso plano-sequência final, tão fantástico e que é uma dica e tanto para que o espectador pense e repense os significados, as motivações e as intenções do mestre da incomunicabilidade.

Há algo de muito enigmático na figura de David Locke (Jack Nicholson), um repórter que assume a identidade de um homem morto, sem saber que esse homem é um traficante de armas. É um tipo de situação que renderia uma boa comédia, aliás, mas há pouco espaço para o humor aqui. Ainda assim, eu diria que é uma situação que Nicholson já havia vivenciado de maneira diferente em CADA UM VIVE COMO QUER, de Bob Rafelson, que também trazia um protagonista que queria se desfazer de sua vida, se transformar em outra pessoa, e atua geralmente num estado de tédio frente à vida e às situações por que passa.

Como há muito silêncio, há espaço para que o espectador tente decifrar os personagens de poucas palavras vividos por Nicholson e Maria Schneider. A atriz, cuja maior lembrança vem do controverso ÚLTIMO TANGO EM PARIS, de Bernardo Bertolucci, replica seu jeito doce e frágil. Ela quer entrar na vida de David Locke, ela quer ajudá-lo nesse processo de ser outro homem, mesmo sabendo que se trata de uma aventura perigosa, já que essa nova identidade pertence a um traficante de armas. Daí o tom de crônica de uma morte anunciada que o filme promove de maneira muito particular.

Filme visto no box Antonioni Essencial, que traz comentário em áudio, extras e livreto com ensaio de Raphael Cubakowic para esse filme.

+ DOIS FILMES

MILAGRE EM MILÃO (Miracolo a Milano)

Eis um filme que até hoje ainda confunde aqueles que esperam por um "autêntico" filme neorrealista, seja lá o que isso signifique. Eu, que havia visto outros sete filmes de Vittorio De Sica, não estava preparado para MILAGRE EM MILÃO (1951), justamente por estar habituado com o tom mais realista deles - até uma comédia como NEGÓCIO A ITALIANA (1963), de uma outra fase, tem um pé bastante fincado na realidade. O que vemos aqui é uma fábula sobre um rapaz que tem uma visão de mundo muito otimista dentro de uma Itália afogada na miséria do pós-guerra. Recém-saído de um orfanato, ele ainda guarda os ensinamentos de sua mãe adotiva, e se mostra sempre generoso e disposto a ajudar as pessoas. Às vezes generoso até demais, como no momento em que ele dá de presente a sua valise ao ladrão que a havia roubado. O tom mais milagroso presente no título começa no terceiro ato, quando o personagem, líder de um grupo de desabrigados e que cria uma nova comunidade junto com eles, recebe um presente mágico do fantasma de sua falecida mãe. Isso muda o curso dos acontecimentos e mostra a que veio o filme, o que o tornou até mais atraente para mim, justamente por esse aspecto inusitado. Filme visto no box Neorrealismo Italiano.

SANCTUARY

Um banho de água fria para quem vai ver o filme pela sinopse. Ela é uma dominatrix. Ele é o dominado do jogo que resolve despedi-la. Ela não aceita. Os primeiros minutos de SANCTUARY (2022), de Zachary Wigon, trazem algo que mistura algum tipo de excitação interessante para quem curte ver jogos desse tipo, mas há, desde o início, algo também muito incômodo. Sem falar no fato de que o filme é muito limpinho. Acho mais problemático ainda o final, que escancara que a intenção do filme era outra o tempo inteiro. Não deixa de ser um jogo curioso que lida mais com as inseguranças dos personagens do que com suas fortalezas. Como Margaret Qualley e Christopher Abbott são os dois atores em cena o tempo inteiro, há que se dar o devido crédito pelo esforço. O diretor também se esforça para fazer do filme mais cinema do que teatro filmado.

sábado, julho 08, 2023

A PRAGA



Uma das coisas que me deixa mais triste, em se tratando de arte no sentido geral, e de cinema especificamente, é quando fico sabendo que certas obras foram destruídas ou perdidas de alguma maneira. Se é possível vermos histórias de perda de filmes em cinematografias sólidas como a americana ou a alemã, essa história se repete muitas e muitas vezes na história do cinema brasileiro. O nosso país infelizmente não tem uma tradição de cuidar bem de nossa riqueza artística. E o cinema se torna um caso ainda mais complexo, por causa do aspecto mais delicado de seu material físico, que requer uma manutenção e um cuidado muito especiais.

