sábado, maio 25, 2024
DOMINO
Se formos em busca de críticas sobre DOMINO (2019), o por enquanto último filme de Brian De Palma, vamos encontrar um apanhado de textos prontos para bater sem dó neste thriller da fase decadente de um dos maiores cineastas vivos. No The Guardian dizem que o diretor chega ao fundo do poço num suspense criminal com aparência amadora; o Indiewire diz que o filme é trashy e que ele prova que já passou de sua melhor fase (ao menos o texto diz que o filme foi montado sem a aprovação do diretor); The Globe and Mail diz que se trata do pior trabalho do cineasta e o Variety fala mal até da trilha sonora de Pino Donaggio. Mas até que há mais reviews positivas do que eu esperava.
Acredito que se o filme não tivesse o peso da assinatura do realizador seria um daqueles filmes lançados diretamente na telinha que estaria presente na lista de obras a serem descobertas com carinho, apesar do roteiro e da montagem problemáticos. O nome Brian De Palma é poderoso o suficiente para criar expectativa, por mais que o século XXI não tenha sido tão gentil com o cineasta. Se bem que ele não teve muita paz em sua carreira profissional, quase sempre atribulada pelos produtores ou mesmo por críticas negativas que incompreendiam suas obras, posteriormente alçadas a obras-primas.
Para quem demorou anos para ver este filme por causa da expectativa baixa e para não ver um diretor tão querido como o De Palma chegar a um estado de decadência tão lastimável, até que achei DOMINO bem decente. Todas as marcas da autoralidade do mestre estão lá, prejudicadas um bocado pelo orçamento precário (e talvez por um grau menor de inspiração), mas com o charme de produções de gênero europeias. Aliás, o próprio cinema do De Palma sempre foi muito influenciado pelo cinema europeu; italiano, principalmente, e aqui não é diferente – seu filme anterior, PAIXÃO (2012), é uma homenagem aos gialli.
E não poderia faltar homenagens a Hitchcock. Uma das primeiras grande cena de ação do filme, de uma perseguição no telhado, lembra UM CORPO QUE CAI. O fato de o herói estar desprovido de sua arma é uma espécie de indicação de castração, assim como é castrado também o personagem de James Stewart em JANELA INDISCRETA, outra obra também homenageada em DOMINO.
E há autorreferências, como a de OLHOS DE SERPENTE (1998), na cena da tourada, ainda que bem longe de ser tão bem orquestrada, por razões óbvias. A cena em que o mercenário está matando o colega de trabalho do protagonista lembra a cena de tortura de SCARFACE (1983) e a cena em que a colega do herói está perto do homem-bomba faz lembrar a trágica cena da morte do interesse amoroso de John Travolta em UM TIRO NA NOITE (1981). Todas essas lembranças podem parecer sombras ao vermos um filme tão menor como DOMINO, mas é o que temos para hoje.
Senti falta de uma maior força na vontade de vingança por parte do protagonista. Ele age como se não soubesse direito o que fazer, enquanto a mulher, ela sim, tem desejo de vingança e motivação para matar o sujeito que assassinou seu amado. O que acaba motivando mais o filme são as boas cenas de ação e suspense que contrastam um pouco com os momentos um pouco mais mortos.
O filme traz dois astros de GAME OF THRONES, o dinamarquês Nikolaj Coster-Waldau e a holandesa Carice van Houten, meio que tentando surfar um pouco no sucesso da série. Porém, infelizmente, DOMINO talvez seja o maior fracasso da carreira do realizador. Tanto que até agora, nenhum outro filme seu foi lançado e DOMINO ganhou essa pecha de maldito.
Dois excelentes colaboradores dão aquela força ao cineasta: o músico italiano Pino Donaggio, que faz sim um belíssimo trabalho, e o diretor de fotografia espanhol José Luis Alcaine, com suas cores quentes habituais.
