Impressionante a capacidade do cinema (e das outras artes também, creio eu) de buscar algo tão próprio de um tempo, o Rio de Janeiro de 1961, época em que foi encenada a peça de Nelson Rodrigues, e transformá-la em um autêntico produto de nosso momento, do Brasil de hoje. A mesma peça já havia rendido dois longas-metragens para cinema, um em 1965, de Flávio Tambellini, e um outro mais famoso, provavelmente, dirigido por Bruno Barreto em 1981. Mas agora vivemos novos tempos. Tempos mais parecidos com uma distopia.
Por isso Murilo Benício, em sua estreia na direção, prefere adotar um tom mais sombrio, próximo do kafkiano, embora humor não falte, já que estamos falando de Nelson Rodrigues, mestre em saber explorar o lado podre da família, das pessoas, da sociedade brasileira em geral. Benício também resolveu brincar com a metalinguagem, de modo a trazer mais força e enfatizar o prestígio da peça, ao trazer todo o elenco em uma roda de leitura, também aberta para fazer observações sobre a obra, sobre o dramaturgo e sobre os personagens. Fernanda Montenegro é a que mais faz observações, até por ter vivido os tempos em que a peça se passa.
Na trama de O BEIJO NO ASFALTO (2018), já conhecida por muitos, um homem, Arandir (Lázaro Ramos), beija a boca de um homem que acabou de ser atropelado por um ônibus. Havia repórteres e testemunhas e o caso virou notícia de jornal. Uma notícia que virou a vida do pobre homem de cabeça para baixo. Afinal, ele, mesmo sendo casado, teria tido um caso com o tal homem morto? Era essa a pergunta que todos o faziam até o limite da exaustão.
A esposa, Selminha, vivida brilhantemente por Débora Falabella, apoia o marido, apesar de o pai (Stênio Garcia) sempre questioná-la sobre se ela o conhece de fato (o pai nunca chama Arandir por seu próprio nome, apenas "seu marido", "meu genro" etc.). O casal mora junto com a irmã mais jovem de Selminha, Dália (Luiza Tiso), que funciona como um elemento de atiçamento nas relações familiares.
A opção pelo preto e branco na fotografia acentua o tom sombrio de drama criminal e investigativo, mas principalmente na condução do espírito atormentado de um homem. Aliás, não só de um homem, já que outras pessoas também são conduzidas a esta teia de horror. Assim, nenhuma outra cena parece tão impactante quanto a de Selminha sendo interrogada pelo delegado (Augusto Madeira) e o repórter inescrupuloso (Otávio Müller). O texto de Nelson é tão forte que nem mesmo a revelação de uma quarta parede nos tira sua intensidade. Ao contrário, só mostra o quanto o texto do escritor é forte e o quanto foi acertada a direção de Benício. Lembrando também que Débora Falabella já havia feito muita gente se emocionar no cinema com um monónogo emocionante no melodrama O FILHO ETERNO, de Paulo Machline.
No mais, vale dizer que não é todo dia que vemos um ator se mostrar um diretor de mão cheia. O caminho que Benício traça aqui lembra o de Al Pacino, quando estrelou na direção com RICARDO III - UM ENSAIO. E se os falantes de língua inglesa têm Shakespeare, nós, brasileiros, temos Nelson Rodrigues. E isso não deixa de ser um baita motivo de orgulho.
+ TRÊS FILMES
TUDO ACABA EM FESTA
Uma bobagem divertida. Lembra alguns filmes americanos sobre festas em empresas. Só que esse aqui parece mais amador, o que não necessariamente diminui a diversão. Marcos Veras está bem, mas gostei mesmo foi das moças, principalmente Giovanna Lancellotti, que nunca tinha visto no cinema, pelo que eu lembre. Simpatia de menina. Já Rosanne Mulholland me pareceu pouco aproveitada. Direção: André Pellentz. Ano: 2018.
O GRANDE CIRCO MÍSTICO
É o melhor filme de Cáca Diegues em muito tempo, mas isso não quer dizer muito, já que faz teeempo que ele não lança um filme decente. Este aqui me pegou positivamente pela viagem, embora eu ainda não saiba qual é o motivo final, sobre o que é o filme. Há quem diga que é sobre machismo ao longo das décadas. Tem uma relação com BYE BYE BRASIL. Gostei de muita coisa, na verdade. Mas o que é a Bruna Linzmeyer, hein? Hein? Meu Deus!! Fiquei em estado de graça. Ou sei lá que tipo de estado eu posso dizer que fiquei. Deu até para repensar a questão da nudez, que foi dita por Pedro Cardoso como algo que representa a nudez do intérprete e não do personagem. Mas que tal registrar em filme de alta qualidade, para ficar para a posteridade, a beleza de um corpo em seu auge? Direção: Carlos Diegues. Ano: 2018.
A VOZ DO SILÊNCIO
Terceiro filme de André Ristum que vejo e o terceiro de que não gosto. Esse aqui é ainda mais problemático pois é um filme-coral com histórias quase todas sem nenhuma dramaticidade eficiente. A história que quase comove é a da mãe-filho-avô, mas acaba chegando muito perto do fim. A atmosfera da solidão de São Paulo também não rende. E Marieta Severo, hein. Que papel ruim. Trata-se de uma coprodução Brasil/Argentina, com vários atores argentino em papéis importantes. Ano: 2018.
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