Enfim, tudo isso para dizer que fiquei revoltado quando soube que as emissoras que exibiram as séries de antologia ALÉM, MUITO ALÉM DO ALÉM (1967-1968) e O ESTRANHO MUNDO DE ZÉ DO CAIXÃO (1968), Rede Bandeirantes e Rede Tupi, respectivamente, cometeram o ato criminoso de gravar por cima das fitas desses programas após suas exibições. A desculpa é que as fitas custavam caro e isso era uma rotina. Estranhamente, a informação que recebi quando vi A PRAGA (2021) no cinema na última quinta-feira, sobre as fitas de ALÉM, MUITO ALÉM DO ALÉM, que incluíam a primeira versão do roteiro de Rubens F. Lucchetti, é de que essas fitas foram perdidas num incêndio. Ou seja, não bate com a informação contida no livro Maldito – A Vida e o Cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão (prefiro usar o título da Editora 34, pois o lançamento da Darkside deixa dúvidas sobre qual é, afinal, o título do livro). 

A revolta aumenta quando pensamos que esses programas foram ao ar no auge criativo de Mojica, que corresponde aos anos de 1964, quando foi lançado À MEIA NOITE LEVAREI SUA ALMA, a 1969, ano de produção de O DESPERTAR DA BESTA, que só foi exibido publicamente por causa da censura, em 1983. Mal comparando (ou bem comparando, na verdade), é como se a CBS resolvesse destruir para sempre todos os registros de ALFRED HITCHCOCK APRESENTA. É até possível que esses episódios tenham saído aquém das realizações para cinema de Mojica, mas nos foi negado o direito de ver para opinar e principalmente apreciar.

Quanto ao A PRAGA, é possível que meu entusiasmo com o filme tenha se dado pelas circunstâncias tão especiais de sua recriação, pelo fato de representar uma celebração de vida de algo que até então estava morto. E há também aquela sensação estranha e muito gostosa de ver um filme como se saído diretamente do túnel do tempo, como se entrássemos numa sala de cinema na virada dos anos 70 para os 80. Esse anacronismo provoca uma relação muito especial com a obra que nos chega. E mesmo o distanciamento de um horror que não assusta mais não chega a ser um problema; ao contrário, parece ser um trunfo.

Além do mais, a estranheza de vermos super-closes muito provavelmente inspirados no western spaghetti e de sabermos que há uma dublagem nova para aqueles corpos (adorei mostrarem nos créditos iniciais as indicações de corpo e de voz, de ator e atrizes e dos dubladores), isso tudo contribui para a certeza de que estamos diante de uma experiência e de um acontecimento especiais.

Na trama, jovem casal passa perto da casa de uma velha bruxa, que fica irritada com o rapaz tirando fotos suas e roga-lhe uma praga. Adorei a montagem, as brincadeiras de efeitos com o fotograma antigo entre as cenas e o tom de história que parece contada por nossos pais ou avós, ou tom de história em quadrinhos antiga. 

Quem diria que, depois de 15 anos do lançamento de ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO teríamos um Mojica inédito nos cinemas! E se ENCARNAÇÃO era um trabalho feito com a intenção contemporizar o personagem para os novos tempos e as novas gerações, o trabalho feito em A PRAGA era o de manter a obra original, mesmo com os acréscimos e as filmagens extras feitas em 2007, pelo próprio Mojica, o mais próximo possível do clima da virada para a década de 1980, inclusive não tentando limpado demais as imagens, ainda que digitalizado em 4K após todo o processo de reconstrução. No final, vemos o tom de homenagem a um dos maiores e originais artistas nascidos no Brasil.