+ DOIS FILMES
ESCRAVAS DO MEDO (Experiment in Terror)
É interessante perceber a mudança por que a sociedade americana atravessou na virada para a década de 1960, especialmente do ponto de vista comportamental. E é impressão minha ou a sociedade dessa primeira metade dos anos 1960 era menos durona e mais frágil do que a vista nas produções das décadas anteriores? De todo modo, ESCRAVAS DO MEDO (1962), de Blake Edwards, conta com um dos melhores inícios de filme que já vi, seja pelo suspense, seja pela belíssima construção visual em preto e branco, valorizando as brumas do bairro de Twin Peaks (a-há!), em São Francisco, mas principalmente por já estabelecer o tom, no momento em que o criminoso pega a personagem de Lee Remick por trás no escuro de sua garagem e traz-lhe a "proposta" de que ela, caixa de um banco, roube para ele 100 mil dólares, sob pena de ser morta e de ter sua irmã mais nova também assassinada. Sendo uma obra daquele período, o ritmo é um pouco mais lento do que eu gostaria (filmes do gênero de décadas passadas, especialmente noir, costumam ser mais dinâmicos), mas é importante também valorizarmos os momentos de respiro que o filme tem, inclusive para apresentar com carinho o personagem do agente do FBI vivido por Glenn Flord. Outros méritos de ESCRAVAS DO MEDO estão na excelente fotografia em preto e branco de Philip Lathrop e na ótima trilha de Henry Mancini, ambos parceiros de Blake Edwards vindos do sucesso de BONEQUINHA DE LUXO (1961). Filme visto no box Filme Noir – Neo-Noir Anos 60.
A MARCA DA BRUTALIDADE (Prime Cut)
Eis um filme incrível. E incrível no sentido de que quase não se pode acreditar no que se está vendo na tela. Dessas obras estranhas e únicas saídas de uma década igualmente única e cheia de liberdade. Em A MARCA DA BRUTALIDADE (1972), de Michael Ritchie, Lee Marvin é o matador profissional contratado para cobrar o dinheiro de um empresário do ramo de carnes vivido por Gene Hackman, ou matá-lo, se for preciso. Esse plot é muito simples; o que importa é o que vemos no meio de tudo, incluindo jovens mulheres escravizadas à venda em pequenos currais, os maiores vilões sendo matadores de animais que transformam seus inimigos em salsicha, e uma visão aterrorizante do Kansas, numa feira aparentemente ingênua, quase como uma antecipação do lado doentio da América profunda de O MASSACRE DA SERRA ELÉTRICA. Lee Marvin está fantástico como o homem de poucas palavras, muita ação e muita coragem e Hackman está mais uma vez perfeito como vilão. Sissy Spacek é a personagem feminina mais importante do filme, que representa a inocência, mas que também tem um estranho espírito de aceitação de seu destino como pessoa objetificada. As cenas de ação são de tirar o fôlego, principalmente uma que acontece num espaço aberto. Deixaria o Hitchcock de INTRIGA INTERNACIONAL orgulhoso. Filme visto no box Cinema Policial VII.
domingo, maio 19, 2024
BEBÊ RENA (Baby Reindeer)
Dias difíceis. Aliás, semanas. No mês de abril estive doente todos os dias. E passei poucos dias em casa descansando, de modo que não repousei o bastante para que ficasse curado e logo ficava doente novamente de outra virose ou coisa parecida. E, em maio, posso até estar melhor dessas gripes e alergias, mas a conta de não ter me tratado adequadamente chegou sob forma de aumento de irritabilidade, ansiedade e angústia. A quantidade de vezes em que estou tento acessos de raiva durante as aulas tem aumentado e isso tem me deixado preocupado. Porém, acredito que isso pode ser bom para que eu fique atento para me policiar, respirar fundo ou buscar mais ajuda profissional.
No meio desse cenário, opto por ver uma minissérie nada adequada para quem anda tendo (ou já teve) problemas de ansiedade, autoestima ou até algo mais grave, como é o caso da questão central da obra, criada, escrita e protagonizada por Richard Gadd. Ele interpreta a si mesmo, conta sua história dramática de assédio, abuso, profunda inquietação espiritual e insegurança. Enfim, ele se expõe, agora para todo o mundo, depois de se expor para o Reino Unido, tudo aquilo que o assombrou. E, para surpresa dele, e de muitos, BEBÊ RENA (2024) está sendo um sucesso estrondoso.
