Desde o começo de minha cinefilia que sei do caso de Paul Schrader, do fato de ele ter visto o seu primeiro filme na vida aos 17 anos, devido à formação religiosa de sua família, que proibia dança ou qualquer entretenimento popular. Embora até hoje me admire com isso, ainda mais levando em consideração que Schrader se tornou um crítico, depois um roteirista e depois um cineasta, eu me identifico um bocado com isso, já que eu também era proibido de dançar por minha mãe, evangélica fervorosa. Nem mesmo a presença de meu pai, afeito aos prazeres etílicos, fez com que essa influência se confirmasse tão intensa em mim.
No caso de Schrader, é interessante como, em vez de ele lidar com filmes pendendo para a religião, como aconteceu com Ingmar Bergman, que também sofreu os traumas de uma criação religiosa rígida, o cineasta e roteirista americano preferiu simpatizar com a temática da violência. Daí até hoje ser mais lembrado pelo roteiro de TAXI DRIVER (1976). Curiosamente, é justamente o clássico personagem Travis Bickle que mais é citado como referência do novo trabalho de Schrader, o impressionantemente belo FIRST REFORMED (2017).
Em entrevista à revista americana Cineaste (Vol. XLIII), Schrader comenta sobre os caminhos de sua carreira, sobre como se identifica mais com um Kubrick do que com um Hitchcock, no sentido de que quer sempre fazer algo diferente, desafiador, e não ficar repetindo temas. Daí seus filmes aparentemente não terem um aspecto tão comum entre si. Ele revela na entrevista que sua própria carreira no cinema também foi surgindo a partir de coisas que ele acabava de ver, como quando ele viu O BATEDOR DE CARTEIRAS, de Robert Bresson, em 1968, pela primeira vez. Foi a partir daí que algo lhe acendeu o desejo e a certeza de que poderia fazer cinema também.
E é justamente de Bresson a principal referência quando assistimos a FIRST REFORMED (embora Schrader confesse ter sido influenciado por IDA, de Pawel Pawlikowski). O personagem de Ethan Hawke, o atormentado pastor Toller, é claramente inspirado no padre do filme do cultuado cineasta francês. Ambos são homens que não encontram alegria na vida e que gostam de escrever em um diário enquanto bebem tanto vinho que seus fígados já quase não existem.
A vida de Toller mudaria, porém, a partir do encontro com Mary, uma jovem mulher grávida que quer que o padre convença seu marido suicida de que ela não deve abortar. O problema é que o tal marido suicida apresenta motivos suficientes para o reverendo acreditar que não há mesmo nenhum sentido de colocar uma vida neste mundo, cujo fim já pode ser facilmente visto a partir do quanto o homem polui o meio-ambiente. O lado positivo é que a vida de Toller passa a fazer mais sentido, agora que ele se torna também um militante, agora que seus olhos foram abertos para o horror iminente do planeta.
E há Mary, vivida com um brilho quase celestial por Amanda Seyfried, que durante as filmagens estava também grávida. O fato de seu nome ser Mary já carrega uma ideia de santidade, por mais que aqui estejamos falando de um não-católico. De todo modo, isso não importa muito, até porque pastor ou padre não faz muita diferença no modo como é pintado o personagem de Hawke e sua igreja pequena.
Um dos aspectos que mais chama a atenção em FIRST REFORMED é a beleza formal. Novamente entra em cena uma ligação com Bresson, que costumava filmar uma porta por alguns segundos mesmo quando o personagem saía de cena por ela. O que acaba por criar uma estranheza. Esse tipo de "atraso" é também usado por Schrader, mas ele faz questão de quebrar algumas regras que ele mesmo cria, como o fato de não movimentar a câmera. Em certo momento, ele usa uma dolly, justamente para que o espectador perceba que existe uma regra que foi quebrada.
E temos a beleza da fotografia em 1,37:1, que privilegia os corpos. E a angústia dos personagens. E o pessimismo latente. E o fato de haver uma necessidade de um comprometimento maior por parte do espectador, devido também ao andamento lento do filme e sua intensidade. Aliás, difícil não ver FIRST REFORMED e não lamentar o fato de ele continuar inédito nos cinemas brasileiros. As chances de ele chegar às telonas talvez só se cumprissem com indicações ao Oscar. Será que resta alguma esperança? Na falta do cinema, vale ver e rever com prazer esta que talvez seja a obra-prima de Schrader como diretor.
+ TRÊS FILMES
WON'T YOU BE MY NEIGHBOR?
Um documentário sobre a história de vida e carreira de um apresentador de um programa infantil se transforma em uma história sobre gentileza, amor e sobre o quanto somos produto do amor e do desamor. Na verdade, não apenas isso: há tanta riqueza e tantos detalhes em cada gesto e em cada fala do personagem. Direção: Morgan Neville. Ano: 2018.
A PRECE (La Prière)
Belo e de certa forma até que bem simples filme sobre a dificuldade de se curar do vício em uma droga pesada. A PRECE acaba sendo mais do que isso. Gostei de pensar na questão da completude do ser humano, da necessidade de satisfazer tanto os desejos do corpo quanto do espírito. Direção: Cédric Khan. Ano: 2018.
THREE IDENTICAL STRANGERS
Eis um filme que quanto menos você souber a respeito da trama, ou seja, da história real dos três gêmeos, melhor. Nesse sentido, podemos encontrar paralelos com outros documentários, como DEAR ZACHARY - UM CASO CHOCANTE e SEARCHING FOR SUGAR MAN. É um filme que dá muito o que pensar sobre a questão da criação e dos genes como elementos na construção da personalidade da pessoa. Mas há muito mais a se discutir a partir do que somos apresentados. Direção: Tim Wardle. Ano: 2018.
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