+ DOIS FILMES

A ÚLTIMA PRAGA DE MOJICA

O curta-documentário que abre a exibição de A PRAGA nos cinemas, A ÚLTIMA PRAGA DE MOJICA (2021), dirigido por Cédric Fanti, Pedro Junqueira, Eugenio Puppo e Matheus Sundfeld, é fundamental para que o público compreenda o ato heroico que foi encontrar a cópia desgastada em 8mm, de 1980, em seguida fazer um tratamento digital, depois contratar uma pessoa que lê lábios para poder chamar dubladores para os personagens (o que se tinha era apenas o quadrinho do R.F. Lucchetti), e ainda fazer cenas adicionais para a conclusão. Além do mais, o curta deixa claro também o quanto nosso cinema segue maltratado e que A PRAGA calhou de ter a sorte de ver a luz do dia e as salas de exibição.

LADRÃO DE CADÁVERES (Ladrón de Cadáveres)

Um caso de filme que carrega uma importância maior do que exatamente um valor estético apurado. O próprio Fernando Méndez faria um filme de gênero bem superior dois anos depois, MISTÉRIOS DO ALÉM-TÚMULO (1959). Mas LADRÃO DE CADÁVERES (1957) é costumeiramente lembrado pelo sucesso de público obtido e por mostrar para os investidores mexicanos que fazer cinema de horror naquele país era, não apenas possível, mas também bastante lucrativo. Há também a estranheza de ser um filme de terror misturado com um filme de lucha libre, que nos anos 1950 era uma verdadeira febre no México. Na trama, cientista louco vive roubando cadáveres nos cemitérios a fim de reavivá-los com o cérebro de um macaco. Em paralelo, acompanhamos a história de um homem simples que se vê atraído pelas lutas e também enredado numa trama policial perigosa. A fotografia em p&b é bem bonita, especialmente nas cenas noturnas, e é um filme que pode ser assistido de forma distante, como curiosidade, mas também como uma obra para divertir. Filme visto no box Obras-Primas do Terror - Horror Mexicano 3.

quinta-feira, julho 06, 2023

O CONTADOR DE CARTAS (The Card Counter)



A vida é feita de escolhas. Às vezes a gente demora demais a escolher e acaba deixando passar o bonde. E depois surge outra janela de oportunidade em que é possível que novas escolhas sejam feitas. Isso a gente aprende com a vida, mas quem conhece um pouco de astrologia também sabe disso. E dentro das escolhas há o momento do sim. Quando você diz “sim”, o mundo se abre para você. E mesmo que você esteja ainda hesitante, você percebe que fez bem em dizer “sim”.

Recentemente (no ano passado, na verdade) me veio a frase “amar é uma escolha”, dita por uma diretora da escola em que trabalho. Fiquei meditativo sobre a frase, já que para mim amar era algo que era tudo, menos uma escolha. Depois, isso começou a fazer sentido para mim. Para eu começar a amar o cinema, por exemplo, eu escolhi, eu tomei uma decisão. Isso aconteceu lá em 1989, quando eu vi nas bancas a capa da revista SET com o Clint Eastwood. A partir daquele momento, eu decidi que abraçaria o cinema. E esse amor cresceu e rendeu ótimos frutos e o cinema estaria presente na minha vida por muitos e muitos anos. E provavelmente está acontecendo atualmente no terreno afetivo também, essa questão da escolha.

Comecei a escrever sobre essa coisa de escolha, inicialmente pensando ontem na minha busca por um filme para assistir. Pensei em NASHVILLE, de Robert Altman, como uma opção, como uma maneira de preencher uma das várias lacunas que tenho desse realizador. Pensei em algum filme clássico de samurai. Pensei em revisar A MORTE NUM BEIJO, de Robert Aldrich. Pensei em ver um novo filme que me chamou a atenção (SANCTUARY, de Zachary Wigon). Mas me chegou, por assim dizer, O CONTADOR DE CARTAS (2021), de Paul Schrader, para me lembrar que esse era um filme que eu precisava ver. Inclusive, há até um novo filme do diretor que já caiu na rede, MASTER GARDENER (2022), que pretendo ver em breve também.