Graças ao burburinho, ao tanto de exposição e de debate nas redes, acabei não resistindo e finalmente vendo – tenho evitado ver séries, pois fico sempre achando que estou perdendo de ver os filmes. Não é das obras mais agradáveis de ver, do ponto de vista do bem-estar espiritual que traz, mas acho que é justamente por isso (e também por todo um trabalho bem desenhado de roteiro e atuações) que BEBÊ RENA deve ser visto.
Há tempos não vejo algo tão psicologicamente incômodo. E quando o rumo da história parece não trazer algo pior para o protagonista, eis que um poderoso flashback, no antológico quarto episódio, o joga no fundo do poço. Em alguns momentos fiquei pensando se o filme não estaria sendo um pouco gordofóbico ao pintar a personagem de Martha (Jessica Gunning) daquela maneira, mas imagino que não poderia ser diferente, levando em consideração o interesse em torná-la semelhante também fisicamente à verdadeira stalker.
Para quem não sabe, a série conta a história de um barman e aspirante a comediante (na verdade, um comediante fracassado) que começa a ser perseguido por uma mulher com antecedentes criminais por causa de situação semelhante. No começo, ele a vê como uma mulher triste no bar e oferece uma bebida para ela. Em troca, ela retribui com sorriso e muitos elogios àquele homem que se via como alguém desprovido de talento. Mas o mais assustador é o tanto que aquela mulher passou a enviar centenas de mensagens de e-mail para ele todos os dias. E o que poderia ser algo fácil de se encerrar, graças às ações dele, acaba tomando contornos gigantescos e assustadores.
O que mais dói na minissérie é o quanto é uma obra sobre duas pessoas que têm uma autoestima muito baixa, a ponto de se perderem em suas vidas. Depois de terminar de ver, é preciso desintoxicar, buscar algo mais leve. Ou talvez parar para escrever sobre a série, pensando, talvez, até no quanto temos de comum com um daqueles dois personagens. E pensar isso não deixa de ser também perturbador e assunto para muitas sessões de terapia.
+ UMA MINISSÉRIE, UMA TEMPORADA DE SÉRIE E UM ESPECIAL
A QUEDA DA CASA DE USHER (The Fall of the House of Usher)
Uma tristeza para quem é fã do trabalho de Mike Flanagan ver esta minissérie que parece se arrastar sem fim enquanto a vemos (eu passei meses para conseguir acabar). O próprio último capítulo parece interminável. E olha que não é pelo fato de ter muitos diálogos, muito texto. Afinal, MISSA DA MEIA-NOITE (2021), a provável obra-prima maior de Flanagan, também tem. Desde os primeiros capítulos que comecei a achar que o problema de A QUEDA DA CASA DE USHER (2023) é a falta de algo que está muito presente na obra do diretor e roteirista: o amor. Esse sentimento que nutrimos por seus personagens é visto com muita força especialmente em A MALDIÇÃO DA RESIDÊNCIA HILL (2018), mas aqui ele resolve fazer uma obra com personagens odiosos. Até aí não vejo exatamente um problema, estamos acostumados com isso, em outras séries, ou outros filmes. Mas ele não consegue fazer algo bom disso, mesmo aproveitando as várias homenagens a Edgar Allan Poe, que aos poucos acabam ficando irritantes e prolongadas. No fim das contas, a melhor impressão que guardei da série foi a reinvenção de Mark Hammil, como o faz-tudo da família Usher. No mais, claro que desejo boa sorte a Flanagan, que está agora em nova casa, depois de encerrar seu contrato com a Netflix.
LOKI – SEGUNDA TEMPORADA (Loki – Season 2)
Um caso muito especial o de LOKI, uma série feita com tanto cuidado e com tanto carinho que pode até ser vista independente dos filmes e de conexões com os quadrinhos. Se pensarmos no quanto a Marvel tem pisado na bola, então, LOKI, em especial nesta segunda temporada (2023), acaba se destacando mais ainda. É tudo de alto nível. Os atores são incríveis (Tom Hiddleston, Owen Wilson, Sophia Di Martino, Wunmi Mosaku, Jonathan Majors, Gugu Mbatha-Raw), o roteiro é ótimo (inclusive os diálogos), a direção de arte e fotografia são lindas etc. A história é diferente de tudo que já vi: uma sci-fi com abertura para a fantasia sobre livre arbítrio, multiverso e redenção (sacrifício). E todo o carinho com os personagens e com o visual retrô se manifesta dos créditos à música. Confesso que não estou ligando muito para a relação da série com o futuro da Marvel. Mas vai que eles acertam. Até porque Michael Waldron, o criador, roteirista e showrunner de LOKI será roteirista também de alguns projetos importantes do estúdio.
