domingo, junho 05, 2022

MURIEL (Muriel ou le Temps d’um Retour)



Estava procurando alguma coisa no meu acervo de livros sobre MURIEL (1963) e acabei me deparando com esta quarta capa do livro Os Filmes da Minha Vida 4 – O Real e o Imaginário, organizado por Renata de Almeida. Há nesta quarta capa os dez mandamentos de um cinéfilo, criados por Leon Cakoff. Um deles me chamou a atenção e tem tudo a ver com a minha relação com o filme visto: “reconhecer a sua própria ignorância, pois ninguém nasce sabendo (quem não reconhecer a sua ignorância continuará ignorante)”. Um outro que pode valer também é “Na dúvida, ao final de um filme, não emitir opinião errada”. Como eu costumo escrever sempre pequenos textos (para o álbum do Facebook e para o Letterboxd) sobre minha relação com o filme recém-visto, então, relevem: são apenas impressões que podem mudar com o tempo, seja pela maneira como o filme permanecerá (ou não) em minha memória, seja através de estudos que me ajudam a abrir os olhos sobre a obra em questão.

O cinema de Alain Resnais não é sempre fácil. Mas, assim como apenas na terceira tentativa consegui ver (e adorar) 2001 – UMA ODISSEIA NO ESPAÇO, de Stanley Kubrick, também foi só na terceira vez que vi HIROSHIMA, MEU AMOR (1959), dessa vez no cinema, que eu percebi o quanto a poesia desse filme é mágica e impressionante. Por isso, por mais que a minha experiência com qualquer filme de Resnais não tenha sido das mais “agradáveis”, eles sempre serão encarados por mim com o maior respeito e reverência.

Por ocasião do centenário de Resnais (em 3 de junho), lá fui eu pegar uma de suas obras do box O Cinema de Alain Resnais, da Versátil. Escolhi o mais antigo, dentre os inéditos pra mim, e a escolha pode ter sido a mais difícil, para lembrar de um termo familiar nos dias de hoje. Talvez porque o cineasta tenha acabado de sair de O ANO PASSADO EM MARIENBAD (1961), sua experiência mais radical do ponto de vista formal e narrativa, e seguia querendo inovar, com seu cinema ainda bastante desafiador. 

MURIEL é confuso, mas muitas vezes isso serve para nos fazer questionamentos (em vários momentos eu gesticulei para a televisão, como aquele meme do John Travolta) e por isso mesmo nos manter acesos. Muitas dessas dúvidas que me surgiram tiveram a ver com as motivações dos quatro personagens principais, todos misteriosos e sem muita certeza do que lembram e do que queriam no passado ou querem no presente, especialmente o casal mais velho, Hélène (Delphine Seyrig) e Alphonse (Jean-Pierre Kérien). O casal mais jovem vive um outro tipo de angústia, especialmente Bernard (Jean-Baptiste Thiérrée), atormentado por um passado recente na Guerra da Argélia, quando conheceu uma moça chamada Muriel. Já Françoise (Nita Klein) tem um tipo de relação pouco compreensível com os dois personagens masculinos.

Resnais brinca com uma montagem que salta tão rapidamente que é preciso muita atenção. Na análise sobre o filme presente no box, soube que o diretor mudava o cenário no meio de uma cena, ou mudava a posição dos móveis com frequência. Além disso, percebi que os dias se confundem com as noites e a noção do tempo também se torna difusa. Por isso, de certa forma os dramas dos personagens afetam pouco a audiência, pelo menos de uma maneira mais convencional, já que há toda uma questão da narrativa fragmentada que faz com que a experiência de ver MURIEL seja um desafio do primeiro ao último minuto. Logo no começo, fiquei bastante incomodado com o fato de a casa ser próxima à praia (como Hélène informa) e demorarmos muito a ver a tal praia. Pode ser um incômodo banal, mas faz parte de um tipo de desconforto proposital que Resnais parece querer trazer.

A própria escolha da locação, a cidade costeira de Boulogne-sur-Mer, é deliberada, já que é uma cidade cuja área foi 85% comprometida com as explosões na época da Segunda Guerra. Ou seja, é uma cidade que convive com prédios reconstruídos e uma parte antiga, ainda de pé. Ambas as partes da cidade são mostradas e também contribuem com a sensação de deslocamento. A própria casa de Hélène é um antiquário e sempre aparece diferente, já que ela trabalha vendendo vários móveis antigos. Assim como a cidade e a casa de Hélène, a vida dos quatro personagens principais também está em processo de reconstrução. E muitas vezes de perda da memória.