O fato de eu ter ganhado de presente uma edição da revista Sight & Sound (de junho de 2023) do meu amigo Luiz, uma edição que traz Schrader na capa, com uma longa e interessante (e às vezes controversa) entrevista, também pesou. Acabei vendo o quanto andei subestimando ou deixando passar os filmes do realizador e roteirista, mesmo tendo adorado FÉ CORROMPIDA (2017). Na verdade, FÉ CORROMPIDA foi uma espécie de nova guinada na carreira de Schrader, já que não se esperava algo tão bom assim; o próprio cineasta já supunha que sua carreira seria descendente, levando em consideração sua idade. E não foi isso o que aconteceu.

Agora, vendo os três mais recentes filmes (ainda não vi o último, mas sei que há elementos em comum), é claramente perceptível que o diretor resolveu abraçar de vez o seu amor pelo cinema de Robert Bresson. Em especial, o seu amor por O BATEDOR DE CARTEIRAS. A trajetória do personagem de O CONTADOR DE CARTAS é bastante similar à do jovem ladrão, e o final do filme de Bresson é homenageado. Lendo a citada entrevista descubro que esse final também havia sido homenageado nas conclusões de GIGOLÔ AMERICANO (1980) e O DONO DA NOITE (1992). Ou seja, cada vez mais é preciso resgatar e ver com atenção a carreira de Schrader.

Se em FÉ CORROMPIDA podia-se pensar de imediato em DIÁRIO DE UM PÁROCO DE ALDEIA, em O CONTADOR DE CARTAS, o modelo está principalmente (e explicitamente) em O BATEDOR DE CARTEIRAS. Temos aqui a figura do homem atormentado a ponto de não se sentir merecedor do amor e das coisas boas da vida material. O ponto de partida desses novos filmes de Schrader, inclusive o mais recente MASTER GARDENER, é dar ao protagonista apenas uma profissão, pelo menos a princípio. E cada profissão tem um simbolismo bem acentuado.

Esse homem muito bom em jogos de baralho (Oscar Isaac), que quer ser chamado de William Tell, como forma de apagar o passado e seu nome original, tem muitos segredos guardados, memórias que o atormentam e uma rotina que funciona como algo próximo de um sacerdócio, tanto na prisão, quanto na vida livre de ganhar em apostas pequenas para não chamar a atenção. O encontro com duas pessoas, uma mulher (Tiffany Hadish) e um rapaz (Tye Sheridan), muda essa rotina.

Ver O CONTADOR DE CARTAS sabendo o mínimo da trama ajuda bastante o espectador a se envolver e a se deixar levar pela tensão de certos momentos. A cena do primeiro pesadelo do protagonista, saído de seus dias trabalhando numa prisão, parece vinda de um filme de horror bem pesado. A opção por um tipo de lente especial, por uma música pesada, e imagens perturbadoras, aliadas a uma confusão de nossa parte sobre o que está acontecendo, tudo isso contribui para que, a partir desse momento, o filme ganhe camadas mais incômodas, ganhe uma expectativa de que tudo pode acontecer.

Há que se trazer também um pouco da questão moral que nasce das raízes religiosas do diretor. Criado numa comunidade excessivamente puritana de calvinistas, ele só veria o primeiro filme aos 17 anos de idade. Bacharel em filosofia com especialização em teologia, ele estava prestes a se tornar um reverendo, mas optou pela crítica de cinema. O sentimento de culpa é nascido nesse tipo de formação e por isso há conteúdos tão perturbadores em obras de diretores criados em famílias acentuadamente cristãs, sejam eles protestantes (Ingmar Bergman, Carl Theodor Dreyer, Terrence Malick) ou católicos (Martin Scorsese, Alfred Hitchcock, Abel Ferrara, Manoel de Oliveira, Éric Rohmer, John Ford, Clint Eastwood).

Schrader usa a culpa como um aspecto quase doentio da personalidade de seu personagem. William Tell, por exemplo, diz que só vai fazer sexo novamente quando o garoto que ele trouxe consigo voltar a viver com a mãe e largar de vez os pensamentos tóxicos de vingança. Ou seja, ele atrela o seu prazer e a sua alegria a uma boa ação que traria para si algum tipo de redenção, sendo ele tão pecador.