INVENCÍVEL - ATOM EVE (Invicible – Atom Eve)
Nem sabia da existência deste episódio especial de INVENCÍVEL centrado em Samantha, a Eve Atômica, mais especificamente suas origens. E o interessante é que, pelo que pude ver nos primeiros episódios da segunda temporada, que ainda não terminei, a personagem começou a ganhar mais espaço. Apresentar suas origens é uma maneira de nos apresentar ao passado doloroso da personagem, que nasceu de um experimento científico e foi parar na casa de um casal normal. A história de INVENCÍVEL - ATOM EVE (2023) acontece antes de Mark Grayson descobrir seus poderes. Como sendo uma história de adolescente, a questão do sentimento de inadequação se mostra presente, ainda mais sendo Samantha alguém que se vê totalmente sozinha no início de sua jornada pessoal. O estilo do desenho é o mesmo da série, bem simplificado e sem tanto capricho. Não que isso faça tanta diferença. Gosto das cenas de luta perto do final e do quanto elas funcionam para enfatizar o teor dramático da história.
quarta-feira, maio 08, 2024
LOVE LIES BLEEDING – O AMOR SANGRA (Love Lies Bleeding)
Para uma semana que se pretendia normal, acabo não indo trabalhar nesta quarta-feira por perder a hora. Ontem cheguei tão exausto, que o desgaste do dia provocou um cansaço enorme o bastante para que eu não acordasse nem com o som do despertador. Deve ser ainda efeito das enxurradas de viroses que tive no mês de abril e das crises alérgicas mais intensas e que ainda seguem incomodando. Odeio quando isso acontece, até porque morro de vergonha em dar essa notícia (tarde demais) aos gestores da escola e em procurar explicar o ocorrido, embora saiba que é uma questão de saúde, sim.
Aproveito esta manhã um tanto tensa e tento escrever um pouco sobre um dos filmes que mais ficou em minha memória afetiva nos últimos dias, o segundo longa-metragem de Rose Glass, LOVE LIES BLEEDING – O AMOR SANGRA (2024), que tem causado uma repercussão boa no circuito alternativo – eu vejo este filme como um claro exemplar de obra que poderia se sair bem também no circuitão, mas infelizmente esse tipo de produção que saia um pouco mais da casinha tem cada vez menos espaço no circuito de shopping. Estive conversando sobre o filme com o meu amigo personal trainer, que não tem hábito de ir a sessões mais arthouse, e ele achou interessante as cenas que descrevi, pelo caráter fantástico e singular. Inclusive, perguntei a ele sobre os efeitos de muitas injeções de anabolizantes no corpo.
O fato de a diretora Rose Glass vir do terror faz toda a diferença na hora de construir esta história de amor cheia de sangue e violência (e body horror) e que opera numa chave próxima da comicidade, embora esses elementos cômicos também possam ser vistos com seriedade, pois funcionam como representações dos sentimentos das personagens femininas, como é o caso da última cena, do agigantamento.
O filme já me ganhou nas primeiras imagens, com a fotografia em cores vivas e estouradas numa tela scope, remetendo às fitas mais baratas dos anos 1980 – inclusive, até achei que o filme havia sido filmado em película, mas foi em digital mesmo, mas com um tratamento que deixa as cores e os tons mais quentes. Além do mais, como a história se passa nessa década, e muito dela dentro de uma academia de musculação, há uma valorização dos corpos vestidos no tipo de roupa mais curta da época.