Outra sensação de estar perdido vendo MURIEL está nos diálogos. Como os personagens evitam se comunicar, ou falar a verdade, ficamos sem compreender certas ações. Em certo momento, Françoise conversa com um dos personagens e reclama com o fato de ele não conseguir completar uma frase. Essa cena é bastante representativa da nossa relação com a obra, mas também do quanto Resnais intenciona nos colocar um pouco na posição confusa daqueles seres humanos deslocados e sensíveis. Assim, o passado parece ao mesmo tempo distante e imaginário, principalmente para os personagens mais velhos (Hélène e Alphonse), que foram namorados durante a juventude e o fato de terem rompido é algo que se tornou uma espécie de trauma para os dois.

A personagem-título é uma mulher que nunca aparece e que seria a namorada de Bernard. De acordo com o que vemos nas cartas do rapaz e em um relato narrado, a moça teria sido alguém que fora torturada e morta na guerra da Argélia, acusada de sabotagem. Bernard diz ter uma namorada com esse nome, mas Hélène, por exemplo, nunca a viu. Seria Muriel uma criação da mente de Bernard para afastar um possível sentimento de culpa? Aliás, a guerra da Argélia (1954-1962) era um assunto que rendia censura na época, como foi o caso de O PEQUENO SOLDADO, de Jean-Luc Godard, que só foi liberado pela censura após o fim da guerra. MURIEL foi provavelmente liberado pois a guerra já havia acabado em 1963.

Quando Alphonse surge na casa de Hélène, ele chega acompanhado de uma mulher mais jovem, que diz ser sua sobrinha, embora na verdade eles tenham sido amantes. Françoise, por sua vez, procura se aproximar de Bernard, o que não é fácil, já que ele é um rapaz de comunicação complicada. Lá pelo final do filme, inclusive, vemos uma outra moça que seria a namorada de Bernard, uma jovem com um visual andrógeno, que, por conta da montagem cada vez mais fragmentada, é uma personagem de que pouco sabemos.

MURIEL não é um filme de travellings. Em vez do uso da movimentação de câmera, Resnais prefere os cortes rápidos. Mesmo quando usa o campo/contracampo, isso é às vezes mostrado de maneira distinta do que estamos acostumados. Como o diretor se declarava fã de quadrinhos, também usou com bastante frequência falas vindas de uma cena anterior na cena seguinte. Não chega a ser um recurso tão complicado, mas talvez tenha causado um pouco de incompreensão na época. Imagino que isso seja não apenas um recurso mais moderno de narração, mas uma adição para o sentimento de deslocamento mental e às vezes completa incompreensão do que está acontecendo. E quando achei que o filme já nos deixou suficientemente confuso, eis que o final me deixa sem chão. De todo modo, adoraria ter a chance de rever MURIEL no cinema. Seria incrível. 

+ DOIS FILMES

O TETO (Il Tetto)

Um filme como este, que deixa um calorzinho no coração, se faz necessário nos dias de hoje. Me fez lembrar O PÃO NOSSO, de King Vidor, no que se refere ao espírito coletivo em prol de uma ação nobre, mas é muito mais humilde. Quando vemos o casal de O TETO (1956), vivido por Gabriela Pallotti e Giorgio Listuzzi, se casando e depois partindo para morar na casa pobre e já cheia de gente da família do noivo, do quanto aquilo tudo é desconfortável, tenso e carente de privacidade, isso é só o começo para nos prepararmos para a jornada do casal por um espaço para morar, quatro paredes e um teto, tendo muito pouco dinheiro no bolso e tentando burlar as leis municipais para conseguir o seu sonho. O grau de humanidade deste filme de Vittorio De Sica o coloca, pra mim, como um de seus melhores trabalhos. O roteiro é de Cesare Zavattini, parceiro de outros grandes trabalhos do diretor, como LADRÕES DE BICICLETA (1948), DUAS MULHERES (1960), entre outros. De dar gosto. Filme presente no box O Cinema de Vittorio De Sica.

NÃO AMARÁS (Krótki Film o Milosci)

A vantagem de a memória nos ser falha é que vemos alguns filmes como se fosse a primeira vez. Os filmes do Krzysztof Kieslowski têm esse poder de se tornarem melhores ainda na revisão, de haver sempre detalhes a serem percebidos. NÃO AMARÁS (1988) é até um dos mais acessíveis em sua narrativa muito clara sobre a paixão/obsessão de um rapaz por uma mulher. Ele a espia todos os dias com uma luneta, até que começa a querer se aproximar fisicamente dela. É o JANELA INDISCRETA do Kieslowski. Há um pouco de suspense, mas o que há mesmo é um manancial de emoções. E o que é aquele final, meu Deus?! É como se o filme (aquilo que é assistido) olhasse para o espectador e percebesse a beleza da imaginação. Que coisa linda!

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