Quanto à dramaturgia, por mais que Schrader se aproxime de Bresson, ele não consegue se distanciar do naturalismo da cinematografia americana. Felizmente Schrader, além de grande roteirista, tem também um cuidado visual que nos encanta. E isso não é novidade. É só lembrar de filmes como GIGOLÔ AMERICANO e MISHIMA – UMA VIDA EM QUATRO TEMPOS (1985), para citar dois do início da carreira do cineasta.

+ DOIS FILMES

POR TRÁS DA LINHA DE ESCUDOS

A ideia de fazer um documentário tentando entender o ponto de vista dos policiais do choque é até interessante. E Marcelo Pedroso (BRASIL S/A, 2014) se esforçou duas vezes para que o acaso e os entrevistados, junto com a edição, trabalhassem a favor de seu filme. A primeira vez foi em 2017, quando POR TRÁS DA LINHA DE ESCUDOS (2023) saiu em festivais e teve uma recepção negativa. Como não vi essa versão de 2017 não sei o quanto houve de mudança nesta nova, editada e com modificações. De todo modo, só de vermos um filme fazendo referência ao anterior já chama a atenção. Pergunta-se: o que houve de tão problemático assim para que o documentário de Pedroso fosse rechaçado? Um dos aspectos honestos do filme é ver o próprio diretor buscando o tempo todo algo muito difícil: se aproximar do Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco de tal forma que fizesse com que os policiais entrevistados começassem a baixar um pouco a guarda e falassem algo que não fosse parecido com um discurso oficial. O filme tem seus bons momentos e a montagem é boa o suficiente para que não sintamos a passagem do tempo. Vale ser visto.

LA PARLE

Filmado com câmera de iPhone e com quatro diretores, que são os mesmos quatro protagonistas, este LA PARLE (2022), de Gabriela Boeri, Simon Boulier, Fanny Ledoux-Boldini e Kevin Vastaen, tem um tipo de sensibilidade bem particular. O filme tateia seus próprios caminhos, usando mais a intuição que uma inteligência racional, a fim de obter seus resultados. Na trama, ou quase trama, acompanhamos três jovens franceses (uma moça e dois rapazes) que são recebidos por uma jovem brasileira numa casa na costa basca da França. Aos poucos, somos apresentados a cada personagem. Acredito que as personagens femininas são as mais ricas e interessantes, por lidarem com problemas mais tangíveis e por apresentarem emoções mais à flor da pele. A brasileira escreve cartas para uma avó que está sofrendo de perda de memória, enquanto a francesa destaca sua luta recente contra um câncer. Acredito que, por ser um produto coletivo, o filme parece carecer de uma maior coerência ao longo da narrativa, em estilo livre e muito próximo de um tom documental. LA PARLE foi rodado em 2018, finalizado em 2020 e estreou na França em 2022, acredito que em circuito limitado.

segunda-feira, julho 03, 2023

QUE HORAS EU TE PEGO? (No Hard Feelings)



Eu adoro a Jennifer Lawrence. Não apenas pelos seus trabalhos no cinema, que acompanho desde INVERNO DA ALMA (2010), o filme que a revelou para o mundo, mas também pelo seu jeito moleca e descontraída em festas, premiações e entrevistas. A atriz agora está passando por uma nova fase em sua carreira, depois de ter sido indicada ao Oscar quatro vezes e de ter vencido por O LADO BOM DA VIDA (2012), além de ter participado de duas franquias milionárias (JOGOS VORAZES, X-MEN). Lawrence parece agora, mais do que nunca, ser dona de sua vida profissional. Tanto seu filme anterior, o drama intimista PASSAGEM (2022), quanto este QUE HORAS EU TE PEGO? (2023) foram produzidos por ela, como projetos menores, mas que evidenciam sua forte presença em cena.

Com relação ao novo filme, fico me perguntando quando foi a última vez que ri tanto no cinema com uma boa comédia – sim, suspeito que estamos vivendo uma crise também nas comédias. E fico feliz que desta vez tenha sido com um novo filme desta nova fase de Lawrence, que também teve a coragem de enfrentar o preconceito e as acusações de que estaria fazendo comédia chula e popularesca.