O filme não é sutil nem quer ser. Assim que começa, o olhar de tesão de Kristen Stewart por Katy O'Brien é evidente, assim como é evidente o que acontecerá entre as duas, pelo menos do ponto de vista do romance. Mas surpresas acontecem e, por causa de uma situação de violência doméstica, a história delas tomará novos rumos. O filme faz referência à série O INCRÍVEL HULK (aquela com o Lou Ferrigno) e traz uma atuação ótima de Ed Harris, como um líder do tráfico de armas que tem a polícia da cidadezinha nas mãos. Pode não ser a perfeição que queríamos que fosse, mas é uma obra singular. E só por isso merece ser exaltada. (Aliás, sobre a Kristen Stewart, que currículo de respeito que ela está construindo, hein!)
Também vale destacar o fato de termos uma cineasta mulher brincando com os padrões e clichês dos filmes de gênero e virando isso do avesso. Aqui vemos mulheres que representam a força bruta e que agem através da ação para a dinâmica da trama. Os homens seguem sendo figuras tóxicas, mas não há nenhum que represente um herói ou salvador ou algo do tipo. Essa apropriação feminina de filmes de gênero é um fenômeno que merece ser estudado com atenção.
+ DOIS FILMES
MALÍCIA (Malice)
É ao mesmo triste e curioso como a década de 1990 foi a que pior fez uso da tradição do filme noir. E não me refiro, claro, à obra-prima INSTINTO SELVAGEM, de Paul Verhoeven, ou a um outro exemplar bem-sucedido. Aliás, o filme de Verhoeven acabou por fazer nascer um monte de thrillers eróticos baratos, alguns lançados direto em vídeo, e outros que eram bem a cara do Supercine. MALÍCIA (1993) não é dos mais baratos, do ponto de vista do orçamento. Tem até gente que virou estrela em papel mínimo (Gwyneth Paltrow) e outras estrelas do passado (Anne Bancroft, George C. Scott) fazendo bons papéis pequenos. Mas o filme é mesmo de Nicole Kidman, que na época estava decolando com sua bela pele pálida e seus olhos azuis. A trama é uma grande bagunça, envolvendo uma mulher casada (Kidman) que está supostamente tentando uma gravidez de risco. Ela vive com um professor (Bill Pullman) e o casal acaba conhecendo o cirurgião mulherengo vivido por Alec Baldwin (na verdade, ex-colega de escola de Pullman). Enquanto isso, rola uma subtrama de um assassino e estuprador, talvez para tirar a atenção da trama principal, ou talvez tenha sido resquício de algo que foi deixado na sala de montagem. O diretor Harold Becker vinha do ótimo VÍTIMAS DE UMA PAIXÃO (1989) e é lamentável que tenha caído tanto. Mas ao menos MALÍCIA é um filme que surpreende, que tem suas viradas de roteiro bem interessantes. Só não sabe o que fazer com elas. Gosto da música de Jerry Goldsmith, que remete às vezes à sua composição para INSTINTO SELVAGEM.
O FUGITIVO SANGUINÁRIO (Autostop Rosso Sangue)
Há uma infinidade de filmes de gênero italianos ainda a serem melhor conhecidos. Minha opção por este O FUGITIVO SANGUINÁRIO (1977), de Pasquale Festa Campanile, veio de um cansaço mental ocasionado por uma gripe. Ou seja, não adiantava eu pegar um filme que requeresse um pouco mais de meu intelecto. Na trama, um casal de turistas italianos (Franco Nero e a francesa Corinne Cléry) viaja pelo deserto da Califórnia levando consigo seu trailer. O erro deles é dar carona a um psicopata (David Hess) que vem colecionando assassinatos pelo caminho e transforma a vida dos dois num inferno. O filme de Campanile é cheio de crueldade e cinismo, principalmente por parte dos personagens masculinos, e de sensualidade natural por parte de Corinne, advinda do sucesso de A HISTÓRIA DE ‘O’. De uma beleza estonteante, fico admirado que essa moça não tenha sido erguida à categoria de estrela de primeira grandeza no cinema europeu. Filme visto no box Cinema Exploitation 3.
domingo, maio 05, 2024
BAIONETAS CALADAS (Fixed Bayonets!)
Quando vi BAIONETAS CALADAS (1951) e postei o textinho rápido e no calor do momento, como costumo fazer sempre, para o Facebook e para o Letterboxd, o amigo e crítico Humberto Silva destacou uma questão envolvendo uma certa reputação, a princípio, pouco favorável a Samuel Fuller, que era tido como anticomunista e, para os mais exaltados, até fascista. Humberto me falou que havia (há) um capítulo dedicado à questão Fuller e a crítica francesa no livro Cinefilia, de Antoine de Baecque, que até hoje não li por completo, pois fico pensando em ler enquanto acompanho um pouco as obras dos principais nomes da Nouvelle Vague, mas hoje sei que isso é bobagem e se for esperar ver tudo de Godard, Rivette, Rohmer, Varda etc, não vou ler o livro nunca. Logo…
De todo modo, essa menção que o Humberto fez desse capítulo em especial do livro foi maravilhosa, pois jamais pensei que Fuller teria sido de tanta importância para chegar a fazer um racha na crítica cinematográfica francesa de então. Acontece que um dos mais influentes críticos do início dos anos 1950, Georges Sadoul, era comunista e tinha um posicionamento bem radical em relação ao cinema produzido nos Estados Unidos. Segundo ele, só valia a pena ver os filmes dos chamados “dez de Hollywood”, homens de esquerda que se insurgiram contra o senador McCarthy. Sadoul chegou a chamar nomes como McCarey, Hitchcock, Hawks, Preminger, Cukor etc. de bibelôs hollywoodianos (imagina só!) e chamou Samuel Fuller, especificamente, de o McCarthy do cinema.
Quando os “jovens turcos” passaram a defender mais e mais Fuller, Sadoul ficou deveras indignado e sequer aceitou participar de uma edição especial dos Cahiers du Cinéma, já numa época em que essa nova turma, os jovens hitchcock-hawksianos, era a que estava mandando na crítica francesa (e logo mais no próprio cinema francês). E aí surgiu uma questão: essa nova crítica era de direita? A questão é que eles eram adeptos da política dos autores, de um neoformalismo, ou “fullerismo” (vejam bem: até esse termo surgiu, em homenagem à polêmica Fuller). Citando Bacque,
Ser “desengajado”, em meados dos anos 1950, isto é, preferir a forma do estilo à mensagem ideológica, as invenções da mise em scène ao teor do roteiro, os pequenos aos grandes temas, os filmes americanos às produções soviéticas ou de “Qualidade Francesa”, é ser engajado contra tudo o que constitui, em sua diversidade, a cultura de esquerda: Sartre, Les Temps Modernes, Camus, Combat, Jean Vilar e a “Action Culturelle”, Bazin, “Travail et Culture”, Esprit, Sadoul, Aragon, Les Lettres Françaises e os comunistas.”
Ou seja, os jovens foram atrevidos, e estavam mesmo dispostos a fazer uma ruptura com a crítica e o pensamento até então vigente. O capítulo tem mais de 50 páginas e há muitos detalhes das discussões entre os protagonistas, mas o mais interessante é que Samuel Fuller, enquanto isso, só continuou a fazer seus filmes.
Fuller foi um combatente de guerra. E deixa muito claro seu respeito e sua dedicação para honrar os esforços e os sacrifícios dos soldados americanos, talvez até mais que o próprio John Ford. Pelo menos, tive essa impressão nesse primeiro momento.
Ainda rolava a Guerra da Coreia (1950-1953) quando Fuller, num mesmo ano, lançou dois filmes de natureza mais heroica sobre o conflito. Em BAIONETAS CALADAS (1951), tanto quanto em CAPACETE DE AÇO (1951), o foco está mais na sobrevivência dos homens em território hostil e estrangeiro do que em estratégias militares ou situações de violência brutal.
No caso de BAIONETAS CALADAS, a maior parte da trama se passa numa colina congelada onde um grupo de apenas 48 homens se estabelece, boa parte das vezes dentro de uma caverna, com a missão de segurar e enganar um exército coreano, numa estratégia de guerra. Eles sabiam que provavelmente estariam ali para ser aniquilados pelo exército coreano, de modo que a maior parte dos homens, 15.000, pudesse atravessar uma ponte com tranquilidade.