Aqui ela interpreta Maddie, uma jovem mulher de 30 e poucos anos que aceita a oferta dos pais que querem que seu filho tímido e virgem de 19, Percy, esteja pronto para a vida na faculdade, contratando para ele uma espécie de namorada, sem que ele saiba. Em troca, a moça ganharia um carro, perfeito para quem acabou de ter o seu apreendido e agora não tem como trabalhar de Uber para pagar as contas. O pai rico do garoto, vivido por Matthew Broderick, conta que costumava ser muito tímido, e que tudo mudou em sua vida quando ele conheceu uma garota que lhe abriu o mundo e o deixou mais autoconfiante. Assim, a intenção do pai parece válida, embora um pouco polêmica para os dias de hoje, já que lembra a velha tradição dos pais do passado de levarem seus filhos para se iniciarem sexualmente com prostitutas.

Aliás, é interessante como QUE HORAS EU TE PEGO? está sempre fazendo uma ponte entre a década de 1980 com os anos 2020, inclusive na questão comportamental. Enquanto nas comédias oitentistas os jovens se mostravam desesperados para tirar a virgindade o mais rápido possível, temos aqui um rapaz que vive no mundinho de seu celular e que prefere conhecer primeiro a pessoa para, só depois, ter a sua primeira experiência sexual. O filme também busca situações que anteriormente não seriam tão pensadas, como na cena em que o rapaz está bêbado e diz que está apaixonado por Maddy e que está pronto para transar e ela diz que não pode fazer isso, por causa da condição etílica dele.

O próprio ponto de partida já sugere uma série de situações divertidas, mas o grande barato de QUE HORAS EU TE PEGO? é o quanto o filme nos surpreende com frequência. A cena da praia está entre as mais surpreendentes e divertidas que já vi em muito tempo, além de representar um gesto de ousadia e senso de humor de Lawrence. Isso tem a ver em parte com a nudez da atriz, mas não apenas isso. O filme investe bastante na inadequação, inclusive apresentando a atriz em ângulos que a tornam mais alta (e maior) do que realmente é. Isso acontece, por exemplo, na cena que Maddy encontra Percy pela primeira vez no abrigo de cães. Ela usa um vestido vermelho curto e sensual, enquanto Percy é visto de baixo, pequeno e parecendo uma criança, segurando um cachorro salsicha, que vira objeto de piada de duplo sentido logo em seguida. Há também várias cenas que lembram as presepadas dos irmãos Farrelly nos anos 1990-2000, como a cena do spray de pimenta nos olhos ou a do garoto agarrado no capô do carro.

Ainda que o sexo seja um elemento importante para a história, ele é quase formatado para ser menos sensual do que nas comédias clássicas oitentistas que o filme busca homenagear, o que também diz muito do momento em que estamos vivendo. O jovem ator que faz a vítima (ou sortudo), Andrew Barth Feldman, é ótimo e tem tudo para fazer sucesso no futuro. A cena em que ele canta e toca no piano um hit dos anos 80 ("Maneater") é arrepiante, por exemplo.

Este segundo longa-metragem de Gene Stupnitsky é também um belo coming of age masculino que tem o privilégio de contar com o brilho de uma das mais carismáticas atrizes do novo século. O primeiro longa do diretor, BONS MENINOS (2019), é uma comédia estrelada por crianças, mas que também tem algo de transgressor, já que, na trama, os meninos transportam drogas roubadas acidentalmente. Ou seja, é possível que esse cartão de visitas do diretor tenha sido essencial para sua escolha. Até mais do que sua carreira como um dos produtores da série THE OFFICE.

+ DOIS FILMES 

SEM URSOS (Khers Nist)

Foi bom sair da velocidade da nova animação do Homem-Aranha e partir para o andamento mais cadenciado de um novo trabalho de Jafar Panahi. Este SEM URSOS (2022), se não é um milagre como foi 3 FACES (2018), segue trazendo uma visão crítica, mas com vontade de compreender melhor o país em que vive. Na trama, o próprio Panahi é um cineasta proibido de sair de seu país, mas que agora mora num vilarejo próximo à fronteira com a Turquia. De sua pequena casa alugada, ele dirige remotamente uma produção de cinema no país vizinho. A confusão se estabelece na comunidade por causa de uma suposta foto que Panahi teria tirado de dois jovens amantes, já que a garota estaria prometida para se casar com outro rapaz. Gosto muito do que já é comum nos filmes do realizador, como seus passeios de carro pelo solo árido, mas também o modo como ele parece uma pessoa estrangeira naquele lugar pequeno e cheio de tradições estranhas. Grande momento: a gravação do testemunho.

EO

Em atividade desde os anos 1960, Jerzy Skolimowski não é um cineasta cuja poética eu conheça, já que este é apenas o terceiro filme do realizador que vejo. Esta homenagem a A GRANDE TESTEMUNHA, de Robert Bresson, tem um visual tão deslumbrante que, confesso, me tirou um pouco a capacidade de me envolver emocionalmente com o burrinho de olhos lindos e tristes, o protagonista da história que viaja por diferentes países da Europa, sendo às vezes vítima de agressão pelos chamados seres humanos. EO (2022) nos convida a olharmos para além do nosso umbigo humano e há uma cena que achei muito comovente, que é quando a primeira dona de Eo deseja que todos os sonhos do burro se realizem, como se aquele animal que fica frequentemente preso ou amarrado tivesse o direito de sonhar. Há abundância de imagens que parecem quadros pintados, como na cena em que Eo atravessa uma ponte de pedra sobre uma cachoeira, ou nas paisagens rurais dos lugares por onde ele anda. De todo modo, acho que o filme mereceria uma revisão de minha parte, já que fui ver com o inconveniente "sono alérgico".

domingo, julho 02, 2023

BLACK MIRROR – SEXTA TEMPORADA (Black Mirror – Series 6)



A mais famosa série sobre possibilidades assustadoras relacionadas ao comportamento humano em consequência da tecnologia muda um bocado nesta sexta temporada (2023). Depois dos três episódios pouco memoráveis lançados em 2019, BLACK MIRROR está de volta com uma leva de cinco novos minifilmes dirigidos, desta vez, por nomes menos conhecidos. Um dos pontos mais marcantes desta nova série de episódios está no quanto eles passam a abraçar mais o horror em detrimento da ficção científica, o que não constitui problema nenhum para mim, na verdade. Até ajuda a trazer algo de novo e de marcante, no saldo final. Mesmo que não tenhamos nenhum episódio excelente, todos são no mínimo bons. Além do mais, é sempre bom lembrar: BLACK MIRROR sempre foi uma série/antologia de horror. 

A Joan É Péssima (Joan Is Alwful)

O primeiro episódio, dirigido por Ally Pankiw (não conheço nenhum outro trabalho do currículo dela), trata daquela cisma que costumamos ter sobre sermos ouvidos por nossos computadores e celulares e logo ganharmos uma propaganda de algo que foi objeto de uma conversa recente. Na trama, Joan é uma jovem mulher que trabalha no RH de uma empresa e que, numa manhã, demite uma das funcionárias de maneira um pouco fria. Depois disso, ela recebe uma mensagem de um ex, com quem se encontra. Ao chegar em casa, liga a Netflix, digo, a Streamberry, uma versão satirizada da Netflix, para escolher um filme com o marido. Eis que os dois dão de cara com uma série chamada “Joan Is Awful” com uma mulher com o cabelo igualzinho ao de Joan, interpretada por Salma Hayek. A protagonista fica desesperada de verdade quando o episódio conta exatamente como foi o seu dia, só que com algumas liberdades para fins dramatúrgicos. O episódio é bem divertido e possui uma conclusão idem, embora esteja longe do brilhantismo dos melhores da série. De todo modo, há muita coisa interessante posta à discussão sobre a nossa sociedade que se acostumou a viver com a internet, com as mídias digitais e com os streamings. A atriz que faz a Joan principal é Annie Murphy, mais conhecida de quem assistiu a série SCHITT’S CREEK.