Fuller mais uma vez usa tintas muito humanas para pintar esses homens. Todos são imperfeitos e todos são também muito dignos de respeito e consideração. Como se o cineasta fosse uma espécie de portador do amor, mesmo quando trata de um cenário tão embrutecedor como a guerra. E faz isso sem apelar para sentimentalismos baratos.
Falando em barato, BAIONETAS CALADAS é mais um exemplo do cinema de baixo orçamento do diretor, agora trabalhando para um grande estúdio, a 20th Century Fox, mas com custos de produção reduzidos, e filmado em apenas 20 dias. Foi o primeiro de uma acordo de sete filmes entre o realizador e o estúdio de Darryl F. Zanuck.
Visto no box O Cinema de Samuel Fuller.
+ DOIS FILMES
GODZILLA MINUS ONE (Gojira -1.0)
O que salta aos olhos logo que começa GODZILLA MINUS ONE (2023), de Takashi Yamazaki, é o visual. O avião sobrevoando a ilha, os tons de cores que remetem aos filmes coloridos mais antigos, a visão de um Japão que acabou de ser derrotado pela guerra mais traumatizante do país. Para o piloto de aviões que fugiu do dever de kamikaze, há também a culpa, que é agravada com a chegada do Godzilla à ilha em que ele está. Gosto de como o filme vai se aprofundando mais nos dramas dos personagens, desse rapaz e depois de uma mulher que ele conhece quando retorna a Tóquio. Mais até do que das cenas com o monstro, embora elas sejam muito bonitas de ver e também um tributo ao GODZILLA de 1956, inclusive com o modo de andar e de olhar do monstro. Não sei se o desencanto que o filme passa em relação ao governo japonês está relacionado apenas à época do pós-guerra ou se está também vinculado à atual situação política do país, mas é algo que chama a atenção. No mais, o tom de heroísmo que adotado parece destoar do que estamos acostumados a ver, parecendo também um retorno a um espírito do passado, de tempos mais inocentes, embora não exista inocência alguma depois de se atravessar uma guerra daquelas. A inocência talvez esteja simbolizada na criança que o protagonista cria como filha, representante do futuro. Uma surpresa e tanto o lançamento deste filme no Brasil. É importante que as pessoas o prestigiem, para que o cinema japonês, seja o autoral, seja o de gênero, volte a comparecer com força em nosso circuito exibidor.
GUERRA CIVIL (Civil War)
Quarto filme do cineasta inglês Alex Garland, um artista bem divisivo no gosto dos cinéfilos, mas que ganhou aqui a carta branca de comandar a produção mais cara da A24, até o momento. Para os brasileiros, GUERRA CIVIL (2024) ainda tem o atrativo de trazer Wagner Moura, como um jornalista que quer entrevistar o presidente dos Estados Unidos em Washington, quando o país atravessa uma guerra civil muito provavelmente nascida da polarização política. Senti falta de mais política no filme sendo explicitada, mas fica, de certa forma, claro o lado de Garland, principalmente na melhor cena do filme, a que mostra Jesse Plemons (não creditado) na pele de um soldado monstruoso, meio trumpista e muito xenófobo, ameaçando com uma arma os jornalistas. É uma cena de causar um mal estar imenso, mas é a mais poderosa, sem dúvida. De tirar o chapéu. Aliás, Garland tem a sorte aqui de trabalhar só com grandes atores. Kirsten Dunst está ótima como a fotógrafa de olhos mortos e fatigados, Wagner Moura como o homem que se alimenta e se alegra com a guerra, e a jovem Cailee Spaeny (PRISCILLA) como a fotógrafa iniciante que pega carona no grupo, junto com o jornalista veterano vivido por Stephen McKinley Henderson. GUERRA CIVIL é uma espécie de road movie. E como um road movie, é um filme de autodescobertas e transformações durante o processo. Acho bons os tempos de respiro, como as paradas para conversar, ou a ida a uma lojinha de roupa, mas aos poucos esses respiros vão ficando menos respiráveis, o que de certa forma é positivo para o que filme se propõe. Ainda assim, mesmo sendo um trabalho irregular em seu andamento e se mostrando um pouco hesitante em dar nomes aos bois na trama, é uma obra quase tão boa quanto MEN – FACES DO MEDO (2022), o controverso trabalho anterior do diretor.
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