Loch Henry

Este é o primeiro dos episódios que mais destoa do que se espera da série. Na trama, acompanhamos um jovem estudante de cinema que retorna à região rural da Inglaterra, à casa de sua mãe, levando consigo a namorada norte-americana. A intenção de ambos, aspirantes a cineastas, é fazer um documentário sobre uma pessoa excêntrica da cidade. Acontece que a moça fica sabendo que a cidade esconde uma série de assassinatos brutais e convence o rapaz a mudar o objeto de estudo. O curioso é que a tecnologia usada enfatiza mais o velho VHS do que os recursos digitais, embora a questão principal seja uma crítica aos documentários de true crime. Há algumas cenas memoráveis com a mãe do protagonista. O diretor, Sam Miller, é conhecido por ser responsável pelos 12 episódios da aclamada série I MAY DESTROY YOU, que eu não vi até hoje, mas acho que estou perdendo coisa boa.

Além do Mar (Beyond the Sea)

Talvez o episódio com mais cara de BLACK MIRROR desta sexta temporada, pelo menos no que se refere a trabalhar com tecnologias, mas também por ser um dos mais perturbadores e incômodos. Na trama, Aaron Paul e Josh Hartnet são dois astronautas que têm uma missão no espaço e que possuem réplicas sintéticas na Terra, onde eles podem ter uma vida mais ou menos normal e respirar um ar puro, longe daquele cubículo espacial, embora precisem voltar para seus corpos orgânicos com frequência. Achei a ideia bem interessante. E fica ainda mais após os eventos trágicos envolvendo a família de um deles. O diretor John Crowley (BROOKLIN, 2015) enfatiza bem as inseguranças dos personagens, seus desejos e seus aspectos mais sombrios.

Mazey Day

Frente à recepção no mínimo morna, surpreendi-me positivamente com "Mazey Day" (foto), dirigido por Uta Briesewitz, diretora de fotografia de THE WIRE. O chato é não poder falar muito da trama, nem mesmo de sua principal influência criativa, sob o risco de estragar as surpresas de quem ainda não o viu. Mas é possível dizer que o que temos é a história de uma fotógrafa (Zazie Beetz, CORINGA) que costuma ganhar dinheiro tirando fotos comprometedoras de celebridades. Depois de ser em parte responsável pela morte de um ator famoso, ela agora está à caça de uma atriz que esconde um grande mistério. Não se trata de um episódio tão bem dirigido ou com um rigor formal impressionante, mas são 42 minutos de interesse e envolvimento com a trama e os personagens, principalmente com a protagonista. Há algumas cenas desconfortáveis para quem tem sensibilidade a muitas luzes. Eu acabei tendo que virar o rosto alguns vezes por causa disso. Trata-se de mais um episódio que parece fugir um pouco da proposta inicial da série/antologia. Aqui a tecnologia apresentada é de 2006.

Demônio 79 (Demon 79)

Talvez "Demônio 79" tenha sido o episódio que eu menos gostei desta sexta temporada, embora o fato de trazer uma história assumidamente de horror, desde o começo, tenha me deixado feliz por essas escolhas de certa forma ousadas de Charlie Brooker, de mexer no template de sua série. A trama é de uma simplicidade tal que chegou a me incomodar em alguns momentos, principalmente pelas semelhanças com um filme recente de Shyamalan na ideia básica. O que acaba trazendo força e graça para a narrativa são justamente os momentos em que a heroína (uma jovem indiana que trabalha numa loja de sapatos, e que sofre preconceito em seu local de trabalho) segue em busca de matar as pessoas da maneira mais desajeitada possível. Aliás, outro ponto positivo de "Demônio 79" é o senso de humor. Ajuda muito a atuação de Paapa Essiedu (I MAY DESTROY YOU), como o tal demônio disposto a salvar a Terra, mas, principalmente, salvar a própria pele. Já a jovem Anjana Vasan é o oposto do estilo do demônio, com uma humildade que vai mudando à medida que ela vai assumindo a função de vigilante vingadora, no ato final. E por falar em final, adorei o modo como a história termina. O diretor do episódio, Toby Haynes, só tem no currículo trabalhos para a televisão.